O bicentenário da independência e os usos políticos do 7 de setembro, segundo esta historiadora

Em entrevista ao Café História, a historiadora Neuma Brilhante, professora de História do Brasil na UnB, relembra o primeiro centenário da independência, revela suas expectativas para o bicentenário e explica porque os historiadores são tão críticos a narrativas ufanistas da história.
7 de setembro de 2020
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O bicentenário da independência e os usos políticos do 7 de setembro, segundo esta historiadora 1
Neuma Brilhante é professora de História do Brasil na Universidade de Brasília (UnB). Foto: Bruno Leal

Lembro que eu estava no meu segundo ano do mestrado em Memória Social quando acompanhei as “comemorações” dos 200 anos da chegada da família real brasileira ao Rio de Janeiro. Eu fiquei realmente impressionado com a grandiosidade da efeméride. Houve shows, discursos públicos, reportagens, exposições, selos comemorativos, conferências e o lançamento de “1808”, livro do jornalista Laurentino Gomes que se tornou um inédito fenômeno de vendas. Pelo menos no Rio de Janeiro, minha cidade natal, e onde eu então vivia, as pessoas pareciam tomadas por uma arrebatadora e apaixonada curiosidade por esse período da história do Brasil. Ainda não sei como explicar tudo aquilo foi possível, mas acho que o ótimo momento político e econômico que o país vivia pode ser uma boa hipótese a fim de responder o porquê de tanta excitação.

Doze anos depois, às vésperas de outra importante efeméride no imaginário político, o bicentenário da independência, a ser completado em 2022, eu não sei muito bem o que esperar, mas, como historiador, aguardo ansioso a data. Dois dias antes de publicar esta entrevista, a quatro, portanto, do 7 de setembro de 2020, o ator Mário Frias, Secretário Especial de Cultura do Governo Bolsonaro, publicou uma ação publicitária do governo sobre os “heróis brasileiros”, deixando-nos antever uma visão antiquada, pobre e constrangedora do passado nacional. Mas, tirando isso, não temos até agora nenhum grande projeto à vista. Morando há dois anos em Brasília, não vejo por aqui nada parecido com o que vi no Rio em 2008, e imagino que esse é mais ou menos o mesmo clima no restante do país. Recém-entrado em uma recessão econômica, com um governo de extrema-direita no poder e em meio a uma pandemia global que já tirou a vida de mais de 100 mil brasileiros e brasileiras, não parece-me haver tanto espaço para aquilo que vivemos há mais de uma década. De qualquer forma, penso que se existe um governo que é propenso a capitalizar com os usos políticos do bicentenário, este governo é o Governo Bolsonaro. Talvez haja projetos ainda não-revelados.

Para entender melhor esse cenário, bem como as possibilidades quanto ao que veremos dentro de dois anos, entrevistei Neuma Brilhante, professora de História do Brasil do Departamento de História da UnB e diretora do Instituto de Ciências Humanas desta mesma universidade. Minha colega de departamento é especialista em Brasil do século XIX e tem se perguntando, assim como eu e outros tantos historiadores e historiadoras, o que podemos esperar de 2022, quando nossa independência política completa 200 anos.

O que podemos esperar da comemoração do bicentenário da independência em 2022? Para muitos especialistas, o governo federal vai abordar a efeméride com tintas ufanistas. Você concorda essa previsão?

Minha expectativa quanto às comemorações do bicentenário da independência foi inicialmente construída pelo que ocorreu em 2008, quando da efeméride da transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, acontecimento apontado por muitos como início do processo de independência do Brasil. Fora então criada certa expectativa de que viveríamos ondas de comemoração da independência. Naquela época, essa primeira “onda de comemorações” contou com numerosos eventos acadêmicos organizados em todo o território nacional, sendo seguidos por significativa produção historiográfica. Além disso, foram produzidos documentários, séries televisivas, exposições e publicação de livros de divulgação, com forte participação de não historiadores. Contudo, não encontramos até o momento indícios fortes de que a segunda onda chegará de modo significativo. Não presenciamos até o momento programações acadêmicas ou governamentais de fôlego.

Penso que essa falta de engajamento esteja diretamente ligada à profunda crise em que vivemos, que veio a ser agravada pela tragédia sanitária que vivemos. A comemoração conecta as três dimensões do tempo histórico: passado, presente e futuro. A partir das luzes trazidas pelos olhares voltados ao passado, por historiadores e demais sujeitos capazes de construir a cultura histórica de um povo, deveria ser promovida a reflexão do presente em vistas da elaboração de novos projetos nacionais. Tal perspectiva parece-me agora insustentável.

A falta de engajamento social não significa a ausência de propostas oficiais para organização da comemoração. Algumas iniciativas de governos anteriores tiveram continuidade, como é o caso da Comissão Interministerial Brasil 200, criada em 2016 pelo presidente Temer, sob direção do Ministério da Cultura. Em junho do ano passado, essa comissão foi substituída por outra, também criada por decreto presidencial, mas agora alocada no Ministério da Cidadania. Contudo, a despeito de a comissão ter sido constituída por ato ministerial já no mês seguinte, não encontramos registro de ações efetivadas do grupo.

Em termos de governo federal, temos outras iniciativas como, por exemplo, a criação de prêmio literário oferecido pela Secretaria Especial da Cultura. Há certa mobilização para organização de exposições em diferentes museus, coordenadas pelo IBRAM, hoje ligado ao Ministério do Turismo. O projeto mais audacioso deste instituto é a  reconstrução do Museu Nacional a tempo da efeméride: mas ainda falta grande parte do recurso necessário para isso. O Arquivo Nacional, hoje ligado ao Ministério da Justiça, organiza ações comemorativas no âmbito da Comissão luso-brasileira para salvaguarda e divulgação do Patrimônio Documental (Coluso). Observe, contudo, que nenhum dos ministérios aqui mencionados participa da comissão interministerial criada para coordenar as comemorações, o que indica, a meu ver, falta de  integração e de planejamento.

Observemos que iniciativas de comemoração da efeméride também estão sendo orquestradas por outros agentes. Destacam-se os preparativos no Estado de São Paulo, que reinaugurará o Museu do Ipiranga, hoje em reforma. Além disso, o Poder Legislativo Federal também constituiu comissões específicas em suas duas casas.

Se tenho dúvidas quanto à grandiosidade e à adesão às comemorações orquestradas pelo poder Executivo, o mesmo não ocorre quanto ao teor ufanista que elas terão. A memória nacional do 7 de setembro ainda é fortemente influenciada pela versão que a explica do ponto de vista do Estado e conduzida por heróis de modo ordeiro. Tal perspectiva foi construída ainda no século XIX, reforçada durante a ditadura militar, e adequa-se sobremaneira ao projeto político do grupo que hoje encontra-se no poder e de seus apoiadores.

Exemplo disso é o uso do bicentenário pelo Instituto Brasil 200, constituído por empresários brasileiros que apoiaram a eleição de Jair Bolsonaro. Em carta manifesto apresentada pelo empresário Flávio Rocha, proprietário da rede de lojas de departamento Riachuelo, em Nova Iorque, quando do lançamento do Movimento Brasil 200, em Janeiro de 2018, ele conectou o ato fundador de d. Pedro I à iniciativa daqueles que hoje se dispõem a realizar o que ele chamou de nova independência do Brasil, a partir da redução do Estado, apresentado como explorador da parcela produtiva de nossa sociedade. A carta associava, de forma mais ou menos explícita, o Estado brasileiro a Portugal, o príncipe ao futuro presidente a ser eleito naquele ano, e os empreendedores, à nação que teria clamado pela independência. Na carta, Flávio Rocha afirmou: “Chegou o momento da independência de cada um de nós das garras governamentais. Liberdade ou morte!”.

Acredito que este discurso refundador dará o tom das comemorações.

Muita gente não se incomoda nem um pouco com narrativas ufanistas da história. Mas os historiadores sim, e bastante. Por que uma abordagem nacionalista da história pode ser problemática? 

Os historiadores são bastante conscientes dos usos políticos do passado por pessoas, grupos, instituições… É inegável, contudo, que a história nacional apresenta-se como espaço fundamental para tal prática. Neste sentido, a história frequentemente é usada para legitimar projetos de poder e forjar identidades. A própria institucionalização da História como área específica do conhecimento, no século XIX, esteve ligada à formação dos Estados nacionais e à busca e à elaboração de narrativas que pudessem lhes trazer coesão social. Observe que neste exercício, esquecer determinados acontecimentos era tão importante quanto fazer lembrar de outros.

Neste sentido, o caso da própria construção do 7 de setembro como data nacional é muito elucidativo. Sua valorização esteve diretamente ligada às disputas estabelecidas entre o jovem Imperador e a Câmara dos Deputados, nos primeiros anos do país independente. Ainda em finais de 1822, o 12 de outubro, data da aclamação do Imperador e do aniversário natalício de d. Pedro, foi apontada por Decreto Imperial como o dia de aniversário da independência. A escolha deste dia para aclamação possibilitava, simbolicamente, a legitimação dupla do Imperador: ele chegava ao poder por seu nascimento como príncipe herdeiro, mas também pela aclamação do povo, em um pacto que teria na futura Constituição o seu maior emblema. O 7 de setembro, por sua vez, seria apontado como marco da independência meses depois, em maio de 1823, na abertura da Assembleia Constitucional e Legislativa do Império, quando o próprio d. Pedro I afirmou ter sido o riacho do Ipiranga o lugar em que “pela primeira vez” ele proclamou a independência do Brasil. Percebemos aqui certa alteração na explicação.

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“Independência ou Morte”, de Pedro Américo, 1888. Museu Paulista. Fonte: Wikipedia.

Se o 12 de outubro conferia grande importância ao reconhecimento do soberano pelo povo para o nascimento do novo país, o 7 de setembro o apresentava, pelo menos em seu ato fundador, como fruto da vontade do príncipe, ação esta que antecedera o pacto estabelecido com o povo. Naquele mesmo ano, já em contexto de disputa com a assembleia, as duas datas foram lembradas com pompa. A comemoração dupla, com certa primazia do dia da Aclamação, durou até o início do Período Regencial, na década de 1830, quando o 12 de outubro foi substituído pelo 2 de novembro, dia do aniversário do imperador menino, d. Pedro II. Percebemos neste momento mais uma reinterpretação dos acontecimentos. A retirada do 12 de outubro do calendário cívico do Império buscava diminuir a presença do primeiro imperador da memória nacional e o 7 de setembro passou a ser compreendido como resultado de pressões do povo, entendido como a parcela da população com direitos de cidadão.. A figura de d. Pedro I seria valorizada a partir da década de 1860 e alcançou seu apogeu já na República, quando foi apontado como grande garantidor da unidade nacional.

Agora que vimos os usos políticos desse passado, podemos voltar à pergunta sobre os problemas de uma história nacionalista. De modo geral, estas narrativas nacionais buscam construir marcos fundadores, não raramente com atos protagonizados por grandes personagens, de matiz heroica, que personificam a nação. Esta, por sua vez, é representada como possuidora de valores e características homogêneas, como entidade superior aos indivíduos e aos grupos minoritários, que atuam como contribuintes secundários ou  obstáculos a serem superados. As histórias nacionais forçam interpretações e impõem severos silêncios.

Pensando mais uma vez no caso brasileiro, a história nacional elaborada ao longo do século XIX e ainda fortemente presente em nossa cultura de história impôs silêncios quanto a movimentos separatistas, a revoltas populares em geral e a episódios em que o Estado fora particularmente violento, entre outros. De uma forma geral, os ditos silêncios estavam diretamente relacionados àquelas experiências que poderiam comprometer os esforços da construção de laços de identidade nacionais, mesmo quando tal experiência partia do próprio Estado.

A história nacionalista desqualifica projetos políticos alternativos, representa os opositores como desordeiros e ignorantes, subordina grupos humanos diferentes do eleito como constituinte de seu povo. A aproximação entre discurso nacionalista e discurso supremacista é enorme. Lembremos que todas as experiências totalitárias do século XX foram respaldados por narrativas nacionalistas, em geral, contadas a partir de viés teleológico, pelo qual a formação do grandioso Estado e da nação estava traçado desde tempos imemoriais.

Estas questões estão evidentes em meio às disputas políticas de nosso tempo. No caso da direita, percebemos forte interesse pela proposição de certo revisionismo histórico que revaloriza a narrativa nacionalista da história do Brasil. O principal expoente de tal movimento é o grupo Brasil Paralelo, que diz ter por objetivo expurgar a ideologia do que consideram ser a “história oficial”, produzida majoritariamente nas universidades,  entendidas como redutos de esquerda.

A apropriação deste discurso nacionalista por parte do atual governo tem se desdobrado em críticas e desmonte de políticas públicas adotadas por administrações anteriores. Isso já se tornou notório nas contestações de ações afirmativas para populações negras, de políticas de demarcação de terras indígenas e das indenizações de vítimas da ditadura militar no Brasil.

Como foi a primeira comemoração do centenário da independência?

As comemorações do 1º centenário da Independência começaram em 1908, com a Exposição Nacional da Abertura dos Portos. Essa exposição ocorreu na Urca, no Rio de Janeiro, e seu sucesso foi um dos elementos que incentivaram a organização da Exposição Nacional do Centenário, que viria a ser aberta em 7 de setembro de 1922 e encerrada em julho do ano seguinte. O objetivo manifestado na ocasião era apresentar um inventário dos 100 anos país, nas palavras do então presidente Affonso Pena. Buscou-se, na ocasião, por meio de uma análise retrospectiva, explicitar o progresso do país desde a chegada da família real. O sucesso dessa iniciativa estimulou a decisão de se organizar uma grande exposição internacional em 1922, agora para comemorar o grito do Ipiranga e a realização da Independência. Assim como em 1908, a exposição serviria como vitrine do progresso nacional, deveria justificar o lugar do Brasil rol das nações modernas e explicava a República como resultado de processo longo e linear: era a realização do destino do Brasil.

A exposição contou com pavilhões de países, estados, cidades e alguns organizados pelo governo federal. A despeito do caráter efémero das exposições, encontramos entre as iniciativas de sua organização a criação do Museu Histórico Nacional, que inicialmente ocupou dois pavilhões da exposição e veio a ser instalado em definitivo no prédio do Arsenal do Exército.

Além das amostras de produtos, as exposições abriam espaço para amplo debate acerca da modernidade e da civilização ocidental, com destaque para os avanços científicos. Receberam grande destaque as ações higienistas e suas vinculações a políticas eugenistas. Aliás, nas articulações entre passado, presente e futuro exaltadas nas comemorações, a eugenia ocupou grande espaço, vindo a ser consagrada com a publicação do Dicionário histórico, geográfico e etnográfico do Brasil, com supervisão do IHGB. Neste documento, o governo era cobrado a tomar medidas que visassem a melhoria da qualidade biológica da população interiorana do Brasil, até então formada majoritariamente pelo “caboclo”.  A raça era uma questão de saúde pública.

A participação do IHGB nas comemorações também se destacou com a organização do 1º Congresso da História da América, com apoio do Ministério das Relações Exteriores. O evento foi ocorreu logo na primeira semana da exposição contou com a participação de grande número de estrangeiros, vindos de universidades de toda a América. Tal evento foi significativo pois buscava pela primeira vez a aproximação do instituto com referências não europeias..

A escolha da Exposição Internacional como instrumento principal de comemoração do centenário é um exemplo explícito de uso político do passado. As exposições internacionais e nacionais eram compreendidas como grandes vitrines do progresso ocidental. Eram eventos de grande sucesso, exigiam enormes esforços dos países organizadores e dos expositores e recebiam milhões de visitantes. No caso da Exposição Centenário de 1922, o público estimado foi de 3 milhões de pessoas.

O sucesso político e a ordem apresentadas na exposição, contudo, não correspondiam ao contexto brasileiro. Tratava-se, portanto, de um óbvio uso político do passado. Lembremos que o ano de 1922 foi marcado por importantes movimentos de contestação do modelo exaltado naquele evento. Temos o aumento das tensões entre militares e governo civil, o início do movimento tenentista, a criação do Partido Comunista e a Semana de Arte Moderna. Em termos internacionais, o otimismo com o progresso fora abalado com o trauma da grande guerra, pondo fim à Belle Époque.

Durante muito tempo, os materiais didáticos ressaltaram que o interesse comercial inglês foi determinante para a independência do Brasil. Com o fim do monopólio comercial entre Brasil e Portugal, os ingleses poderiam vender seus produtos industrializados sem impedimentos. Embora essa explicação persista no senso comum, a historiografia trabalha hoje com outras perspectivas, certo?

Hoje tal perspectiva não encontra mais ressonância nos trabalhos acadêmicos. A abertura dos portos já havia garantido a entrada de produtos ingleses no Brasil desde 1808. Basta observar que a independência não trouxe mudanças em termos de produção, circulação de produtos e parcerias econômicas. Considero difícil apontar elementos determinantes diante da complexidade do processo que resultou na fundação de um novo Estado nacional. Minha área de pesquisa é História Política, por conseguinte, estou muito mais conectada a esforços interpretativos a partir desta chave. Neste sentido, considero sim fundamental o contexto internacional, mas com ênfase em relações a circulação de ideias e de novas práticas políticas maior do que em questões econômicas.  

A historiografia considera hoje de modo bastante pacífico que os acontecimentos políticos que se desdobraram na separação em relação a Portugal estiveram fortemente relacionados a certo movimento atlântico de contestação, que conectou “revolucionários” de Espanha, Portugal, Estados Unidos, diversas cidades ibero-americanas e da América portuguesa.

Na significativa circulação de ideias que marcou este período, destacam-se os debates em torno de categorias e conceitos como soberania, constitucionalismo, pacto, liberdades, indivíduos, entre tantas. Reconhecer isso não significa, contudo, reduzir a independência a causas externas.

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Desfile cívico-militar de 07 de setembro (2020) na Esplanada dos Ministérios, Pirâmide Humana, do Batalhão de Polícia do Exército de Brasília – Marcelo Camargo/Agência Brasil

As dinâmicas próprias das diversas partes da América portuguesa e suas relações com a Metrópole, em seus aspectos políticos, sociais, culturais e econômicos, foram decisivas para as interpretações deste mesmo contexto internacional, para a compreensão de tais ideias a partir da tradição ibérica e as construção de soluções frente aos novos desafios impostos, o que levou, inclusive, a violentas disputas entre diferentes projetos de nação. A independência do modo como a conhecemos era um dos diferentes projetos e futuros possíveis do Reino do Brasil daquele início dos oitocentos. Por fim, gostaria de ressaltar que a historiografia hoje trata a independência como um processo complexo e longo, ultrapassando bastante o ano de 1822.

Depois de 1822, havia um novo país no mundo, mas faltava ainda “fabricar” o povo deste novo país. Ninguém sabia ao certo o que era o “brasileiro”. Os historiadores costumam destacar, com razão, o papel da literatura romântica e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) nesse processo de criação do povo e da “nação brasileira”. Mas além desses dois espaços simbólicos, o que mais contribuiu para isso?

Penso que o Parlamento desempenhou papel fundamental nisso. A leitura dos Anais do Legislativo torna evidente que os parlamentares das primeiras legislaturas e, particularmente, dos participantes da Assembleia Legislativa e Constituinte do Império, tinham muita clareza de que a nação brasileira inexistia. Um dos debates mais instigantes travados em 1823 foi o que buscava definir quem seriam os cidadãos brasileiros. Quais os critérios necessários para ser considerado um cidadão? A cidadania pressupunha a igualdade entre os membros da comunidade política? Existiria diferença fundamental entre cidadãos ativos e cidadãos passivos ou se tratava de uma suspensão temporária de direitos? Haveria diminuição formal de direitos para os cidadãos negros? Como articular direito de propriedade, pilar dos debates ocidentais na definição da cidadania no mundo ocidental naquele momento, e as expectativas de igualdade anunciadas pelas novas ideias políticas e filosóficas? Todas estas questões passaram pelas plenárias das casas legislativas e demonstram de modo muito claro as dificuldades de se construir consensos quando grande parcela da população era formada por pessoas escravizadas. Aos deputados e senadores também coube definir as regras eleitorais, o modelo representativo, as datas nacionais, a definição de quais ações seriam merecedoras de honrarias e títulos. Ações estas fundamentais para a construção de identidades nacionais.

A atuação parlamentar tinha profundo caráter constituinte da sociedade que começa a existir a partir de novos valores políticos e filosóficos. Não à toa, os personagens que ocupavam as plenárias do Legislativo também seriam encontrados nos salões do IHGB e de outros espaços culturais do Império.

Como citar esta entrevista

BRILHANTE, Neuma. O bicentenário da independência e os usos políticos do 7 de setembro, segundo esta historiadora (Entrevista): Bruno Leal entrevista Neuma Brilhante. In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/o-bicentenario-da-independencia-e-os-usos-politicos-do-7-de-setembro-segundo-esta-historiadora/. Publicado em: 07 set. 2020. ISSN: 2674-5917.

Bruno Leal

Fundador e editor do Café História. É professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em História Social. Tem pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisa História Pública, História Digital e Divulgação Científica. Também desenvolve pesquisas sobre crimes nazistas e justiça no pós-guerra.

3 Comments Deixe um comentário

  1. Interessante observar como a ideia de nação é forjada por um projeto político. E também como o processo de desqualificação dos opositores políticos silenciam aspectos importantes da história. Parabéns Bruno e professora Neuma, excelente reflexão.

  2. Eu desejo um Brasil mais aberto ao mundo,menos racista;
    Desejo que os brasileiros possam viajar para fora do Brasil;desejo que a economia progrida muito mais na area dos alimentos para que todos possam provar a enorme variedade da gastronomia brasileira;desejo um Brasil unido e prospero para todos os que trabalham honestamente,e principalmente que seja seguro para quem o visita.
    A industria do turismo è enorme e dä um grande lucro a quem è visitado.
    No que toca a turismo o Brasil tem o maior potencial do mumdo,com as suas variedades em tudo o que existe e espaço nao falta para albergar bilioes de pessoas que possam e queiram visitar o Brasil.

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