Quando “começou” o Terror na história da Revolução Francesa? Ele é parte indissociável da Revolução, uma expressão das “dores” de um momento histórico, ou um “escorrego” das forças revolucionárias? E quando o “período do Terror” termina, o emprego do terror simplesmente desaparece? Essas e outras perguntas dão o tom do novo livro de Michel Biard e Marisa Linton, Terreur! la Révolution Française Face À Ses Démons (em tradução livre para o português, Terror! A Revolução Francesa face a seus demônios), publicado em 2020, e traduzido para o inglês em 2022. Nele, autor e autora problematizam as representações de um dos períodos mais controversos da Revolução Francesa.
O “Terror” ou o “Período do Terror” é popularmente conhecido como o ponto de maior violência na história da Revolução Francesa, ocorrido, mais ou menos, entre 1793 e 1794, quando Robespierre e os jacobinos promoveram assassinatos, prisões e perseguições de opositores. Como não existe consenso quanto a cronologia do fenômeno e nem quanto a sua definição, a essencialização da ideia de “Terror” serviu para fins políticos diversos, sendo comparável, por exemplo, ao terrorismo e ao comunismo no pós-guerra.
O novo livro Michel Biard e Marisa Linton mostra como essas visões que circulam no senso comum e até mesmo em muitos livros didáticos e representações históricas dificultam o nosso entendimento desse período histórico. Biard e Linton destacam que o terror, em seus sentidos mais variados, gira em torno da sensação do terror: para eles, o terror é menos “uma sucessão de circunstâncias ou eventos particulares” que uma série “de emoções coletivas.” Ao mesmo tempo, o livro aponta que, mediando os poderes locais e centrais, os “deputados em missão” – isto é, enviados para as mais diversas regiões da França – tinham a autoridade de decretar em nome da exceção política. Eles atuavam como uma espécie de ‘Convenção ambulante’, intermediando os poderes centrais e locais nos departamentos e nos exércitos. Alguns teriam papel significante no ‘terror’ da repressão, e seriam denunciados.
Trazendo observações acerca da abordagem do terror revolucionário no âmbito historiográfico, bem como das suas figuras públicas e as dinâmicas pessoais e relacionais (lealdade, amizade, inimizade, desconfiança e duplicidade), Terreur! la Révolution Française Face À Ses Démons situa o ‘Terror’ como uma criação posteriormente de uma narrativa simplificada e imprecisa acerca das dinâmicas de poder atuantes na França. Do ponto de vista quantitativo, afinal, as mortes na guilhotina (cerca de 17 mil) são bem inferiores aos massacres cometidos pela coroa inglesa na Irlanda no mesmo período, em 1798 (cerca de 40 mil mortos) ou, segundo a historiadora Carla Hesse, as guerras na Independência dos Estados Unidos. Não se trata aqui, evidentemente, de mesurar a violência pela quantidade de mortos, mas tão somente questionar as representações sobre o período, que apresentam o “terror” como representante de uma violência descomunal e sem paralelos.
Para Biard e Linton, o ‘terror’ como recurso repudiável é uma virada conceitual utilizada durante e após a anistia dos agentes remanescentes da Convenção Nacional, intencionalmente separada dos seus antecedentes no imaginário político. Para um “Terror” dotado de começo, fim e intenção, seu efeito é de acúmulo de sentido a um dado recorte de um fenômeno em detrimento do peso de outras considerações – o termo e a linguagem do ‘terror’ revolucionário não surgem no vácuo, e podemos entendê-lo a partir de seus significados anteriores e contemporâneos à Revolução.
Sentidos do Terror
Biard e Linton sublinham que, no século XVIII, a maioria dos textos dava um significado positivo ao conceito terror. Esse tipo de uso da palavra evoca superioridade e proteção, sendo uma linguagem emocional condicionada às relações de poder. Existe também, eles apontam, uma certa reverência ao terror no Velho Testamento, no qual Deus pune não só descrentes, mas também os próprios súditos com grandes catástrofes, numa forma de terror ‘salutar’ (salutary). Essas ideias estavam presentes nas conhecidas coleções de sermões dos bispos de Luis XIV. Dentre os deveres de um rei para com o bem comum, virtuoso seria aquele que fosse justo com os seus súditos e terrível com seus inimigos, uma vez que era prioridade manter a segurança geral.
Os inimigos da Revolução, complementam Biard e Linton, não eram somente os inimigos externos, como os ingleses e austríacos. Entre as oposições clerical, civil e de ‘federalistas’, bem como dissidências entre membros da própria Convenção – raramente consistentes sob a ótica das ‘facções’ jacobina, girondina, herbertista, etc. -, os autores não pretendem diminuir ou justificar a violência, mas consideram a noção de “exceção política” um ponto-chave para entender as condições de uma Revolução – é esse, afinal, o significado de “governo revolucionário”. É apenas após a morte de Robespierre, o golpe do 9 Termidor, que o discurso termidoriano atribui ao período a ideia conveniente de um aparato autoritário concebido e controlado por tiranos.
A faceta emocional da Revolução, que incendeia os sentimentos tanto com medo quanto com euforia, tem peso significativo para entender as ações do período, marcado por suspeita e violência, explicam os autores. O terror foi utilizado por líderes revolucionários que, como lembra o livro, não são “autômatos ideológicos”. Pensavam e debatiam sobre a Revolução e a sentiam. Alguns adoraram os decretos de 1789, outros choraram e ruminaram. O recurso ao terror deve ser visto em contraste a esses cenários de exaltação e de medo, mas também de razão e de cautela. Em Terreur! la Révolution Française Face à Ses Démons, os autores sugerem que o terror expressa, acima de tudo, um processo de escalação num contexto de crises políticas e militares, traições e revoltas.
Marisa Linton é Doutora pela Universidade de Sussex, leciona na Kingston University em Londres, pesquisa sobre as ‘dinâmicas da política revolucionária, incluindo o papel das emoções na política do terror e o papel dos medos de conspiração no fazer político.
Michel Biard é Doutor pela Universidade de Sorbonne, pesquisa sobre história política e cultural da Revolução Francesa, bem como o Teatro no século XVIII. Presidiu a Sociedade de Estudos Robiespierristas entre 2005 e 2011 e leciona sobre História Moderna na Universidade de Rouen.