Em 2019, o editor do Café História, Bruno Leal, me convidou para escrever um texto sobre Revolução Francesa. Aceitei. Minha ideia inicial à época era produzir uma bibliografia comentada tomando os livros produzidos após o bicentenário (1989), especialmente no século XXI. Mas ao começar a trabalhar no material, entendi que era preciso, antes de tudo, falar sobre a “historiografia clássica”, isto é, aquela anterior a 1989, com os livros e autores que costumam estar na base do que conhecemos sobre o evento. Ao invés de usar o formato de bibliografia comentada, acabei escrevendo um artigo. O resultado foi bastante satisfatório: o artigo teve milhares de acessos e ainda acabou me ajudando no processo de escrita de um livro sobre o assunto, publicado em 2022 pela Editora Contexto.
Acontece que a ideia de uma bibliografia comentada sobre a história produzida depois do bicentenário da Revolução nunca saiu da minha cabeça. Bom, saiu agora. Promessa cumprida! Apresento a seguir autores e autoras e textos que considero fundamentais para o leitor e a leitora que deseja entender os mais recentes debates sobre a Revolução Francesa.
Com efeito, dado que o público brasileiro ainda costuma conhecer a Revolução Francesa por meio de trabalhos de autores franceses do século XX – em especial, George Lefebvre, Albert Soboul, Michel Vovelle e François Furet – esta bibliografia comentada (sem, em nenhuma hipótese, diminuir a importância de trabalhos dos dois últimos séculos) busca apresentar trabalhos produzidos por historiadores e historiadoras que atuam no século XXI, destacando também produções ligadas às universidades brasileiras.
Um olhar sobre a historiografia contemporânea da Revolução Francesa indica que, na atualidade, enquanto um punhado de reacionários, a maioria fora da universidade, continua a repetir a ideia de uma Revolução “essencialmente sangrenta” ou “mãe dos totalitarismos”, os historiadores e historiadoras têm estudado aspectos pouco ou mal trabalhados pelos trabalhos clássicos, como o caráter imperial dos fatos revolucionários, as dinâmicas globais envolvendo a Revolução Francesa, o direito dos animais e a questão participação das mulheres. Felizmente, torna-se cada vez mais inadmissível pensar a Revolução Francesa sem considerar a realidade de suas colônias, em especial o Haiti, cuja revolução é hoje objeto de estudos bastante sofisticados.
Paralelamente, no que diz respeito aos temas clássicos da Revolução Francesa, há uma verdadeira disputa sobre o problema do terror revolucionário, o qual, visto como uma antessala dos totalitarismos por muitos historiadores das décadas de 1980 e 1990, hoje é objeto de interpretações distintas, que procuram entender o fenômeno a partir da lógica específica de seu próprio período. Ademais, cabe destacar que o conceito de “Revolução Burguesa”, hegemônico nos estudos sobre Revolução até a década de 1980, é pouco presente na maioria dos livros indicados.
Curioso para descobrir que obras são essas que andam oxigenando os estudos históricos sobre a Revolução Francesa? Vamos a elas!
MORIN, Tania Machado. Virtuosas e perigosas: as mulheres na Revolução Francesa. Alameda Casa Editorial, 2014.
Fruto de uma dissertação de mestrado defendida na Universidade de São Paulo (baixe aqui) e publicada em 2009, trata-se, sem dúvidas, de um dos melhores trabalhos produzidos sobre a Revolução Francesa no Brasil. Fruto do uso de fontes primárias em diálogo com a mais recente historiografia, a obra distancia-se de uma história das mulheres na Revolução Francesa que, como usualmente se faz, se restringe apenas às mulheres da burguesia (em geral, ligadas à produção intelectual), e busca também o contato com as peixeiras, as sans-culottes e as mulheres que lutaram no exército. Se muitas historiadoras, a partir de trabalhos como o de Joan Landes, apresentaram a Revolução Francesa como uma derrota histórica para as mulheres, Morin, sem negar os diversos “fechamentos” presentes na Revolução, filia-se a historiadoras que, como Lynn Hunt, mostram também as fendas abertas pelas indeterminações revolucionárias. Cabe destacar, por fim, o impecável trabalho iconográfico presente no livro, o qual pode ser extremamente útil a profissionais que buscam trabalhar a Revolução Francesa em sala de aula.
BIARD, Michel, & LINTON, Marisa. Terror: The French Revolution and Its Demons. John Wiley & Sons, 2021.
O debate a respeito da natureza do “terror” (o que também envolve a discussão sobre o uso o do termo em minúsculo, “terror”, ou em maiúsculo, “Terror”) é um dos mais pujantes na historiografia da Revolução Francesa na atualidade. A propósito, o autor David Bell, crítico dessa historiografia, recentemente a batizou esse grupo de historiadores, com forte ironia, de “Don’t Say Terror School” (em português, algo como “a escola do não diga terror”). Em cerca de 160 páginas, o livro de Marisa Linton, professora emérita da Universidade de Kingston, e de Michel Biard, da Universidade de Rouen-Normandie, sintetiza de forma magistral essas discussões, deixando claro como a noção do “Terror” como um sistema, como um período ou como uma época é fruto das construções feitas após a morte de Robespierre (notadamente pelos discursos de Tallien e pelos trabalhos de Benjamin Constant e Hegel). Em vez de apontar Robespierre como “ditador” (o que ele nunca foi) e como “mandante do terror” (o que ele, igualmente, não foi), os autores apresentam os “terrores” como uma situação complexa, na qual diversas violências foram exercidas em muitas direções, de modo que a ideia de “um Terror” como “um programa de Estado” não se sustenta empiricamente.
POPKIN, Jeremy. A New World Begins: The History of the French Revolution. Hachette UK, 2019.
Na década de 1980, o historiador Yves Benot, em seus trabalhos sobre a Revolução Francesa e o mundo colonial, observou que a maioria dos historiadores desconsiderava que a Revolução Francesa não aconteceu em um país, mas em um Império, no qual estavam presentes cerca de 700 mil pessoas escravizadas – portanto, a forma como os revolucionários lidavam com o problema das colônias e da escravidão, como Jean Jaurés e Aimé Cesaire já haviam chamado atenção décadas antes, constitui-se em um dos problemas mais fundamentais para a compreensão da natureza e dos limites da Revolução Francesa. É por isso que o livro de Popkin, professor da Universidade de Kentucky, é de singular importância: como historiador especializado na história da Revolução Haitiana, ele escreveu o livro que melhor captou a relação entre os eventos revolucionários na metrópole e as dinâmicas coloniais. De fato, a partir do livro de Popkin torna-se claro como a Revolução Francesa e a Revolução Haitiana – bem como os movimentos em outras colônias, como Martinica, Guadalupe e Guiana – são processos históricos entrelaçados, os quais só podem ser bem compreendidos se estudados em conjunto.
MARTIN, Jean-Clément. La revolución francesa. Editorial Crítica, 2012.
Disponível em tradução para a língua espanhola, trata-se de um panorama de fôlego da Revolução Francesa, o qual, embora organizado de maneira factual e cronológica, não deixa de lado os debates historiográficos que envolvem o tema, tornando-se uma das obras mais representativas do tema em nosso tempo. Martin, professor da Universidade de Paris I-Panthéon-Sorbonne e sem dúvidas um dos principais historiadores da Revolução Francesa na atualidade, definitivamente incorpora a narrativa da “Era das Revoluções Democráticas” dentro do quadro geral da Revolução Francesa (apresentando a queda da Bastilha ao lado dos movimentos revolucionários na Córsega, Haiti, Polônia, Países Baixos e outros territórios) e sintetiza suas célebres pesquisas a respeito da Guerra da Vendeia e do terror.
No caso do evento na Vendeia, por exemplo, o autor, sem negar as violências que envolvem o episódio, se afasta da narrativa predominante entre os autores conservadores de que se trataria de um “genocídio” perpetrado pelo “governo” jacobino. Do mesmo autor e sobre os temas indicados, vale conferir também La Vendée de la mémoire (1800-1980), de 1989 e La Terreur. Vérités et légendes, de 2017.
HUNT, Lynn. Política, cultura e classe na Revolução Francesa. Editora Companhia das Letras, 2007.
A historiadora panamenha Lynn Hunt figura hoje como não apenas um dos principais nomes na área da Revolução Francesa, mas também como uma das principais referências em todo o campo da história cultural. Tendo passado por diversas universidades (Califórnia, Los Angeles, Berkeley e Pensilvânia), o trabalho de Hunt, publicado pela primeira vez em 1984 e reeditado em 2004, aborda de forma original o problema da simbologia da Revolução Francesa; os símbolos, em seu trabalho, não aparecem como meros “epifenômenos”, mas como parte da própria formação das consciências no decorrer do processo de ruptura revolucionária. Além disso, inicialmente a fim de verificar a plausibilidade da ideia de “Revolução Burguesa”, a autora realiza um estudo minucioso da composição das assembleias revolucionárias ao nível local e nacional, apresentando um quadro empiricamente consistente do que teria sido a “burguesia” revolucionária. Cabe destacar que, em português e também pela Companhia das Letras, está disponível outro de seus trabalhos, A Invenção dos Direitos Humanos, no qual ela mostra com incomparável inteligência a relação entre a literatura oitocentista e ascensão da moderna ideia de direitos humanos.
LEUWERS, Hervé. Robespierre. Fayard, 2014.
Trata-se de uma das biografias mais bem documentadas a respeito do mais conhecido e controverso revolucionário francês (dentre as boas biografias de Robespierre, poderíamos também mencionar os trabalhos de Michel Biard e Philie Bourdin, de Jean-Clemént Martin e de Peter McPhee). A partir de um impressionante trabalho com fontes primárias, Hervé Leuwers, professor da Universidade de Lille, desmonta várias lendas a respeito do autor (como a de que ele teria se encontrado com Luís XVI enquanto jovem, mito acriticamente reproduzido por trabalhos como o de Ruth Scurr) e busca uma leitura equilibrada a respeito do advogado de Aras, a qual se afaste tanto da “lenda obscura” (segundo a qual ele seria ditador, megalomaníaco e responsável pelo terror) quanto da “lenda dourada” (que enxerga nele tão somente um herói em defesa das causas sociais). Ainda do mesmo autor, gostaria de destacar o livro La Révolution française, excelente síntese do processo revolucionário (a meu ver, a melhor, ao lado dos mencionados livros e Martin e de Popkin), publicado em 2020 pelas Presses universitaires de France.
FLORENZANO, Modesto. Lições de história moderna (séculos XV a XX). São Paulo: Intermeios, 2021.
Não há como pensar na produção a respeito da Revolução Francesa no Brasil sem mencionar os trabalhos do docente aposentado da Universidade de São Paulo, Modesto Florenzano, um dos pioneiros no estudo do tema em nosso país. Nesse sentido, seu livro mais recente, Lições de História Moderna, embora não trate unicamente de Revolução Francesa, apresenta de forma concisa os resultados de suas pesquisas elaboradas em mais de quatro décadas, com destaque para seus estudos sobre alguns protagonistas e/ou intérpretes da Revolução, como Edmund Burke, Thomas Paine, Alexis de Tocqueville e François Furet.
É importante destacar também os trabalhos oriundos de doutorados orientados por Florenzano, como as obras de Josemar Machado de Oliveira, professor da Universidade Federal do Espírito Santo, bem como os trabalhos de Miguel Nanni Soares (baixe aqui). O livro do professor Machado de Oliveira, O père duchesne no interior da revolução democrática, foi publicado em 2017 pela editora Cousa, ao passo que a tradução feita por Nanni Soares das Considerações sobre a França de Joseph de Maistre foi publicada em 2022 pela editora Resistência Cultural.
SERNA, Pierre. Como animales: historia política de los animales durante la Revolución francesa (1750-1840). Prensas de la Universidad de Zaragoza, 2019.
Professor da universidade de Paris I – Panthéon-Sorbonne, Pierre Serna é responsável por dar ênfase a um novo olhar a respeito da Revolução Francesa, qual seja, a questão dos animais na Revolução Francesa. A obra aborda a questão por distintos caminhos: ela trata tanto dos movimentos e intelectuais que discutem o problema dos animais e seus direitos quanto as medidas específicas da Revolução Francesa a esse respeito, como a maneira pela qual os revolucionários lidaram com os animais reais (incluindo a trágica morte do Rinoceronte de Versalhes) e a criação do Zoológico Nacional em 1793. Enquanto alguns passam a ver o zoológico como instrumento de ciência e diplomacia, outros buscavam uma solidariedade que ultrapassasse os direitos humanos, incluindo, por exemplo, a dieta vegetariana como garantidora do respeito último aos animais.
COLLEY, Linda. A letra da lei. Guerras, constituições e a formação do mundo moderno. Editora Zahar, 2022.
Nas décadas de 1950 e 1960, um debate fundamental na historiografia buscava pensar se a Revolução Francesa era um fenômeno profundamente específico e “nacional” ou se ela poderia ser entendida a partir de uma “Era das Revoluções Democráticas”. O debate envolveu intelectuais como Robert Palmer, Jacques Godechot, Hannah Arendt, Eric Hobsbawm e Albert Soboul. Se hoje a historiografia tem certo cuidado o uso de palavras-conceito como “Revoluções Atlânticas” ou “Ocidentais”, é verdadeiro que a ideia de uma “Era das Revoluções” ganhou novo fôlego a partir da discussão sobre a história global. Um exemplo desse movimento é o texto The Age of Revolutions in Global Context, c.1760-1840, organizado por David Armitage e Sanjay Subrahmanyam, que pensa a Era das Revolução em uma dinâmica verdadeiramente global, incluindo regiões supostamente “remotas” como a ilha de Java. Mais recentemente, é preciso destacar o premiado trabalho de Linda Colley, sem dúvidas uma obra-prima da historiografia contemporânea.
A obra da professora de Princeton busca entender a história do constitucionalismo em dinâmica global, tendo como argumento principal a ideia de que nossas modernas ideias de Constituição devem muito não apenas às revoluções, mas também às guerras e suas dinâmicas. Desse modo, não se trata de um livro sobre a Revolução Francesa, e é precisamente por fazer parte desse movimento de “descentramento” que o trabalho figura nesta lista: a autora não desmerece a história da Revolução Francesa, que tem as merecidas páginas em seu livro, mas deixa claro que nossas modernas ideias de lei devem muito também a outras tradições. Assim, o constitucionalismo japonês, havaiano, tunisiano, haitiano, entre outros, ganham belíssimas páginas nesse livro.
SAES, Laurent de Azevedo. A Sociedade dos Amigos dos Negros. A Revolução Francesa e a Escravidão. 1788-1802, Editora Prismas, 2016
Texto oriundo de sua tese de doutoramento na Universidade de São Paulo, A Sociedade dos Amigos dos Negros. A Revolução Francesa e a Escravidão é um extenso e original estudo sobre o problema da escravidão na Revolução Francesa – salvo engano, trata-se do primeiro trabalho de fôlego sobre o tema no Brasil. O trabalho será um excelente guia para entender os movimentos revolucionários e suas distintas políticas a respeito do tema.
Como citar esta bibliografia comentada
CARVALHO, Daniel. Nova historiografia da Revolução Francesa: uma bibliografia comentada. In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/nova-historiografia-da-revolucao-francesa/. Publicado em: 13 fev. 2023. ISSN: 2674-5917.