Passados mais de 60 anos do golpe de 1964, alguns aspectos da ajuda logística e militar do governo norte-americano aos conspiradores – a conhecida Operação Brother Sam – ainda não foram pesquisados.1 Eu me refiro, especialmente, à dimensão política dessa ajuda, que não se expressa na operação em si, mas em seu planejamento, que começou em 1963.2
Este planejamento previa não apenas o envio da força-tarefa naval, mas também estabelecia uma tentativa de “legitimação” da derrubada do presidente João Goulart – que deveria ser feita a partir da instituição de um “estado de beligerância” proclamado por um dos governadores brasileiros. Isso permitiria, como de fato acabou acontecendo, que o governo norte-americano reconhecesse imediatamente o “novo governo” brasileiro.
O governador que desempenhou esse papel foi Magalhães Pinto, de Minas Gerais. Há algumas evidências que demonstram a articulação de Magalhães e outros brasileiros com os norte-americanos, tanto no desenvolvimento dessa estratégia política, quanto no lançamento da operação logístico-militar – o que põe por terra o último argumento dos que negavam a participação de brasileiros na Brother Sam – mas o tema precisa de maiores esclarecimentos.
Apoio chocante
A ajuda norte-americana sempre foi minimizada. A hipótese de invasão do Brasil por militares dos Estados Unidos da América em apoio aos golpistas de 1964 é tão chocante que muitos preferem considerá-la inexistente, a despeito da grande quantidade de documentos que a comprovam.
Boa parte desses documentos está disponível na internet, tanto no site do arquivo nacional norte-americano (National Archives and Records Administration), quanto na iniciativa da Brown University e da Universidade Estadual de Maringá chamada Opening the Archives, além de outros repositórios, como as publicações intituladas Foreign Relations of the United States. Entretanto, ainda há muitos documentos não divulgados, assim como trechos tarjados em papéis já desclassificados. Além disso, a leitura desses documentos apresenta algumas dificuldades.
Em relação à desclassificação de novos documentos e de trechos tarjados, seria preciso um trabalho mais incisivo da parte de pesquisadores e da nossa diplomacia no sentido de se obter a liberação de novos documentos e a desclassificação de trechos ainda censurados, sobretudo os que mencionam autoridades brasileiras. Na documentação sigilosa de natureza diplomática, são consideradas “sensíveis” as referências a pessoas, especialmente altas autoridades, como Magalhães Pinto (que chegou a ser ministro das Relações Exteriores no governo do marechal Costa e Silva).
Decifrando siglas
Por outro lado, quem se aproxima desses papéis pela primeira vez fica impactado pela abundância de siglas que caracterizam a documentação sigilosa de origem militar. Por exemplo, quem expediu o telegrama classificado como top secret de 31 de março de 1964, às 20:58 (veja figura), foi CINCLANTFLT, que o direcionou para RUECBAL/COMSECONDFLT. Ou seja, o telegrama foi enviado pelo Commander in Chief, Atlantic Fleet (Comandante em Chefe da Frota do Atlântico) para o Commander of the Second Fleet (Comandante da Segunda Frota). É provável que a sigla RUECBAL se refira à Regional Unit for Emergency Coordination, Baltic (Unidade Regional para Coordenação de Emergência no Báltico).
Outras siglas que aparecem apenas nesse pequeno trecho: NOTAL significa que o telegrama não precisa ser enviado para todos os endereços listados; OPORD significa ordem de operação; COMCARDIV 4 é o comandante n.º 4 da divisão de porta-aviões (que conduziu o porta-aviões “Forrestal”); COMDESDIV 162 indica o comandante n.º 162 da divisão de contratorpedeiros (destroyers);

COMDESDIV 262 é o comandante n.º 262 da mesma divisão; NORVA é a base naval de Norfolk; 011200Z significa dia 1º (de abril), às 12h, conforme o horário Zulu e CHOP significa change of operations (no caso, a ordem para mudar o controle das operações dos navios mencionados para o comandante do “Forrestal”). Esse trecho do telegrama também menciona o navio petroleiro de reabastecimento Turckee AO147, cujo nome correto era “Truckee AO147”, e os contratorpedeiros “Charles R. Ware DD865”, “Allen M. Sumner DD692”, “Bruce L Harwood DD861” e “W. C. Lawe DD763”.
Ou seja, para se ler corretamente uns poucos parágrafos, é preciso elaborar um verdadeiro glossário.
A dimensão da Operação Brother Sam
A grande dimensão da Brother Sam fica visível pela quantidade de contratorpedeiros que acompanhou o porta-aviões “Forrestal”, além dos três petroleiros (“Santa Ynez”, “Chepachet” e “Hampton Roads”) abastecidos com gasolina, querosene de aviação, combustível para jatos e diesel. A hipótese de desembarque de tropas e munições – que sempre foi negada por autoridades norte-americanas e brasileiras – fica clara ao se identificar o volume de armas e munições embarcadas a serem distribuídas para 50 a 60 mil forças estaduais (17.000 carabinas, 2.500 submetralhadoras, 1.500 rifles, 1.200 metralhadoras e 350 lançadores de foguetes). Os aeroportos da Pampulha e de Viracopos seriam usados porque estavam sob controle do “lado democrático” (isto é, dos conspiradores). Tudo isso está nos documentos disponíveis.
No dia 27 de março, quatro dias antes do golpe, o adido militar norte-americano relatou que os conspiradores faziam diversos apelos pedindo a ajuda dos Estados Unidos. Na véspera do golpe, o secretário de Estado disse ao embaixador Lincoln Gordon que a entrega de armas por navio demoraria alguns dias, mas que, por via aérea, seria rápida, desde que houvesse aeroportos adequados ao pouso e decolagem de jatos. O secretário pediu uma lista de armas e munições que seriam as mais necessárias. Ele garantiu ao embaixador que não ficaria paralisado devido a “sutilezas teóricas” (a crise e o constrangimento que haveria caso a operação fosse descoberta).
Gordon, no dia seguinte, disse ao secretário que o problema mais urgente era o de combustível e que a lista de armas e munições estava sendo providenciada. Como já foi dito, os aeroportos adequados foram informados. Na noite do dia 1º de abril, Magalhães Pinto pediu ao cônsul norte-americano em Minas Gerais que agradecesse ao embaixador pelo apoio. No dia seguinte, diante da rápida vitória dos conspiradores, o embaixador escreveu ao Departamento de Estado dispensando o suporte militar, mas pediu algum tempo para avaliar a necessidade de “material” – não esclarecendo qual material, combustível ou armas.
A participação de Magalhães Pinto e de outros brasileiros na montagem da Brother Sam é a maior lacuna nos estudos sobre o tema. Sabemos, por exemplo, que o general de brigada José Pinheiro de Ulhoa Cintra, dias antes do golpe, ficou de informar o embaixador, por meio do adido militar, sobre a necessidade de armas, o que já demonstra essa participação. Mas é claro que Magalhães Pinto e outros tiveram papel relevante.
O ineditismo de documentos secretos sempre chama atenção, mas os historiadores sabem que o mais importante é a pesquisa constante que permite a identificação de novos problemas.
Notas
1 Os trabalhos mais antigos disponíveis são os de PARKER, Phyllis R. 1964: o papel dos Estados Unidos no golpe de estado de 31 de março. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. CORRÊA, Marcos Sá. 1964 visto e comentado pela Casa Branca. Porto Alegre: L&PM, 1977. Leacock, Ruth. Requiem for Revolution: The United States and Brazil, 1961-1969. Kent: The Kent State University Press, 1990 e o meu próprio: FICO, Carlos. O grande irmão da Operação Brother Sam aos anos de chumbo: o governo dos Estados Unidos e a ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, além dos livros de Luiz Alberto Moniz Bandeira. Trabalhos mais recentes que, entretanto, não trazem novidades são POLI. Riccardo de. Operation “Brother Sam” and the Role of the United States in the Coup D’État in Brazil. Bacharelado em Ciência Política, Relações Internacionais e Direitos Humanos da Università degli Studi di Padova. 2022. FARIA, Thamires Ritter de. A participação dos Estados Unidos no golpe de estado de 1964 no Brasil: a Operação Brother Sam. Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Curso de Relações Internacionais da UFGD. Dourados, 2018. LARA, José Victor de. A participação dos Estados Unidos no golpe civil-militar de 1964: breves apontamentos para uma revisão historiográfica. Comunicação apresentada ao XV encontro Regional de História. Curitiba: UFPR, 26 a 29 de julho de 2016. BAUER, Caroline Silveira. Controle e cooperação norte-americana aos golpes civil-militares brasileiro (1964) e argentino (1976). Comunicação apresentada ao XXIV Simpósio Nacional de História. 2007.
2 Este planejamento consistiu no plano de contingência 2-61 sob responsabilidade do comandante em chefe do comando sul dos EUA que divulguei no livro mencionado na nota anterior.
Como citar este artigo
FICO, Carlos. Notas sobre a Operação Brother Sam (artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/notas-sobre-a-operacao-brother-sam. ISSN: 2674-5917. Publicado em: 19 fev. 2025.