Nosferatu: um olhar sobre os medos da modernidade

O que o filme Nosferatu tem a ver com os medos sociais dos séculos XIX e XX? Para o historiador Filipe Dantas de Oliveira Jota, filme é alegoria para vida moderna, marcada por ansiedades, traumas e tensão.
20 de janeiro de 2025
Cena de Nosferatu: homem está diante da câmera, próximo de dois caixões. A foto tem filtro azul e não conseguimos ver direito seu rosto.
Nosferatu ganha adaptação de Robert Eggs em 2024. Foto: divulgação.

A sociedade industrial da primeira metade do século XIX viu surgir um fenômeno até então inédito na história: o crescimento populacional combinado com o êxodo rural em escala maciça. A apropriação de terras comuns e a demanda crescente por mão-de-obra atraíram muitos trabalhadores às cidades, que, sem infraestrutura adequada, tornaram-se ambientes insalubres e marcados pela miséria.

Enquanto o nacionalismo e o imperialismo consolidavam a hegemonia do Estado nacional e do capitalismo sobre povos considerados “inferiores” e “selvagens”, cresciam os temores de que esses desafios comprometessem o progresso conquistado pela Revolução Industrial e pela ciência. Assim, surgia a pergunta: estaria a sociedade mais avançada da história destinada ao declínio ou poderia a ciência resolver esses problemas?

Poucos sabem, mas Nosferatu – o clássico do cinema de terror, reimaginado em 2024 – explora essas e outras questões, refletindo sobre os temores e inseguranças que permeiam o imaginário social de uma época. Neste artigo, procuro mostrar como o filme Nosferatu (2024) dialoga com os medos sociais dos séculos XIX e XX, questionando sua permanência e relevância na sociedade contemporânea.

A questão populacional e o receio do futuro

Segundo o historiador Reinhart Koselleck, a transição do século XVIII para o XIX trouxe uma mudança na percepção do tempo. Eventos como a Revolução Industrial e a Revolução Francesa, aliados aos avanços científicos, fizeram com que o tempo passasse a ser vivenciado de forma mais rápida e intensa. Mudanças na natureza e nas instituições políticas alimentavam a crença na capacidade humana de resolver problemas pela razão, de modo que, pela primeira vez, pessoas percebiam que o futuro próximo não seria uma mera repetição do passado.

Nesse cenário, surgiram dois grupos de intelectuais: os otimistas, que celebravam as conquistas da racionalidade, e os pessimistas, que temiam os desafios trazidos pela modernidade. Entre esses desafios estava a questão populacional, sistematicamente abordada na obra de Thomas Malthus (1766-1634).

Para Malthus, a sociedade de sua época havia atingido o auge do progresso material, mas o mesmo não ocorrera no campo moral, especialmente entre os mais pobres. Ele acreditava que a alta natalidade entre os pobres ameaçava a ordem social, pois o crescimento populacional superaria os recursos disponíveis para sustentá-lo. Por isso, Malthus se posicionava contra a caridade e as políticas sociais, propondo o controle populacional das camadas que eram, ao seu ver, “inferiores”.

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Um professor de história de 39 anos entra de carro em um túnel, mas nunca mais consegue sair dele. Ele não foi sequestrado e nem ficou perdido. O túnel simplesmente não tinha fim. Confira aqui o conto do historiador Bruno Leal, professor da UnB e fundador do Café História. Você nunca mais vai ver um túnel da mesma forma.

As teorias de Malthus podem parecer alarmistas hoje, considerando os avanços tecnológicos e científicos na agricultura. No entanto, ao longo do século XIX, elas se tornaram um credo secular, influenciando as ciências sociais e a biologia. Entre as correntes inspiradas no malthusianismo, destacam-se o darwinismo social e a eugenia.

O sociólogo britânico Herbert Spencer (1820-1903), o principal defensor do darwinismo social, argumentava que a sociedade capitalista seguia a mesma lógica descrita por Charles Darwin em A origem das espécies (1858). Isto é, da mesma forma que a natureza favorece a sobrevivência dos “mais fortes” ou bem adaptados, o capitalismo, segundo Spencer, favorecia o sucesso econômico dos indivíduos física e moralmente superiores. Já Francis Galton (1822-1911), estudioso vitoriano e primo de Darwin, acreditava que o progresso da sociedade era ameaçado pela alta natalidade de indivíduos “inferiores”. Assim, seria necessário estimular a procriação daqueles que eram “superiores” em detrimento do restante, dando origem a uma doutrina que ele chamou de eugenia.

A eugenia e o darwinismo social são frequentemente citados como exemplos de uma ideologia amplamente difundida na época: o cientificismo. Caracterizada pela crença no potencial redentor da ciência, essa ideologia via o pensamento racional como um instrumento neutro de compreensão da realidade, desprezando a influência de fatores subjetivos como interesses econômicos e crenças pessoais. Assim, as teorias cientificistas foram úteis aos ideólogos do capitalismo e do imperialismo, fornecendo uma justificativa “objetiva” e “universal” para a dominação de outros povos, imune a questionamentos.

Enquanto o cientificismo ganhava popularidade entre a classe média e os industriais, outra ideologia também se destacava na Europa, intensificando as tensões geopolíticas às vésperas da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Trata-se de uma vertente racista do nacionalismo, segundo a qual certos povos pertenciam a uma matriz racial “superior”, postulando que a “pureza” de uma nação seria ameaçada pela mistura com povos “inferiores”. Para proteger a integridade nacional, os adeptos desse pensamento argumentavam que o Estado deveria controlar a entrada de elementos estrangeiros.

De Drácula a Nosferatu (1922): sinfonia de medos

Publicado em 1897, Drácula, o célebre romance gótico de Bram Stoker (1847-1912), reflete os medos coletivos do século XIX. Jonathan Harker, um jovem advogado, viaja aos Montes Cárpatos, na Transilvânia, para ajudar o enigmático conde Drácula a adquirir uma propriedade na Inglaterra. Após se mudar para Londres, Drácula espalha o terror ao atacar vítimas e tentar subjugar Mina, a noiva de Harker. Liderado pelo professor Van Helsing, um grupo se une para derrotar o vampiro, fazendo uso da ciência e de saberes tradicionais. Após uma intensa perseguição, o conde é destruído em sua terra natal.

O romance explora temas como desejos reprimidos, fantasias homoeróticas e discursos xenofóbicos. Nesse sentido, Drácula simboliza o estrangeiro dissimulado que ameaça a sociedade ao corromper o sangue e os costumes de seus integrantes, multiplicando-se como uma praga. Sob essa chave, opõe-se o Ocidente civilizado e racional, representado pelos heróis, e o Oriente profano e autoritário, personificado pelo conde.

Também convém ressaltar que a década de 1890 foi marcada pelo crescimento das tensões entre as potências imperialistas, sobretudo em torno do local onde se passa a história. A obra reflete ainda o fascínio da época por questões esotéricas e espirituais, sugerindo um mundo oculto que desafia os limites da ciência e da razão, uma ideia que ressoava fortemente em vários círculos da elite britânica.

Mais de vinte anos após a publicação do romance, durante os primeiros anos da turbulenta República de Weimar na Alemanha, um diretor chamado Friedrich W. Murnau (1888-1931) decidiu elaborar sua própria versão da obra de Bram Stoker. O resultado foi Nosferatu (1922), um clássico do cinema de terror e do expressionismo alemão.

A maioria das alterações feitas por Murnau em Nosferatu foi sutil. Os nomes dos protagonistas foram mudados, enquanto alguns personagens foram adicionados ou modificados. A história é ambientada na fictícia cidade de Wisborg, na Alemanha dos anos 1830.

Thomas Hutter (equivalente a Jonathan Harker) é o advogado encarregado de facilitar a compra de um imóvel pelo conde Orlok (Drácula). O que Hutter desconhece é que seu chefe, Herr Knock, é um devoto serviçal do conde, encarregado de preparar sua chegada à cidade. Quando Orlok chega a Wisborg, traz consigo uma praga disseminada por ratos, causando a morte de muitos habitantes. Seu objetivo é seduzir Ellen (Mina) para espalhar sua maldição e aumentar seu poder. No final, o conde consegue atacá-la durante a noite. Porém, após ter passado toda a madrugada sugando seu sangue, o monstro não percebe o nascer do sol. Enfraquecido pela luz, o monstro morre.

Apesar do desfecho trágico para Ellen, não é evidente em que medida seu sacrifício foi voluntário ou acidental, dividindo opiniões em relação ao grau de agenciamento da personagem sobre o seu destino e o da humanidade. Além disso, é importante considerar os significados atribuídos à praga trazida pelo monstro.

O filme foi produzido pouco após o morticínio da Primeira Guerra Mundial e a pandemia de gripe espanhola, que ceifaram milhões de vidas. Ex-soldados, mutilados e traumatizados, passaram a vagar pelas cidades como verdadeiros “mortos-vivos” aos olhos de muitos. No imaginário europeu, os ratos também remetem à Peste Bubônica da Idade Média, evocando temores de decadência e a impotência do homem moderno diante das forças da natureza. Por último, também podem ser uma alusão aos sentimentos xenofóbicos, que à época cresciam com a extrema direita.

O novo filme Nosferatu (2024) e os medos atuais

Nosferatu (2024) foi dirigido por Robert Eggers, o cineasta por trás de sucessos de crítica como A Bruxa (2015) e O Farol (2019). Assim como outros filmes do mesmo diretor, a obra apresenta uma edição de som brilhante, um visual gótico memorável, atuações excepcionais e direção de arte impecável. Além dos méritos técnicos, o filme se destaca pela relação central entre Ellen (Lily-Rose Depp) e o conde Orlok (Bill Skarsgård).

Ambos têm uma íntima conexão emocional, iniciada na infância da protagonista como algo prazeroso, mas que se transformou em angústia à medida que ela crescia. O monstro se revela nos sonhos de Ellen, nos quais ele a seduz e a possui, afirmando que ela foi a responsável por seu despertar. Esse ciclo teria sido interrompido quando Ellen se casou com Thomas Hutter (Nicholas Hoult), mas retornou em um momento posterior, tornando-se ainda mais destrutivo.

O professor Albin Eberhart (Willem Dafoe), estudioso das artes ocultas e da medicina, explica a ligação entre ambos como resultado da predisposição de Ellen aos “prazeres inferiores” da carne, o que a tornava mais suscetível à manipulação do monstro. Assim, Orlok simboliza a vergonha feminina associada à repressão dos desejos sexuais desde a juventude, contrapondo a vida segura oferecida pelo casamento às tentações que, desde a infância, se manifestam no plano inconsciente dos desejos. Por isso, como Ellen “despertou” o conde, apenas ela pode destruí-lo.

Outra interpretação no campo das relações de gênero aborda a rivalidade entre dois homens pela mesma mulher. Um deles assume o papel do marido carinhoso, mas fraco e impotente; já o outro representa o homem idealizado, presente nas fantasias sexuais reprimidas. A contraposição entre as duas imagens de masculinidade desperta um receio inconsciente de emasculação em Thomas Hutter. O conflito fica claro em uma cena específica, quando Ellen, semiconsciente e sob o encanto da criatura, instiga a ira do marido ao dizer que este seria incapaz de lhe dar tanto prazer quanto o conde.

A nova versão também explora a oposição entre ciência e superstição, tema central da obra original. Friedrich Harding (Aaron Taylor-Johnson), amigo de Hutter, descarta as teorias sobrenaturais apresentadas pelo professor Eberhart, afirmando que tudo teria uma explicação racional. “Não estamos mais na Idade Média”, exclama Harding, que, mesmo preocupado com o avanço da enfermidade, se recusa a admitir a existência do desconhecido. Esse conflito entre razão e superstição reflete a tensão entre o moderno e o pré-moderno, destacando a visão de indivíduos que, por serem homens, instruídos e racionais, seriam “menos suscetíveis” às tentações profanas e irracionais.

Ao contrário do original de 1922, o final deixa claro que o sacrifício de Ellen é uma escolha voluntária e consciente. Eberhart, o único personagem ciente de sua decisão, lamenta o desfecho trágico. Para o professor, as predisposições de Ellen não a tornavam “inferior” aos homens ou às mulheres de sua época, mas sim especiais, pois eram um dom que a permitia explorar ideias e sensações para além do mundo físico.

Por fim, o filme nos convida a refletir sobre como o terror retratado na tela dialoga com os medos do passado e do presente. Por sinal, é significativo que uma história clássica, centrada no temor do encontro com o Outro, ganhe uma nova adaptação no contexto atual, recentemente marcado por uma pandemia, além de debates sobre imigração e identidade nacional. Além disso, os últimos anos trouxeram críticas aos papéis tradicionais de gênero, bem como a intensificação da crise climática e o ressurgimento de ideias darwinistas e malthusianas, com teorias conspiratórias.

De fato, não encontraremos respostas definitivas em um filme, mas uma das principais funções sociais da arte é, pelo menos, nos instigar a buscá-las.

Referências

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição para a semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2012.

GOULD, Stephen. A falsa medida do homem. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2014.

NOSFERATU. Direção: F. W. Murnau. [S.l.]: Eureka Entertainment, 2013. 1 disco Blu-ray (97 min), preto e branco, mudo. Série Masters of Cinema. Comentário em áudio por David Kalat.

Como citar este artigo

JOTA, Filipe Dantas de Oliveira. Nosferatu: um olhar sobre o cientificismo e os medos sociais da modernidade. (Artigo). In: Café História. Disponível em: https://www/cafehistoria.com.br/nosferatu-e-os-medos-da-modernidade. ISSN: 2674-5917. Publicado em: 19 jan. 2025.

Filipe Dantas de Oliveira Jota

Bacharel e mestre em História pela Universidade de São Paulo (USP), com pesquisa focada no movimento eugênico e no imaginário utópico na modernidade. Atua como professor de História no ensino básico, com interesse em temas como cultura pop, identidade e memória. Quando não está lecionando ou estudando Educação Histórica, dedica-se a reflexões sobre cinema e jogos eletrônicos.

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