“Nickel Boys”, drama histórico de 2024, dirigido por RaMell Ross (Hale County, 2018) e coescrito com Joslyn Barnes (Harvest, 2024), é baseado no romance de 2019 de mesmo nome escrito por Colson Whitehead , ganhador do Prêmio Pulitzer. O filme explora as experiências angustiantes de dois jovens afro-americanos, Elwood Curtis (Ethan Herisse) e Jack Turner (Brandon Wilson), na chamada Nickel Academy, uma escola para “endireitar” jovens rebeldes e/ou que cometiam pequenos delitos, na Flórida dos anos 1960.
O romance de Colson Whitehead é baseado nos horrores reais da infame Dozier School for Boys na Flórida, os quais vieram à tona em sua totalidade somente após seu fechamento, apesar das práticas desumanas que imperavam no dia a dia do reformatório serem de conhecimento de todos, principalmente dos governantes e administradores da região.
Dozier School for Boys
A escola Dozier, considerada oficialmente uma academia para a reabilitação de jovens infratores, foi fundada em 1900 na cidade de Marianna, no estado norte-americano da Flórida, e operou por mais de um século até ser fechada em 2011. Porém, em realidade, Dozier virou sinônimo de abusos extremos, racismo e mortes injustificadas de jovens internos. Com a justificativa de reeducar “meninos problemáticos” o local se tornou um centro de abuso sistemático.
A escola era também segregada racialmente – tinha uma ala para jovens negros, pardos e imigrantes e outra para os brancos. Os alunos negros sofriam punições infinitamente mais severas e a escola contava com um cemitério clandestino onde as suas milhares de vítimas dos abusos eram secretamente enterradas.
Os tipos de abusos praticados eram variados e iam de espancamentos, confinamento solitário por dias, abuso sexual e até mesmo experimentos médicos ilegais onde era forçado o teste de drogas nos meninos. Em especial, era corriqueiro o uso do espancamento em um local chamado “White House” onde os meninos eram brutalmente chicoteados.
Em 2012, cientistas forenses descobriram 55 túmulos não identificados de alunos nos entornos da instituição. Muitos desses corpos nunca foram identificados. Os túmulos não identificados desempenham um papel central na exposição do passado sombrio da instituição. A
falta de responsabilização pelos crimes ainda perdura e sobreviventes lutaram pelo reconhecimento do Estado das atrocidades cometidas, somente em 2019 o governo da Flórida fez um pedido formal de desculpas aos familiares dos desaparecidos e aos sobreviventes, porém, até hoje, nenhum funcionário foi julgado ou condenado pelos seus crimes. Temos aqui mais um capítulo de uma história de horror sendo varrida para debaixo do tapete por políticos, não raramente, brancos.
The Nickel Boys
Em sua representação da Nickel Academy, RaMell Ross incorporou diversos fatos e situações reais ocorridos na Dozier School. Usando a base sólida oferecida pela obra de Colson Whitehead, Ross adaptou o roteiro de forma intensa e brilhante. Optando por um espaço limitado de tempo em sua exposição do reformatório fictício o filme se concentra na década de 1960 e inclui a era das lutas pela igualdade de Direitos Civis e o fim da segregação, a presença inspiracional de Martin Luther King Jr. e os protestos norte-americanos que inflamaram uma reação abjeta e violenta da polícia da Flórida.
Em “Nickel Boys”, Ross utilizou vários elementos de relatos reais de sobreviventes no roteiro, como a chamada “White House”, a casa de tortura dos jovens, os locais de isolamento como punição e os desaparecimentos sem explicação. Porém, fez a opção de não abordar os abusos sexuais e a parte das alegações de testes clínicos de uma forma abrangente, o que contraria os extensos depoimentos de sobreviventes da Dozier.
Por outro lado, Ross não falhou em nos passar a situação real da impotência dos alunos diante de seus algozes e mostra de forma realista o limbo legal onde os jovens eram abandonados à sua própria sorte.
Ross também optou por criar personagens que espelham as experiências reais de vítimas do sistema reformatório. De forma condensada, ele aglomerou a experiência de milhares em alguns poucos personagens. Elwood e Turner passam pela maioria das aflições físicas e psicológicas, enquanto Spencer (Hamish Linklater) como o chefe da instituição é a personificação de funcionários corruptos e Harper (Fred Hechinger) incorpora todas as características sádicas dos funcionários predatórios da equipe. Do lado do “bem” está incansável Hattie, a avó que criou Elwood e nterpretada primorosamente por Aunjanue Ellis-Taylor e aglomera todas as características de luta e esperança dos familiares dos meninos.
A narrativa alterna entre as décadas de 1960 e o presente, seguindo a jornada de Elwood, de um adolescente idealista a um homem marcado por suas experiências traumáticas na Nickel Academy. A adaptação cinematográfica enfrenta o desafio de traduzir as linhas do tempo duplas e os monólogos internos em uma mídia visual.
Ross e Barnes com a colaboração do diretor de fotografia Jomo Fray (Runner, 2022), empregam uma cinematografia única em primeira pessoa, permitindo que o público experimente os eventos através dos olhos dos protagonistas. Esta técnica imersiva aprofunda o impacto emocional, tornando as injustiças e brutalidades mais imediatas e pessoais, porém essa opção estética resulta em uma sensação claustrofóbica na experiência, o que pode gerar desconforto para algumas pessoas.
A montagem, assim como a fotografia, tem papel fundamental, intercalando imagens de arquivo dos movimentos civis, de figuras de destaque como Luther King e das muitas violências sofridas pelos negros norte-americanos, principalmente nos estados do sul do país.
O vai-e-vem dos flashbacks pode também colaborar para pequenas confusões temporais, principalmente quando Elwood é adulto e a câmera opta pelo ponto de vista ligeiramente atrás da nuca do personagem e não o da câmera sendo usada como o olho humano (e muitas vezes mimetizando seu movimento aleatório).
Essa decisão foi um risco que o diretor assumiu mesmo antes de criar o storyboard, assim como um editor que compreendesse a visão e montasse o filme de acordo com sua proposta intimista, encontrando em Nicholas Monsour (Nope – 2022) a parceria ideal.
Prêmios e reconhecimento
“Nickel Boys” estreou no 51º Festival de Cinema de Telluride em agosto de 2024 e recebeu aclamação da crítica. Com sua narrativa inovadora, performances poderosas e retrato inflexível das injustiças históricas, a obra nos deixa embasbacados, com raiva, entristecidos. A perspectiva em primeira pessoa foi essencial para criar uma experiência imersiva e emocionalmente ressonante.
O filme foi nomeado um dos 10 melhores filmes de 2024 pelo American Film Institute e recebeu inúmeras honrarias, incluindo uma indicação para Melhor Filme – Drama no 82º Golden Globe Awards e uma indicação para Melhor Filme no 97º Academy Awards. Porém “Nickel Boys” merece bem mais do que isso. Merece mais prêmios estéticos e técnicos e, sem dúvida, mereceria uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante para Aunjanue Ellis-Taylor pela sua intensa, terna e comovente interpretação da avó Hattie.
“Nickel Boys” é um retrato poderoso e preciso dos horrores reais da Escola Dozier, garantindo que essa parte sombria da história nunca seja esquecida. É um filme imperdível para aqueles que buscam um cinema profundo e instigante que não deixa cair em esquecimento os horrores dos chamados centros de reeducação e reabilitação colonialistas e higienistas. Por fim, “Nickel Boys” é inovador e ousado em sua cinematografia, para os que leram o livro, o filme é uma perfeita adaptação, para os que forem direto para o filme a montagem pode deixar de fora algumas partes mais descritivas que ajudam a nos localizar na trama sem a atenção plena a elementos sutis.
Infelizmente, o filme não terá estreia nos cinemas brasileiros. Vai entrar direto no catálogo da plataforma de streaming Amazon Prime no dia 27 de fevereiro.