O ano de 2025 marca os 80 anos do fim do Estado Novo, o regime autoritário que Getúlio Vargas comandou entre 1937 e 1945. Como avaliar aquele período histórico? Seríamos muito benevolentes com a sua ditadura? Essas e outras questões provocadoras estão nesta entrevista com Thiago Cavaliere Mourelle, historiador do Arquivo Nacional, doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Mourelle é crítico do termo “Era Vargas”. Para ele, o termo tende a sacralizar a figura de Getúlio Vargas e reflete um modelo antiquado de historiografia, que costuma destacar grandes personagens como símbolos de períodos históricos. “Minha defesa sobre a não utilização do termo ‘Era Vargas’ não tem o objetivo de diminuir a importância de Getúlio na nossa história, mas de me manter condizente com a forma que escrevemos história atualmente, além de humanizar a figura de Vargas”. Segundo Mourelle, a escolha das palavras é um ato político, que contribui para questionar as estruturas de poder e ressignifica o passado.
Em nossa conversa, Mourelle também falou sobre a diferença de percepção pública entre o Estado Novo (1937-1945) e a ditadura militar (1964-1985). O historiador atribui essa disparidade à maior visibilidade da ditadura militar, que se tornou um ponto focal de debates na sociedade contemporânea, especialmente com o revisionismo defendido por figuras como Jair Bolsonaro. “Não nos cabe ter uma ditadura ‘de estimação’”, adverte Mourelle. Para ele, a ausência de investigações sobre os crimes do Estado Novo naturaliza a violência estatal e a permanência de uma visão romântica sobre a figura de Vargas, muitas vezes associada à criação de leis trabalhistas e à sua morte trágica.
O Vargas do período democrático também aparece na entrevista. Para Mourelle, o suicídio de Vargas em 1954 não apenas selou um capítulo dramático de sua vida, mas também prolongou a influência política que moldaria a década seguinte. “As medidas que ele tomou nos 18 anos em que governou o país deixaram marcas profundas que se estendem até hoje”, afirma. O historiador sugere que, ao estudarmos esse período, podemos compreender melhor questões atuais como a polarização política, o fortalecimento de estatais e a relação com movimentos autoritários.
Thiago Mourelle é uma das principais referências nos governos Vargas. É autor de diversos livros sobre o período, como “O Brasil a caminho do Estado Novo” (Ed. 7 Letras, 2020). Ele também é líder do Grupo de Pesquisa Dimensões do Regime Vargas. Confira a entrevista:
Você costuma criticar o uso da expressão “Era Vargas”. O que exatamente o incomoda nesse termo, e como ele impacta como compreendemos esse período histórico?
A crítica a essa expressão eu ouvi pela primeira vez do professor Orlando de Barros. E concordo. Vou te explicar com dois argumentos. Grande parte de nós, professores e pesquisadores, já ouviu falar daquela coleção de livros do Eric Hobsbawm: “Era dos Extremos”, “Era das Revoluções” e assim por diante. Ela traça o perfil de períodos históricos com base em determinados acontecimentos marcantes. Porém, as tais “eras” não são definidas por um personagem específico. Mesmo a tradicional divisão da História em Moderna, Contemporânea, Medieval e Antiga traça marcos e não define uma pessoa em específico como símbolo das mudanças e transformações ao longo do tempo. Este é o primeiro ponto.
O segundo é o seguinte: utilizar “Era Vargas” é também uma forma de nos remeter àquela forma de se escrever história pautada nos chamados “grandes homens”, coisa que já foi o padrão até o século XIX e início do XX, mas que – ainda bem – deixamos para trás. Portanto, minha defesa sobre a não utilização do termo “Era Vargas” não tem o objetivo de diminuir a importância de Getúlio na nossa história, mas de me manter condizente com a forma que escrevemos história atualmente, além de humanizar a figura de Vargas, evitando essa sacralização que entendo que o termo “era” traz em si. Não podemos sacralizar Getúlio Vargas.
Acho que as palavras que escolhemos utilizar refletem não apenas nossa forma de ver o mundo, mas também relações de poder e o sentido que queremos passar ao interlocutor que nos lê e nos ouve, por isso também hoje usamos “escravizado” e “indígena”, por exemplo, ao invés de “escravo” e “índio”. Os estudos históricos são dinâmicos como a vida também é, por isso termos anteriormente utilizados acabam sendo modificados ou caem em desuso.
Sua pesquisa recente com estudantes revelou algo intrigante: enquanto 70% consideram a ditadura militar (1964-1985) “horrível”, apenas metade faz essa avaliação em relação ao Estado Novo (1937-1945). O que explica essa diferença de percepção sobre os dois regimes autoritários?
Há uma série de fatores para explicar isso. Primeiramente, a ditadura militar é algo em evidência para o grande público do que o período Vargas. Isso ocorre porque é mais recente, com muitas pessoas que viveram a época ainda vivas, além de ter se tornado alvo de intenso debate público principalmente pelo fato de políticos como Bolsonaro passarem a defendê-la abertamente, o que acentuou também o movimento contrário, de se tornar público os crimes cometidos pelo Estado, como torturas, assassinatos e repressão em geral. Então, há uma memória e também um imaginário que salienta o pós-64 como um governo que atentou contra a democracia e contra os direitos humanos. Houve, inclusive, o trabalho da Comissão Nacional da Verdade para apresentar os crimes, apontar os responsáveis e disseminar informação sobre as barbáries ocorridas, embora sem a imputação penal dos culpados em razão da Lei de Anistia.
Já o governo Vargas, primeiramente, não enfrentou qualquer apuração posterior sobre as violências cometidas pelo Estado. Chegou a ser criada uma CPI no governo Dutra, a fim de investigar torturas e outras violências cometidas, mas ela acabou não indo adiante – muito porque Vargas era uma figura extremamente influente, tanto que voltou à presidência em 1951. E, quando não se apura e não se pune, barbáries são relativizadas e até apagadas da história.
Há ainda outro ponto: fatores que concedem um olhar simpático a Getúlio, como a criação de leis trabalhistas e o final dramático de sua vida. Então, no imaginário popular, Getúlio ficou muito mais marcado pela relação vista como positiva com os trabalhadores, além de ficar marcado como um presidente que abriu mão da própria vida ao sofrer supostamente a injustiça de ser acusado de envolvimento no atentado a Carlos Lacerda que acabou matando o Major Vaz.
Eu entendo, inclusive, que nós historiadores e professores temos um pouco de responsabilidade nisso, pois inúmeras vezes vejo colegas relativizarem a ditadura de 1937, como se ela fosse aceitável. Em palavras mais claras: acho que a gente, algumas vezes, “passa pano” para Getúlio, encobrindo algumas perversidades do governo com um verniz de “foi violento, mas executou medidas importantes para o desenvolvimento social”. É um equívoco, pois, se queremos defender intransigentemente a democracia, não nos cabe ter uma ditadura “de estimação”. Não dá para se estender muito aqui, mas cabe lembrar que o governo Vargas perseguiu, deportou e prendeu inúmeros líderes do movimento operário independente, conforme meu último livro pode comprovar.
Antes da criação da CLT, houve uma violenta imposição do Ministério do Trabalho sobre o operariado e controle violento sobre os sindicatos. Porém, o que ficou para o público foi a versão criada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda, a ideia de “pai dos pobres”. Lembro outra coisa óbvia, porém muitas vezes esquecida: ditadura implica, quase sempre, em censura à imprensa e propaganda incessante do regime… Sendo a história escrita pelos vencedores, cabe a nós questioná-la e não ratificarmos a versão do DIP.
A Comissão Nacional da Verdade (CNV), instituída em 2012 pelo governo Dilma Rousseff, investigou violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988. Por que, na sua opinião, o período do Estado Novo ficou fora do escopo da Comissão?
A CNV tinha como objetivo principal a investigação dos crimes cometidos a partir de 1964, que era uma demanda da Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 2010 e também da sociedade brasileira em um momento em que estavam sendo julgados e investigados crimes ocorridos nas ditaduras latino-americanas. O Brasil era cobrado, inclusive, não só pelas organizações internacionais, mas pelas pessoas que haviam sofrido com o terrorismo de Estado nas décadas de 1960, 1970 e 1980. Por fim, a CNV recuou mais para abranger crimes cometidos contra povos indígenas, acabando por se situar no intervalo entre as Constituições de 1946 e 1988.
Além disso, devido à enorme quantidade de trabalho, devassar o período de 1930 a 1945 ficaria difícil. Creio que não foi possível retroceder mais, embora de fato seja muito importante que os crimes cometidos não apenas durante a ditadura de 1937, mas também antes dela, sejam trazidos à luz, inclusive para que a gente possa compreender em detalhes o legado que o Estado autoritário e violento deixou para o país do pós-1945.
Filinto Muller, por exemplo, famoso pelo uso da violência quando era chefe de polícia – por nove anos – durante o governo Vargas, tornou-se senador pela ARENA, sendo presidente deste partido durante os “anos de chumbo”. Portanto, a não investigação e a falta de punição perpetuam a injustiça, naturalizam a violência estatal e até mesmo incentivam a repetição das violações aos direitos humanos. Teria o regime de 1964 cometido as atrocidades que cometeu se as violações – e as pessoas que as protagonizaram – do período Vargas tivessem sido punidas? Fica a dúvida…
O suicídio de Vargas, em 1954, foi o desfecho de uma crise marcada por acusações de corrupção e pelo atentado contra Carlos Lacerda, em Copacabana. O que levou Vargas a tomar essa decisão extrema?
Isso é difícil, senão impossível de se responder. É a pergunta de um milhão de dólares (risos). Eu, como pesquisador do período há mais de 20 anos, tendo realizado monografia, dissertação, tese e pós-doc relacionados ao período, tenho minhas percepções. Mas elas são limitadas, pois é preciso entender não apenas o Vargas, homem público, presidente, mas também saber sobre o Getúlio pessoalmente, compreender o que se passava pela sua cabeça para tomar uma atitude tão drástica. Falta isso, às vezes, a nós historiadores: humanizar um pouco mais os personagens históricos.
Imagine que você é um presidente que governou o país por quase dezoito anos. Que já havia passado por insurreições de extrema-esquerda, extrema-direita e até por uma guerra. Que já tinha conseguido sobreviver a momentos de pressão como a guerra civil de 1932, a eleição indireta de 1934, a mobilização por eleições em 1937 e que conseguiu retornar ao poder eleito pelo povo após ter sido destituído em 1945.
No meu entendimento, Getúlio viu-se ali, em agosto de 1954, sem saída. E não queria ter sua biografia manchada ao deixar a presidência sob a acusação de ter sido o mandante de um assassinato.
Tenho também para mim a ideia de que ele não teve o mesmo jogo de cintura para governar o país naquele momento democrático, enfrentando oposição da imprensa e dificuldade até mesmo de obter o apoio irrestrito dos trabalhadores, que reclamavam da inflação e da carestia. Então, a opção pela morte foi uma ação desesperada, porém calculada, de alguém que viu toda uma trajetória política ameaçada, estava cansado e sob um estresse intenso, e não queria deixar a história pela porta dos fundos. Mas essa é uma suposição com base nos meus estudos. Os motivos reais nós nunca saberemos de fato… Só se Vargas voltasse à vida para nos contar.
Alguns historiadores defendem que o suicídio de Vargas, em 1954, teria adiado o golpe militar em uma década. Você acredita nessa interpretação? Por quê?
Não dá para saber. É uma suposição. Talvez, sim, talvez não. Para a execução de um golpe militar são necessários muitos fatores, como planejamento, apoio majoritário interno nas Forças Armadas, assim como de grupos empresariais, de parcela da população e até de parceiros comerciais externos, em especial dos Estados Unidos. Não há um estudo que nos aponte que havia, naquele momento, a convergência de todos esses fatores. Trabalhar com o “se” não é papel de nós, historiadores. Porque senão ficamos com uma história de suposição dos fatos. Por exemplo: o que aconteceria se João Goulart tivesse oferecido resistência ao golpe de 1964?
Não dá para saber, mas apenas conjecturar, supor, mas aí flertamos com a ficção e nos desprendemos da realidade. O que podemos afirmar é que havia um anti varguismo forte, tanto no meio civil quanto no meio militar. E que Vargas não conseguiu construir o governo de consenso que tentou desde sua posse, em janeiro de 1951.
Eu entendo, inclusive, que nós historiadores e professores temos um pouco de responsabilidade nisso, pois inúmeras vezes vejo colegas relativizarem a ditadura de 1937, como se ela fosse aceitável.
A oposição sabia que o fracasso do governo poderia enterrar Getúlio e seus principais apoiadores, pelo menos por um tempo. O que o suicídio conseguiu, sem dúvida, foi prolongar a influência de Vargas, fortalecer o PTB e dar mais vigor a figuras como Brizola e João Goulart. Não à toa, 40 anos depois do suicídio, Fernando Henrique Cardoso falou sobre a necessidade de dar fim à “era Vargas” – veja a expressão “era” aparecendo de novo (risos) – no discurso de despedida do Senado, em dezembro de 1994, antes de tomar posse como presidente eleito.
O historiador Bruno Leal (UnB) entrega algo inovador: um livro que é, ao mesmo tempo, um guia para a seleção do mestrado em História e uma introdução ao universo do mestrando e da mestranda. Com linguagem simples, Leal explica tudo o que você sempre quis saber sobre o mestrado em História, mas teve medo de perguntar. É leitura que combina reflexão histórica e dados factuais, que informa e diverte. Recomendado a todos e todas que desejam fazer o mestrado em História (e até mesmo em outras áreas das humanidades) ou a quem acabou de se tornar mestrando ou mestranda na área. Confira aqui e leia um trecho na Amazon Brasil.
Getúlio Vargas permanece vivo no imaginário. As medidas que ele tomou nos 18 anos em que governou o país deixaram marcas profundas que se estendem até hoje. Discute-se atualmente sobre as estatais, sobre o fortalecimento da extrema-direita, sobre direitos trabalhistas, e tudo isso passa pelo conhecimento histórico a respeito do período Vargas, a CLT, a criação da Petrobrás, a herança integralista-fascista. Por isso mesmo, é essencial estudar aquele período, para podermos nos conhecer enquanto país e compreendermos nosso presente, o que nos tornamos e o que poderemos nos tornar.
Como citar esta entrevista
MOURELLE, Thiago Cavaliere. “Não podemos sacralizar Getúlio Vargas”. Entrevista realizada por Bruno Leal Pastor de Carvalho. In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/nao-podemos-sacralizar-vargas-entrevista-thiago-mourelle/. Publicado em: 6 de janeiro de 2025.