Em geral, sabemos para que serve uma escola, uma universidade, uma galeria artística, um veículo de comunicação, uma empresa de design, um jardim público, uma cafeteria ou uma loja comercial. Mas e quanto aos museus históricos? Será que nós temos essa clareza?
Um museu é muito mais do que um lugar onde são guardadas coisas velhas. Neste artigo, o meu objetivo é mostrar o que constitui um museu histórico atualmente e como essa instituição se transformou ao longo do tempo.
Definição básica de museu histórico
Uma pessoa pode acumular no quintal de casa uma enorme coleção de garrafas: mas será que essa pessoa documenta esses objetos? Existe no quintal dela um inventário com o arrolamento de cada garrafa daquela coleção? Ela faz uma catalogação (fichas catalográficas de cada peça) com dimensões, material, data, origem, fabricante, tipo de rótulo, cor e demais características de todos os itens que ela guarda? Ela saberia dizer onde está a garrafa de número 358, ou ela precisaria procurar? Certamente, esse hipotético personagem não faz empréstimos de itens da sua coleção, não dá baixa no inventário, não abre seu quintal para o público, não fotografa e nem divulga suas peças em um site ou mídias sociais. Ora, ele não faz nada disso por uma razão muito simples: ele não é museólogo e nem possui um museu no quintal – trata-se apenas de um colecionador de coisas velhas.
Todo museu, histórico ou não, é uma instituição bastante complexa e não pode ser confundido com o simples acúmulo de objetos. Para que uma instituição seja considerada museu, ela deve “conservar, investigar, comunicar, interpretar e expor, para fins de preservação, estudo, pesquisa, educação, contemplação e turismo, conjuntos e coleções de valor histórico, artístico, científico, técnico ou de qualquer outra natureza cultural, abertas ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento”. 1 Além disso, ela deve ser permanente2 e não possuir fins lucrativos.3
Os museus históricos, ao contrário de uma pinacoteca ou de um museu de mineralogia, se caracterizam pela multiplicidade tipológica do acervo e pela coerência temática. Vamos considerar como exemplo o Museu Histórico Nacional, localizado na cidade do Rio de Janeiro: ele reúne milhares de peças, desde réplicas das pinturas rupestres da Serra da Capivara aos originais de anjos barrocos vindos de igrejas do século XVIII, do manto da Princesa Isabel ao uniforme de gari da Comlurb, do quadro do último baile imperial4 aos exemplares de nossas constituições republicanas. Todas essas peças são tipologicamente diversas, mas tematicamente unidas, e com uma consequência narrativa: contar a história do Brasil por meio dos objetos que são testemunhos de seu tempo.
Você pode se perguntar: mas como contar a história do Brasil? Quem deveria fazer isso não são as escolas, as universidades e os livros? Se já temos tantos narradores, qual o papel dos museus de história? A missão do Museu Histórico Nacional, defendida em seu Plano Museológico de 2016 é de “promover a mobilização coletiva para valorizar a consciência histórica e o direito ao patrimônio cultural do Brasil, por meio da formação e preservação de acervo, ação educativa e construção de conhecimento”5. No entanto, ainda que não esteja escrito em sua missão “contar a história do país”, a construção de qualquer acervo museológico (baseado em escolhas e omissões) interpreta e narra um assunto tanto por meio da expografia escolhida, como das ações de comunicação e educação da instituição. Logo todo museu histórico constrói uma narrativa sobre o passado.
Museus Históricos: dos homens ilustres à história vista debaixo
Hoje é ponto pacífico para museólogos e historiadores as profundas relações entre poder e memória. Raiz do próprio nome “museu”, as musas da mitologia clássica eram filhas de Zeus (o poder) e Mnemosine (deusa da memória). Os museus, principalmente no seu início, assim como quase sempre fizeram os registros e livros históricos, guardaram a história dos vencedores. No caso dos museus, essa história esteve por muito tempo materializada em objetos como espadas, mantos reais, uniformes militares, quadros de batalhas, leis de compra de terras, cuja valoração atrelava-se ao vínculo com esses homens ilustres ou com acontecimentos militares e políticos marcantes para a afirmação das histórias estatais. Era uma “história acontecimental e política”6 – e isso pode ser visto ainda hoje.
No campo da historiografia, essa história tradicional, contudo, começou a ser fortemente contestada no final da década de 1920, por um movimento historiográfico francês chamado “Movimento dos Annales” (ou “Escola dos Annales”). Formado em torno da Revista dos Annales esse movimento combateu a chamada “história acontecimental” (uma história linear, fundamentalmente política e diplomática), e novos atores, para além dos grandes monarcas e estadistas, passaram a ser sujeitos históricos das narrativas acadêmicas.
Na década de 1960, outro movimento historiográfico, mas agora surgido no Reino Unido, contribuiu para consolidar o lugar do “homem comum” nas narrativas dos historiadores: o movimento da “história vista de baixo”. Essa história, em oposição à antiga história tradicional do poder, buscou explorar a vida, os costumes e as tradições daqueles que costumavam ser esquecidos: servos, escravos, trabalhadores pobres livres, mulheres, etc.
Essa renovação não se limitou ao campo da historiografia, mas ocorreu também no campo dos museus. Os museus históricos ao longo do século XX questionaram suas tipologias, o elitismo da formação de seus acervos e – primordialmente – sua função social. Os museólogos passaram a ver os museus históricos cada vez menos como espaços exclusivos das elites e cada vez mais como um espaço de toda a sociedade – um museu histórico está a serviço do desenvolvimento dessa sociedade. Isso significa dizer que todo museu histórico possui uma dimensão educativa e política, afinal, ele visa ao despertar das comunidades, por mais pobres que sejam, para o seu “direito à memória” – para alguns setores conservadores da elite, os museólogos – antes guardiões do relicário da poderosa elite do passado – começaram a se tornar tão subversivos como os antropólogos, sociólogos, cientistas políticos e historiadores. 7
Museu Histórico: lugar para pensar e inquietar
Essas transformações no campo da museologia foram consagradas principalmente na década de 1970, quando houve a ampliação do conceito de patrimônio, incluindo o ambiente natural. Um dos maiores marcos desta década de mudanças foi a Mesa Redonda de Santiago, em 1972, em que os participantes deste evento da área de museologia discutiram o papel dos museus na América Latina, chegando-se ao conceito de “Museu Integral”.
O Museu Integral leva em consideração a totalidade dos problemas da sociedade, proporcionando à comunidade uma tomada de consciência do seu próprio meio natural e cultural. Assim, os museus deveriam se engajar socialmente, com participação da própria comunidade. O território e o patrimônio estão ligados intimamente à comunidade, sendo esta população ativa no museu e não mais se restringindo ao papel de público que somente visita o edifício e observa as obras e os objetos.
As transformações e o desenvolvimento social são aspectos basilares para o desempenho desse novo museu: princípios da “Nova Museologia”, reiterados com a Declaração de Quebec, de 1984, e com o Movimento Internacional da Nova Museologia (MINOM). Ao falar do passado, o museu fala do hoje.
É preocupante constatar que muitos museus históricos no Brasil ainda não obedecem aos requisitos básicos que configuram as boas práticas museais e, até mesmo, os rigores da legislação que normatiza o campo. Mas é importante saber que Museu – para ganhar esse título – tem um compromisso não apenas patrimonial, como também educacional e de entretenimento: ele deve ser capaz de espantar, maravilhar, instruir, fazer pensar, inquietar, curtir e relaxar.
Notas
1 Estatuto de Museus, Lei 11904/2009. Confira aqui.
2 É plenamente possível, e louvável, a realização de diversas exposições temporárias em centros culturais diversos. Mas o desejo de fundar um museu requer outro nível de investimento e compromisso.
3 Pode ser um museu público ou privado. Se for privado, a captação de recursos deve se restringir à garantia de sua boa administração. Vale lembrar que museus públicos, além dos repasses de verbas governamentais, podem desenvolver outras formas de captação. Ver o “Programa de financiamento e fomento” de Subsídios para Elaboração de Plano Museológico, disponível aqui.
4 Quadro “A Ilusão do Terceiro Reinado”, mais conhecido como “O Último Baile da Ilha Fiscal”, pintura de Aurélio de Figueiredo, 1905.
5 BRASIL, MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Plano Museológico. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2016, p.13.
6 No caso do Museu Histórico Nacional, criado em 1922 para celebrar o centenário da Independência do Brasil, a formação de seu acervo foi marcada por uma concepção de história monumental, celebrativa e nacionalista – o barroco mineiro, canhões da Guerra do Paraguai, trono de Dom Pedro II, etc. A partir das décadas de 1980 e 1990 a instituição viveu uma renovação conceitual que se imprimiu em novo acervo. Sendo o museu da história do país, por natureza seu colecionismo deve ser incessante, com objetos do presente, e – literalmente – qualquer coisa pode ser de interesse do MHN, em decorrência da grande abrangência temática do conceito de “história”.
7 Para citar um exemplo da força da educação patrimonial, cito a comunidade de pescadores de Itaipu, em Niterói. Habitando aquela praia há séculos, foram eles que se apoderaram do patrimônio histórico do lugar, para fincar pés nas areias e impedir a especulação imobiliária que ameaçava a praia: um dos pescadores recolhia fósseis e ossadas humanas da “Duna Grande”, sambaqui com mais de 8 mil anos existente na praia de Itaipu. E requisitaram as ruínas de um antigo claustro de mulheres, ali mesmo na praia, para ser criado o Museu de Arqueologia de Itaipu. Com ajuda do IPHAN, eles venceram. Educação patrimonial também é um empoderamento identitário.
Referências Bibliográficas
ARAÚJO, Marcelo Mattos; BRUNO, Maria Cristina Oliveira (orgs.). A Memória do Pensamento Museológico Contemporâneo. São Paulo: Comitê Brasileiro do ICOM, 1995.
ARAÚJO, Mirela Leite de. As narrativas, o território e os pescadores artesanais: políticas e processos comunicacionais no Museu de Arqueologia de Itaipu. Dissertação (Mestrado em Museologia), São Paulo, USP, 2015, 249 f.
BRASIL, Ibram. Subsídios para Elaboração de Plano Museológico. Brasília, 2016. Disponível aqui. Acesso em: 27 jan. 2019.
LOPES, Maria Margaret. A favor da desescolarização dos Museus. 1991. Disponível aqui. Acesso em: 27 jan. 2019.
SANTOS, Maria Célia. Musas, Revista Brasileira de Museus e Museologia, número 8. “Entrevista”. Brasília, 2018. p. 110.
SANTOS, Maria Célia. “A escola e o museu: uma história de confirmação dos interesses da classe dominante”.In: Repensando a ação cultural e educativa dos museus. Salvador: EDUFBA, 1990.
VARINE, Hugues de. “A Nova Museologia: ficção ou realidade”. In: Museologia Social. Porto Alegre: Unidade Editorial/ Secretaria Municipal de Cultura, 2000.
Outras referências
Para conceitos-chaves da museologia: clique aqui.
Programa Nacional de Educação Museal / Glossário: clique aqui.
Estatuto de Museus, Lei 11904/2009: clique aqui.
Museu no Chile é referência em Direitos Humanos: clique aqui.
Como citar este artigo
QUEIROZ, Eneida. Museus Históricos: poder, educação e sociedade. In: Café História . Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/museus-historicos-educacao-sociedade. Publicado em: 28 jan. 2019.
Bravo! Excelente trabalho. Esse artigo é bastante enriquecedor , além de salientar a importância de um museu histórico.
Obrigado pelo retorno, Juciléa!