No filme “O Resgate do Soldado Ryan”, a cena de desembarque das forças aliadas na Normandia é visceral e imersiva. Quando o personagem do Capitão Miller, interpretado por Tom Hanks, chega à praia de Omaha, no Dia D, a câmera balança junto a ele em meio ao caos, retratando o terror e a vulnerabilidade dos soldados. As portas dos barcos se abrem e os homens são imediatamente alvejados por uma chuva de balas, alguns caindo antes mesmo de tocar a areia. A água se mistura ao sangue, e o som ensurdecedor das explosões e gritos preenche o cenário, enquanto Miller, atordoado, vê a carnificina ao redor em um momento de suspensão quase surreal.
A entrevista com o historiador Icles Rodrigues, a segunda para o Café História (veja aqui a primeira), aborda um tema complexo e fascinante: a construção do “mito do Dia D” e seu impacto sobre a memória coletiva, especialmente no contexto da Segunda Guerra Mundial. Rodrigues explora como a cultura de massa e a política dos Estados Unidos contribuíram para enraizar a ideia de que o “Dia D” – o famoso desembarque das tropas aliadas na Normandia, em 6 de junho de 1944 – foi o evento crucial que definiu o destino da guerra e assegurou a vitória sobre a Alemanha Nazista. Para o público americano e global, essa narrativa ganhou contornos quase míticos, criando a imagem de uma força militar salvadora.
Ao longo da conversa, Rodrigues desmonta essa visão tradicional, apresentando o “Dia D” sob um ângulo menos dicotômico. Ele mostra que, embora essa operação tenha sido, sem dúvida, significativa, foi apenas um dos muitos movimentos cruciais da guerra. Outros combates importantes, como a Batalha de Stalingrado, travada na frente oriental pela União Soviética, desempenharam papéis igualmente essenciais na derrota dos nazistas. No entanto, conforme a mídia e o cinema retrataram o Dia D, o episódio ganhou, ao longo das décadas, uma aura de heroísmo singularmente americano, simplificando o evento.
Rodrigues explica que essa mitificação foi, em grande medida, promovida por políticas e produções culturais dos Estados Unidos, que buscavam reforçar seu papel de defensor da democracia ocidental. Filmes e séries norte-americanas, por exemplo, retrataram o desembarque na Normandia como o “começo do fim” para o regime nazista, influenciando gerações a acreditar que o triunfo aliado foi majoritariamente estadunidense. Essa narrativa, ele afirma, não é apenas uma questão de memória, mas também um reflexo das necessidades políticas e culturais de cada época, particularmente durante a Guerra Fria e depois, sob a presidência de Ronald Reagan.
Icles Rodrigues é historiador, doutor em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É autor do livro “O Dia D – como a história se tornou mito”, da Editora Contexto. Ele também é criador do canal de divulgação histórica Leitura ObrigaHISTÓRIA no YouTube, apresenta o podcast História FM e realizou os documentários independentes, como “Legado negado: a escravidão no Brasil em um guia incorreto” e “Vestindo Histórias”, ambos disponíveis no YouTube.
Como você explicaria o que foi o “Dia D” para um não-historiador?
O que chamamos de Dia D foi a invasão da Normandia, no norte da França, em 6 de junho de 1944. Essa invasão era importante para que as tropas britânicas e estadunidenses entrassem em território continental europeu, tanto para libertar alguns países ocupados pelos nazistas – em especial a França – quanto para poder derrotar a Alemanha Nazista. Desde 1942 se discutia essa invasão, algo que os soviéticos pediram muito, e alguns militares de alto escalão queriam que ela tivesse ocorrido já naquele ano, mas a posição de que seria necessário esperar e libertar o Mediterrâneo primeiro acabou vencendo, em grande medida pela pressão britânica, que queria garantir um Mediterrâneo livre de ameaças, em especial para manter seu acesso seguro ao Canal de Suez, fundamental para a economia britânica, muito dependente de mercados como o da Índia. Só em junho de 1944 os Aliados ocidentais finalmente realizaram essa operação. A essa altura do campeonato a Alemanha não tinha mais condições de derrotar a União Soviética, mas tentariam resistir até onde fosse possível, o que de fato aconteceu.
Em seu livro, você diz que o “Dia D” foi mitificado. Pode explicar?
Meu argumento no livro é que o Dia D sempre foi visto nos Estados Unidos como uma batalha muito importante, mas que estava ali, lado a lado, com outras batalhas também importantes para o país, como a Batalha das Ardenas, o desastre de Pearl Harbor e a Batalha de Midway. No entanto, com o passar das décadas se desenvolveu uma mitologia política em torno do Dia D. Essa mitologia afirma que o sucesso da invasão do dia 6 de junho de 1944 teria salvado a democracia, salvado a Europa ou até mesmo o mundo. Eu tento tratar a ideia de mitologia política aqui não como um sinônimo de mentira; minha ideia é que o mito aqui é uma chave de interpretação de uma realidade complexa, e nesse caso é ferrenhamente incentivada por diferentes governos dos Estados Unidos.
Isso teve implicações para a nossa visão do poder americano, certo?
Se você olhar os filmes, séries e outras produções referentes ao Dia D, você vera que a maioria delas não fala explicitamente que o Dia D venceu a guerra, ou algo assim. Mas aqui e ali você é alimentado sutilmente por essas ideias, como na abertura de um dos jogos da franquia Medal of Honor onde o narrador – Dale Dye, figurinha carimbada das produções militares hollywoodianas e do mundo dos jogos – afirma que a entrada dos Aliados ocidentais na Europa foi “o começo do fim”. Com o passar dos anos, o mito do Dia D cravou no inconsciente coletivo a ideia de que os Estados Unidos foram os responsáveis pela vitória militar contra os alemães, enquanto a indústria cultural britânica nos últimos anos vem emplacando o papel tanto da inteligência e da espionagem britânica quanto o papel de Churchill em decidir não fazer acordos com Hitler.
Em que medida essa mitificação foi algo consciente dos produtores de cultura?
Na minha percepção, o primeiro esforço de se tratar o Dia D como essa coisa lendária e extraordinária que teve repercussão foi o livro O mais longo dos dias, do jornalista irlandês Cornelius Ryan em 1959, e poucos anos após o lançamento desse livro, foi lançado um filme de mesmo nome com roteiro do próprio Ryan. No entanto, esse filme foi lançado em um período que considero a era de ouro dos filmes de Segunda Guerra Mundial, entre meados dos anos 1950 e primeira metade dos anos 1970, onde tivemos uma chuva de clássicos. O mais longo dos dias pode ser visto como mais um entre tantos filmes marcantes.
Além disso, poucos anos após este filme, os Estados Unidos se envolveram no Vietnã, e me parece que a exaltação dos grandes feitos estadunidenses em guerras perdeu um pouco da força conforme a sociedade estadunidense foi se fragmentando diante das notícias de atrocidades cometidas por soldados dos Estados Unidos, as coberturas da imprensa mostrando a violência de maneira mais gráfica – coisa que raramente ocorria em guerras anteriores – e o crescente sentimento de que a Guerra do Vietnã não tinha uma justificativa forte o bastante. Acho que tudo isso freou qualquer ímpeto mais extremo de tentar emplacar uma mitologia política de salvação do mundo sobre o Dia D, que, como eu disse, naquele momento era um esforço muito tímido. A coisa vai ganhar corpo de verdade apenas em 1980, e foi muito mais por conta de Ronald Reagan do que devido ao cinema, como tentei explicar em meu livro.
Essa mitificação estadunidense foi desafiada durante a Guerra Fria?
Eu não teria como responder essa pergunta com mais propriedade porque eu não estudei as tentativas de reação, mas pelo que sei, quaisquer esforços da indústria cultural soviética ou de produções ocidentais mais críticas não tinham tanto espaço nessa época. Eu posso estar enganado, mas não me recordo de nenhuma grande obra que tenha tido grande impacto em desafiar essa narrativa hegemônica dos Estados Unidos. Acho que isso tem sido mais comum hoje em dia, uma vez que a Rússia tem visto muitas produções sobre a Segunda Guerra Mundial que adotam uma abordagem muito parecida com os filmes mais laudatórios de Hollywood sobre a história estadunidense. Mas esses filmes ainda têm pouca penetração no ocidente, e especialmente agora com a guerra na Ucrânia, há um esforço deliberado de se rechaçar muita coisa que tem a ver com Rússia, sejam filmes, sejam esportistas em eventos, monumentos, museus e até mesmo a literatura clássica do país.
A “Batalha de Stalingrado” também foi mitificada pela União Soviética?
Não foi algo que estudei, porque acho que para fazer um trabalho com a mesma solidez do meu livro sobre o Dia D, eu teria que, no mínimo, aprender russo e ter acesso a fontes que, daqui do Brasil, possivelmente não teria. Mas me parece que especialmente a partir do governo de Leonid Brezhnev a União Soviética investiu pesado no louvor à Grande Guerra Patriótica como esse elemento de orgulho e coesão nacional e até internacional, se você colocar as outras nações que lutaram pela União Soviética nesse barco. Vale destacar que, na interpretação de muitos russos e defendida pelo governo, a União Soviética lutou uma guerra chamada “Grande Guerra Patriótica”, que teria começado em 22 de junho de 1941 com a invasão de seu território durante a Operação Barbarossa, e acabou em 9 de maio no fuso horário de Moscou, com a rendição da Alemanha. Já vi pelo menos uma fala pública de Vladimir Putin dizendo que a União Soviética lutou a Grande Guerra Patriótica e a Segunda Guerra Mundial, como se fossem dois eventos separados, mas simultâneos. A escolha desse recorte não é inocente: ele busca argumentar que a União Soviética só entrou em guerra mesmo a partir do momento que foi invadida, deixando de lado a invasão de parte da Polônia pelos soviéticos em setembro de 1939 e os conflitos com a Finlândia, porque isso a colocaria no papel de invasora. Logicamente que há interpretações de alguns autores favoráveis à União Soviética que defendem ambas as ações, mas aí o papo vai longe…
Como devemos olhar para narrativas históricas na cultura de massas?
Para responder essa questão, eu vou usar o exemplo do cinema. Alguns estudiosos da área de História e Cinema argumentam que é irrelevante saber se um filme ou outra produção audiovisual é historicamente precisa porque uma obra sobre o passado nunca é sobre o passado: ela é muito mais sobre o presente. Fala dos nossos anseios contemporâneos, nossas dúvidas, nossas esperanças, e apenas usa uma representação do passado como veículo narrativo. Se entendermos o cinema como uma fonte para se estudar o presente, penso que essa interpretação está correta, não vejo muito espaço para questionamento nesse caso. No entanto, eu tenho visto cada vez mais o cinema como um vetor de construção de consciências históricas, que ajuda a moldar o entendimento das pessoas sobre o passado. Talvez por conta de todos os meus anos de trabalho com divulgação histórica tanto no Leitura ObrigaHISTÓRIA como no História FM, por conta de todas as interpretações absurdas sobre história que já pude monitorar no contato com o grande público, é que eu me preocupo como as pessoas aprendem história. Afinal, as fontes de aprendizado do passado são múltiplas e algumas têm intensões bastante problemáticas, especialmente no âmbito político.
Por conta disso, por eu me interessar pelo potencial da indústria cultural de moldar consciências históricas, é que eu não posso ignorar essas questões de precisão histórica na indústria cultural, pois às vezes elas se dão por necessidades materiais ou narrativas, mas às vezes são escolhas muito deliberadas para fazer com que o público interprete o passado de uma maneira muito particular, que pode não ter respaldo historiográfico. Esse meu livro surgiu de um anseio de entender como tanto a indústria cultural quanto Estados e entidades diversas da sociedade podem trabalhar juntas na manipulação do passado para o desenvolvimento de narrativas com objetivos políticos muito evidentes para os iniciados. Eu tentei oferecer aos meus leitores ferramentas para que eles possam olhar criticamente os esforços de mitificação política de eventos históricos, e tenho esperança de que os leitores sairão deles um pouco mais preparados para isso.
Como citar esta entrevista
RODRIGUES, Icles. “O mito do Dia-D cravou no inconsciente coletivo a ideia de que os EUA foram os responsáveis pela vitória militar contra os alemães”. Entrevista concedida a Bruno Leal Pastor de Carvalho. In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/mito-e-historia-do-dia-d/. Publicado em: 18 de novembro de 2017.