“Meu bolo favorito”: filme iraniano leva crítica política e memória na receita

Dirigido por Maryam Moqadam e Behtash Sanaeeha, “Meu bolo favorito” acompanha o cotidiano moroso e (quase) sem surpresas de dois idosos em Teerã.
24 de janeiro de 2025
Protagonistas estão um ao lado do outro dentro de casa tirando uma foto no celular, cena bonita de Meu bolo favorito.
Os dois atores têm carisma especial. Foto: Imovision.

O cinema iraniano é especialista em eufemismos, simbologias e metáforas. Aborda temas difíceis e espinhosos de forma indireta, como uma sombra que ilumina. E faz isso muito bem, a ponto de ser considerado hoje, pela crítica, uma das indústrias de cinema com maior qualidade no mundo. Não faz isso, claro, por mera escolha narrativa ou estética, e sim porque a República Islâmica governa o país com mão de ferro desde 1979, ano da Revolução Islâmica. Diante da censura, patrulhamento moral e prisões, a classe artística precisou aprender técnicas para driblar as circunstâncias.  

“Meu bolo favorito” (2024), em cartaz nos cinemas brasileiros, opera com esses instrumentos também. Dirigido pelo casal Maryam Moqadam e Behtash Sanaeeha, responsável pelos ótimos “O Perdão” (2020) e “Cortinas fechadas” (2013), “Meu bolo favorito” acompanha o cotidiano moroso e sem surpresas de Mahin (Lili Farhadpour), uma mulher de 70 que vive em Teerã, depois que seu marido morreu e sua filha se mudou para Europa. Sua rotina é um tédio. Seus vizinhos são fofoqueiros. Suas amigas são parcerias e estimulam ela a fazer novas coisas, mas os assuntos giram quase sempre em torno de doenças. Quando fala com a filha, por videochamada no celular, a conversa é rápida e superficial.

Mas um dia, depois de uma tarde de chá com as amigas, Mahin se convence que precisa de um namorado. E a oportunidade aparece logo. Mahine está almoçando em um restaurante e escuta um grupo de homens trocando uma ideia com um taxista chamado o Faramarz (Esmaeel Mehrabi), também de 70 anos, que está comendo só na mesa ao lado. O homem é solitário e parece desanimado. Eis que Mahine, então, toma uma atitude inusitada: ela segue Faramarz, apresenta-se e pede que ele a leve para casa.

Mahine flerta com Faramarz durante a corrida, ele corresponde e os dois acabam dentro da casa dela, conversando, bebendo juntos, dançando e até tomando banho. Os dois, então, descobrem a felicidade um no outro, instantaneamente.

Num primeiro momento, o filme parece uma dessas comédias românticas com idosos que semana sim, semana não, passam na sessão da tarde, falando sobre as dificuldades de envelhecer e como nunca é tarde para nada. Mas “Meu bolo favorito” não é isso. Definitivamente. O filme até examina a questão do envelhecimento e da depressão silenciosa que acomete os idosos. Mas é mais que isso.

“Meu bolo favorito” tem memória em seu ingrediente

O regime de Reza Pahlavi caiu há mais de 40 anos. Com ele, o Irã era ambíguo. De um lado, o regime era centralizador e autoritário. Havia polícia secreta, partidos foram suprimidos e vários opositores foram presos. A corrupção era corriqueira, assim como a desigualdade social. De outro, o Irã era liberal e ocidental nos costumes e na economia. A infraestrutura do país era de primeiro nível, assim como sua indústria. Houve uma ampla reforma educacional e muitas escolas públicas foram construídas. O regime proibiu o uso de trajes tradicionais, como o véu para mulheres e turbantes para os homens. Pahlavi queria “modernizar” o país, e para isso exaltava a herança persa pré-islâmica, o que enlouqueceu os xiitas.

Mahine e Faramarz fazem parte de uma geração – agora desaparecendo – que viveu os dois mundos: o mundo de Pahlavi e o mundo de Aiatolá Khomeini, que veio depois, e permanece hoje, ainda mais autoritário. Essa dupla vivência, assim como a velhice e a juventude, passa por um momento reavaliação no presente.

Isso está presente em várias cenas. Uma delas, quando Mahine diz que tem vinho de fabricação caseira. A bebida é compartilhada com Faramarz, que também se lembra quando o álcool foi proibido e ele mesmo teve que fazer. Outra memória emerge das fotos antigas na parede da casa de Mahine. Ela as mostra para Faramarz, dizendo o quanto era bonita naquela época. Inspirados nelas, tiram uma foto juntos, com o celular – que, para tristeza de Mahine, depois aparece toda tremida. Compartilhando seus medos, memórias e histórias, os dois têm uma noite incrível de partilha. “Um brinde à melhor noite da minha vida”, diz um alcoolizado Faramarz.

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Essa intimidade é captada pelo olhar incrível de Maryam Moqadam e Behtash Sanaeeha, que usam uma câmera flutuante, por vezes escondida, (in)discreta. A cena em que Mahine e Faramarz estão no jardim da casa de Mahine é de uma beleza e sensibilidade absurdas – a melhor cena do filme, com certeza. A música, o vento, o barulho das flores, o vinho, tudo cria uma aura única nesta cena.

Mas “Meu bolo favorito” é uma ode ao Irã pré-1979? Não exatamente. O filme flerta com um sentimento nostálgico, mas não fantasia algo que Pahlavi não foi. Mahine e Faramarz estão num limbo, assim como o Irã. Eles sentem falta do passado, mas não de todo o passado. O presente os força a isso. Eles sentem falta de si e não sabem como se portar no presente, um presente que, embora conduzido pela República Islâmica, também é muito ocidentalizado e “moderno”. Ambos se sentem desencaixados e sós. E os solitários e desencaixados se encontram. Entendem-se.

Crítica política

A crítica política mais forte do filme acontece também dentro da casa de Mahine. Faramarz pergunta a Mahine porque ela não deixou o Irã com os filhos. E ela responde: “Minha casa é aqui”. Mahine está confusa, está desencaixada, mas não consegue se ver fora do Irã. Ela ainda sente algum pertencimento. A casa pode estar bagunçada, mas ainda é a casa. E ficar em casa é resistência. O diálogo, como tudo no cinema iraniano, hoje, é sutil. E essa cena fala sobre isso, é uma crítica a situação da classe artística no país, que ora é forçada a buscar o exílio, para salvar a própria vida, mas que muitas vezes permanece no país, filmando, resistindo (e arriscando-se).

Cena de Meu bolo favorito, em que a protagonista, uma senhora de 70 anos, discute com policial.
Em outra cena emblemática, a protagonista briga com um policial que tentava prender jovens iranianas por terem o cabelo pintado e usarem o véu de forma errada. Foto: Imovision.

Jafar Panahi, um dos grandes nomes do cinema iraniano, ficou sete meses preso, entre 2022 e 2023. Saeed Roustaee e o produtor, Javad Noruzbegi, foram condenados a seis meses de prisão por apresentar o filme “Leila´s Brother” na edição do Festival de Cannes em 2022. Maryam Moqadam e Behtash Sanaeeha foram censurados no Irã, chegando a ter o passaporte confiscado.

Não quero dar spoilers, mas o final de “Meu bolo favorito” é triste. Mas tem que ser assim para que o filme faça sentido. Como eu disse, ele não é filme de sessão da tarde. A receita de “Meu bolo favorito” tem dois ingredientes principais: crítica política e memória. E os dois combinam-se de forma sublime – é bolo de produção caseira.

Bruno Leal

Fundador e editor do Café História. É professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em História Social. Pesquisa História Pública, História Digital e Divulgação Científica. Também desenvolve pesquisas sobre crimes nazistas, justiça no pós-guerra e as duas guerras mundiais. Autor de "Quero fazer mestrado em história" (2022) e "O homem dos pedalinhos"(2021).

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