O cinema iraniano é especialista em eufemismos, simbologias e metáforas. Aborda temas difíceis e espinhosos de forma indireta, como uma sombra que ilumina. E faz isso muito bem, a ponto de ser considerado hoje, pela crítica, uma das indústrias de cinema com maior qualidade no mundo. Não faz isso, claro, por mera escolha narrativa ou estética, e sim porque a República Islâmica governa o país com mão de ferro desde 1979, ano da Revolução Islâmica. Diante da censura, patrulhamento moral e prisões, a classe artística precisou aprender técnicas para driblar as circunstâncias.
“Meu bolo favorito” (2024), em cartaz nos cinemas brasileiros, opera com esses instrumentos também. Dirigido pelo casal Maryam Moqadam e Behtash Sanaeeha, responsável pelos ótimos “O Perdão” (2020) e “Cortinas fechadas” (2013), “Meu bolo favorito” acompanha o cotidiano moroso e sem surpresas de Mahin (Lili Farhadpour), uma mulher de 70 que vive em Teerã, depois que seu marido morreu e sua filha se mudou para Europa. Sua rotina é um tédio. Seus vizinhos são fofoqueiros. Suas amigas são parcerias e estimulam ela a fazer novas coisas, mas os assuntos giram quase sempre em torno de doenças. Quando fala com a filha, por videochamada no celular, a conversa é rápida e superficial.
Mas um dia, depois de uma tarde de chá com as amigas, Mahin se convence que precisa de um namorado. E a oportunidade aparece logo. Mahine está almoçando em um restaurante e escuta um grupo de homens trocando uma ideia com um taxista chamado o Faramarz (Esmaeel Mehrabi), também de 70 anos, que está comendo só na mesa ao lado. O homem é solitário e parece desanimado. Eis que Mahine, então, toma uma atitude inusitada: ela segue Faramarz, apresenta-se e pede que ele a leve para casa.
Mahine flerta com Faramarz durante a corrida, ele corresponde e os dois acabam dentro da casa dela, conversando, bebendo juntos, dançando e até tomando banho. Os dois, então, descobrem a felicidade um no outro, instantaneamente.
Num primeiro momento, o filme parece uma dessas comédias românticas com idosos que semana sim, semana não, passam na sessão da tarde, falando sobre as dificuldades de envelhecer e como nunca é tarde para nada. Mas “Meu bolo favorito” não é isso. Definitivamente. O filme até examina a questão do envelhecimento e da depressão silenciosa que acomete os idosos. Mas é mais que isso.
“Meu bolo favorito” tem memória em seu ingrediente
O regime de Reza Pahlavi caiu há mais de 40 anos. Com ele, o Irã era ambíguo. De um lado, o regime era centralizador e autoritário. Havia polícia secreta, partidos foram suprimidos e vários opositores foram presos. A corrupção era corriqueira, assim como a desigualdade social. De outro, o Irã era liberal e ocidental nos costumes e na economia. A infraestrutura do país era de primeiro nível, assim como sua indústria. Houve uma ampla reforma educacional e muitas escolas públicas foram construídas. O regime proibiu o uso de trajes tradicionais, como o véu para mulheres e turbantes para os homens. Pahlavi queria “modernizar” o país, e para isso exaltava a herança persa pré-islâmica, o que enlouqueceu os xiitas.
Mahine e Faramarz fazem parte de uma geração – agora desaparecendo – que viveu os dois mundos: o mundo de Pahlavi e o mundo de Aiatolá Khomeini, que veio depois, e permanece hoje, ainda mais autoritário. Essa dupla vivência, assim como a velhice e a juventude, passa por um momento reavaliação no presente.
Isso está presente em várias cenas. Uma delas, quando Mahine diz que tem vinho de fabricação caseira. A bebida é compartilhada com Faramarz, que também se lembra quando o álcool foi proibido e ele mesmo teve que fazer. Outra memória emerge das fotos antigas na parede da casa de Mahine. Ela as mostra para Faramarz, dizendo o quanto era bonita naquela época. Inspirados nelas, tiram uma foto juntos, com o celular – que, para tristeza de Mahine, depois aparece toda tremida. Compartilhando seus medos, memórias e histórias, os dois têm uma noite incrível de partilha. “Um brinde à melhor noite da minha vida”, diz um alcoolizado Faramarz.
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Essa intimidade é captada pelo olhar incrível de Maryam Moqadam e Behtash Sanaeeha, que usam uma câmera flutuante, por vezes escondida, (in)discreta. A cena em que Mahine e Faramarz estão no jardim da casa de Mahine é de uma beleza e sensibilidade absurdas – a melhor cena do filme, com certeza. A música, o vento, o barulho das flores, o vinho, tudo cria uma aura única nesta cena.
Mas “Meu bolo favorito” é uma ode ao Irã pré-1979? Não exatamente. O filme flerta com um sentimento nostálgico, mas não fantasia algo que Pahlavi não foi. Mahine e Faramarz estão num limbo, assim como o Irã. Eles sentem falta do passado, mas não de todo o passado. O presente os força a isso. Eles sentem falta de si e não sabem como se portar no presente, um presente que, embora conduzido pela República Islâmica, também é muito ocidentalizado e “moderno”. Ambos se sentem desencaixados e sós. E os solitários e desencaixados se encontram. Entendem-se.
Crítica política
A crítica política mais forte do filme acontece também dentro da casa de Mahine. Faramarz pergunta a Mahine porque ela não deixou o Irã com os filhos. E ela responde: “Minha casa é aqui”. Mahine está confusa, está desencaixada, mas não consegue se ver fora do Irã. Ela ainda sente algum pertencimento. A casa pode estar bagunçada, mas ainda é a casa. E ficar em casa é resistência. O diálogo, como tudo no cinema iraniano, hoje, é sutil. E essa cena fala sobre isso, é uma crítica a situação da classe artística no país, que ora é forçada a buscar o exílio, para salvar a própria vida, mas que muitas vezes permanece no país, filmando, resistindo (e arriscando-se).
Jafar Panahi, um dos grandes nomes do cinema iraniano, ficou sete meses preso, entre 2022 e 2023. Saeed Roustaee e o produtor, Javad Noruzbegi, foram condenados a seis meses de prisão por apresentar o filme “Leila´s Brother” na edição do Festival de Cannes em 2022. Maryam Moqadam e Behtash Sanaeeha foram censurados no Irã, chegando a ter o passaporte confiscado.
Não quero dar spoilers, mas o final de “Meu bolo favorito” é triste. Mas tem que ser assim para que o filme faça sentido. Como eu disse, ele não é filme de sessão da tarde. A receita de “Meu bolo favorito” tem dois ingredientes principais: crítica política e memória. E os dois combinam-se de forma sublime – é bolo de produção caseira.