“Megalópolis”: inspiração na Antiguidade Clássica

Megalópolis, de Francis Ford Coppola, mistura política moderna e Roma Antiga, recriando a Conspiração de Catilina em uma Nova York dividida.
24 de novembro de 2024
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"Megalópolis’", o novo filme de Francis Ford Coppola. Foto: divulgação.

De direção e roteiro do histórico cineasta norte-americano Francis Coppola, Megalópolis (2024) é um refresco em tempos conturbados. A trama se apresenta como um manifesto para a reconciliação de grupos sociais dissonantes que disputam narrativas no mundo democrático contemporâneo. Coppola cria um mundo ficcional que se propõe a mimetizar uma realidade dividida e ameaçada por movimentos radicais autoritários e, além disso, tem a coragem de apresentar uma solução.

A obra utiliza como inspiração a Antiguidade Clássica no famoso caso da Conspiração de Catilina, isto é, uma tentativa de golpe de estado, na primeira metade do último século antes da era comum, que pretendia depor os dois cônsules romanos e instalar um novo governo na cidade eterna. O movimento não obteve sucesso, e encontrou no famoso orador Cícero, um dos cônsules naquele ano, um ferrenho algoz. Cícero proferiu publicamente nessa época quatro discursos que depois foram transcritos e que conhecemos hoje como Catilinárias. No primeiro deles, Cícero evoca a famosa frase, parafraseada no filme de Coppola, “Até quando, Catilina, pertubarás a nossa paciência?!”. Os objetivos desse movimento e o caráter da figura histórica de seu líder, Catilina, ainda são debates na historiografia. Catilina foi de fato um conspirador que ameaçava a tradicional e estável república latina, ou um líder original e inspirador que buscava ampliar os espaços de debate na aristocracia romana? O certo parece ser que Catilina foi um membro dessa aristocracia desiludida com os rumos da república, tendo morrido em confronto com as forças legalistas. Já outros membros do motim foram executados, mesmo sem o devido julgamento, a mando do próprio Cícero. Anos depois, por esse motivo, um antigo desafeto do orador romano, Clódio, famoso por invadir travestido uma celebração religiosa exclusiva para mulheres, conseguiu que Cícero se exilasse da cidade de Roma.

Na produção de Coppola, observa-se uma justaposição criativa entre dois mundos, a cidade de Nova Iorque e a de Roma. Essa estratégia, no entanto, está comprometida em discutir temas caros a nós e não aos antigos. Na trama, César Catilina é um playboy genial, erudito, rico e vencedor do prêmio Nobel. Esse personagem, personificado por Adam Driver, tem grandes planos para uma nova e remodelada Nova Roma, assim como talvez tenha tido o antigo Catilina, desencantado, por sua vez, com a antiga república aristocrática. Apesar de lutar pela construção de uma cidade utópica que em seu plano diminuísse as diferenças e distâncias entre as pessoas, o personagem é acusado, com razão, de sempre ter estado longe do povo, afinal, é um aristocrata e dessa forma se comporta. O personagem de seu tio, o homem mais rico da cidade, Crasso, remete ao antigo triúnviro romano homônimo que, da mesma forma, foi o homem mais rico da Roma real, tendo sofrido, contudo, um final trágico após dura derrota militar contra os partos (povo que esteve em constante conflito com os romanos oriundos dos atuais Irã e Iraque).

No filme, Crasso, como um homem influente, mas já desinteressado pelos assuntos públicos, se comporta como um velho imperador que aglutina a atenção e os interesses de Catilina, sua nova e ambiciosa esposa (Aubrey Plaza), e seu sobrinho Clódio (Shia Labeouf). Clódio, ao contrário de Catilina, não é movido pela curiosidade intelectual ou pela esperança de tornar o mundo um lugar melhor, mas pela crua ambição de ser o princeps, isto é, o primeiro, o líder. Para além desse círculo, claro, ainda falta um lugar para Cícero. Franklyn Cícero (Giancarlo Esposito) é o orador, o homem que faz discursos públicos, e que no filme representa o conservadorismo, ou o legalismo, contra o mundo de sonhos de Catilina.

As propostas de Catilina e Cícero parecem inconciliáveis. Desde o princípio, os dois aparecem em acirrados debates públicos sobre o futuro daquela cidade. Logo em uma das primeiras cenas, os dois aparecem debatendo com dedos em riste, cercados por holofotes. É Cícero, nesse sentido, o primeiro a exigir uma dura punição a Catilina, quando este último é injustamente acusado de ter mantido relações com uma virgem vestal (em Roma, jovens sacerdotisas da deusa Vesta que tinham a função de manter o fogo sagrado eternamente queimando). O mentor dessa calúnia foi Clódio. Esse personagem não tem o protagonismo ou o mesmo brilho dos outros dois personagens, ao contrário, mantém-se nas sombras, vive de golpes e dos deslizes alheios. Clódio é um oportunista que se aproveita do vácuo de poder deixado pelas intrigas ideológicas e orgulhosas de Cícero e Catilina. Dessa maneira, torna-se uma figura popular ao se apresentar como o representante do povo. Logo, deixa de ser um personagem desprezível e passa a ser uma ameaça.

A reconciliação, então, entre Cícero e Catilina é necessária como um mecanismo de enfraquecimento do radicalismo destrutivo de Clódio. A sobreposição das propostas utópicas e conservadoras representadas pelos dois é improvável, mas se torna possível graças à união entre o jovem idealista e a filha estoica do velho orador, Júlia, uma personagem entre os dois mundos. Seu respeito pelo próprio pai é claro, contudo, a sua admiração por Catilina transparece desde a primeira cena. Ao fim, essa união sagrada motivada pelo amor se comporta como a única solução viável para um mundo dividido que ameaça a liberdade dos indivíduos a partir do aparecimento de novos líderes menos inspirados e talvez menos bem-intencionados. O filme de Coppola acerta em ser capaz de se apropriar de várias imagens, paisagens, falas e personagens da história romana para criar um mundo novo que, deve-se dizer, parece mais com o nosso.

Danilo Bernardino

Doutorando no Programa de Metafísica da Universidade de Brasília. Professor de História da Secretaria de Educação do Distrito Federal.

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