Eu me lembro como se fosse hoje a primeira vez que tive contato com a obra e a persona de Maria Callas. Foi de uma forma indireta, em 1996, com o maravilhoso monólogo Master Class da também maravilhosa (e finada) atriz Marilia Pêra. Aquela mulher visceral, inflexível e, ao mesmo tempo, extremamente sábia me encantou.
A peça era ficção, mas a força da presença da diva suprema dos palcos (Marilia e Callas) me tomou de surpresa. Depois disso, adicionei-a à minha longa lista de personagens intrigantes e instigantes que me encantariam ao longo da vida. Sua trágica história de amor com o inescrupuloso Aristotle Onassis, que, apesar de um intenso relacionamento de 8 anos com Callas, na hora de escolher uma nova esposa, optou pela “viúva da nação norte-americana” Jackie O.
Alguns (vários) documentários e livros depois sobre o assunto, eis que me deparo agora com “Maria”. O filme do diretor chileno Pablo Larraín – que com Jackie (2016) e Spencer (2021), de certa forma, se especializou em divas trágicas do mainstream mundial – estreou no Festival de Veneza em agosto de 2024. Larraín adora fazer uma biopic, em sua filmografia ainda temos Neruda (2016) com Gael García Bernal e El Conde (2023), uma sátira sobre o ditador Pinochet. Para Jackie (2016), Larraín escolheu a comportadinha Natalie Portman, já em Spencer (2021) ele arriscou bastante com a rebeldia natural de Kristen Stewart.
Com isso, percebemos que Larraín gosta de grandes nomes em seus elencos, mesmo que estes, por vezes, não nos remetam imediatamente à imagem da celebridade que representam. E assim chegamos à escolha de Angelina Jolie para incorporar a greco-americana Maria Anna Cecilia Sofia Kalogeropoulou.
Fisicamente, Jolie tem com Callas apenas a magreza em comum. O porte, os traços faciais, os olhos, o nariz, os maneirismos, o sorriso, nada disso nos remete à grande soprano. Porém, a princípio, isso pode ser contornado com uma atuação espetacular. Mas infelizmente não é isso que recebemos aqui. Os fãs ferrenhos do trabalho da atriz podem argumentar o contrário, mas do meu ponto de vista, a escolha foi equivocada. Uma pequena (quase imperceptível) prótese nasal não é o suficiente para tirar Angelina de dentro de Angelina. Callas não coube nesse receptáculo. Ela é muito maior.
Por outro lado, a atriz e cantora grega Aggelina Papadopoulou já nos convence bem mais nas poucas cenas em que aparece como a jovem Maria.
Jolie, supostamente, estudou ópera por sete meses para o papel e a voz que ouvimos no filme é parcialmente a dela misturada com a de Callas. Mas o efeito desse artifício foi nulo, Jolie não atinge a profundidade dramática necessária para brilhar no palco de uma ópera nem possui aquele fogo, aquela fera indomada que habitava a prima-dona e era conhecida por todos ao seu redor, principalmente jornalistas inconvenientes.
Aqui também preciso admitir que o roteiro de Steven Knight (Peaky Blinders) não parece estar encaixado no contexto lírico de uma vida complexa como a de Callas. Mesmo os personagens do mordomo Ferruccio, Pierfrancesco Favino, e da auxiliar doméstica Bruna, Alba Rohrwacher, acabam por nos impressionar mais do que a interpretação de Angelina dentro desse roteiro. Aqui ou ali, temos cenas impressionantes, mas que assim se tornam mais devido ao excelente som e cenografia do que pelo roteiro e atuações.
E falando nisso. Os visuals e números musicais de Maria são o que realmente vale a pena aqui, e nisso a cenografia de Edward Lachman (Carol – 2015) merece aplausos efusivos. As combinações entre sons e imagens, as alucinações lúdicas de Maria e as encenações com Paris como pano de fundo são de tirar o fôlego, e nos entregam tudo que poderíamos esperar, plasticamente, de uma obra de primeira linha e com produção apurada nos mínimos detalhes. Maria é um filme de se devorar com os olhos e ouvidos. Principalmente, com os olhos. Ou com os ouvidos abertos e de olhos fechados nas cenas de Jolie mimetizando Callas.
Outro ponto de discussão seria a duração da obra. Tendo em vista a riqueza das experiências de Callas, Maria é um filme ao mesmo tempo, muito breve e muito longo. Muito breve para dar a atenção necessária à vida da artista, salvo em breves flashbacks pouco informativos, e longo demais ao acompanhar as andanças de Jolie por Paris ou as muitas cenas pouco expressivas dentro de seu apartamento. Jolie é uma ice queen enquanto Callas era um vulcão em constante erupção.
A indicação de Jolie ao Globo de Ouro me levou a procurar o filme, e, não me privando desse breve à parte, sua atuação foi imensamente inferior à da grande Fernanda Torres, que acabou levando o troféu para casa por sua incrível performance no filme “Ainda Estou Aqui“.
Maria Callas em breve no streaming
A estreia de Maria está prevista para o início de fevereiro no Brasil. Apesar de ser uma produção do canal de streaming Netflix, a obra estará, primeiramente, disponível apenas nos cinemas.
Confira outra crítica nossa sobre o filme aqui.
Sugestão de leitura
Em meados de 1950, a imprensa soltou uma bomba que chocou a opinião pública brasileira: o imigrante letão Herberts Cukurs, criador e proprietário dos pedalinhos da Lagoa Rodrigo de Freitas, cartão postal do Rio de Janeiro, havia cometido crimes de guerra durante a ocupação nazista da Letônia. Neste livro, que vai virar filme, o historiador Bruno Leal, professor da Universidade de Brasília e criador do Café História, investiga o chamado “Caso Cukurs”, desde a chegada de Cukurs no Brasil até a sua execução por agentes secretos do Mossad, de Israel. Livro disponível nas versões impressa e digital. Confira aqui.