“Maria”: um retrato de Maria Callas no apagar das luzes

Angelina Jolie empresta corpo, alma e um pouquinho da voz para viver a soprano Maria Callas nos cinemas.
17 de janeiro de 2025
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Angelina Julie interpreta Maria Callas em cena do filme. Ela aparece de costas. A luz é escura e há um feixe de luz no palco.
Filme sobre Maria Callas é um dos mais bem cotados no Oscar 2025. Foto divulgação.

O diretor de cinema chileno, Pablo Larrain, vem se especializando em biografias cinematográficas de figuras femininas de destaque. Em 2016, lançou o filme “Jackie”, com Natalie Portman no papel de Jacqueline Kennedy; em 2021, Kristen Stewart incorpora a alma de Princesa Diana no filme “Spencer”. Ambas as atuações renderam indicações ao Oscar de Melhor Atriz (Portman e Stewart) nos seus respectivos anos (2017 e 2022).

Em 2024, é a vez de Angelina Jolie encarar a difícil tarefa de interpretar a diva da ópera, Maria Callas. Não é possível afirmar – apesar de que alguns críticos e jornalistas especializados flertam com a ideia – que Pablo Larrain tenha construído uma trilogia. Primeiro, porque não foram filmes pensados de tal maneira e, segundo, porque não sabemos se amanhã o diretor resolverá trazer para as telas mais uma cinebiografia de uma mulher de importância histórica tal qual Kennedy, Diana e Callas.

No entanto, é clara a assinatura de Larrain em seus filmes, e está evidente em “Jackie”, “Spencer” e “Maria”. As impressões digitais do diretor chileno não estão apenas na forma e na estética de cada filme, nos enquadramentos sempre buscando a proximidade com as personagens principais, à beira da intimidade, e no tempo e ritmo densos suficientes para convidar o público a adentrar o universo de suas obras. São cinebiografias que fogem ao formato tradicional, aquela famosa fórmula para uma narrativa linear, destacando o início da vida da personagem, passando pelas adversidades, a superação, a glória e a redenção final.

Em “Maria”, assim como em “Jackie” e “Spencer”, Larrain opta por um recorte específico da trajetória destas mulheres, utiliza soluções que a princípio parecem simples, mas que exigem uma montagem afiada para funcionarem. Nos filmes (exceto em “Spencer”) as personagens discorrem sobre suas vidas por entrevistas com jornalistas, há a exploração de trovões internos ligados às emoções contidas ou não e, finalmente, a curiosa adição de elementos fantásticos que adicionam mistério ao roteiro.  

É visível e louvável o esforço e dedicação que Angelina Jolie emprega para interpretar a soprano Maria Callas. Indicada ao Globo de Ouro na categoria Melhor Atriz, o feito deve se repetir nas nomeações para o Oscar, onde seu nome já figura como um dos favoritos.

Maria Callas não é uma personagem simples de interpretar – adicione-se a isso um roteiro que é um exercício de imaginação do que supostamente teriam sido os últimos dias de vida da personagem. Os conflitos de Callas revolvem entre a busca de sua voz perfeita de outrora, uma voz que não voltará mais, o temor pela exposição pública de suas falhas, a constante autodeterminação – seja perante seus empregados ou em relações amorosas – e, finalmente, a compreensão de seu lugar na história.

Angelina Jolie transita por estes conflitos de maneira intensa e intuitiva, numa de suas mais afinadas performances desde sua atuação como a mãe de Grendel, na animação “Beowulf” (2007), baseado no antigo poema anglo-saxão. No entanto, logo após a primeira cena do filme, Jolie surge como Maria Callas, em preto e branco (fotografia espetacular de Ed Lachman), num plano fechado onde é possível enxergar todos os detalhes de sua face, cantando “Ave Maria” da Ópera Othelo, de Giuseppe Verdi.

Atriz empresa corpo e alma à Maria Callas

Por mais que a atriz empreste seu corpo e alma à personagem, causa um enorme incômodo observar o deslumbre da voz da soprano através da boca de Angelina Jolie. É evidente que aquela voz não é da atriz e, mesmo que mergulhemos na licença poética (afinal, que atriz atualmente poderia replicar a voz de Maria Callas?), é algo que distrai incialmente. Em entrevistas pré-lançamento, Angelina Jolie revelou que trabalhou e estudou por sete meses para que aprendesse a emular a voz de Callas.

O diretor admitiu que no filme a voz de Jolie é misturada com arquivos de voz de Callas para atingir algum nível de veracidade e não soar como dublagem apenas. Para a revista Variety, Larrain disse que em algumas cenas a voz da atriz é 5% e, em outras, pode chegar a 60% – o restante é de Maria Callas.

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Cinebiografia de Maria Callas tem direção de Pablo Larrain. Foto: reprodução.

Mas, para apreciar um filme precisamos mesmo deste tipo de questionamento? Vamos questionar se Christopher Reeve realmente voava em “Superman”? Ou quanto do rosto de John Hurt em “O Homem Elefante” era dele mesmo e quanto era maquiagem e caracterização? A arte do cinema é também a arte do que chamamos de “Suspension of Disbelief”, que pela definição de Oxford, trata-se do conceito de que para se envolver emocionalmente em uma narrativa, o público deve reagir como se os personagens fossem reais e os eventos estivessem acontecendo agora. 

Angelina Jolie e Pablo Larrain nos presenteiam com uma Maria no apagar das luzes, ao recolhimento das cortinas, repleta de conflitos internos e, ao mesmo tempo, enigmática. Se por um lado recusa-se a sair de cena, por outro, envereda-se numa espiral de autodestruição, repele os admiradores, mas busca constantemente a admiração, nega ajuda médica e evita entregar-se com suavidade, refuta romances, mas anseia por amores. 

Para os amantes da ópera, o filme é um deleite e permite-se traçar um paralelo entre as músicas cantadas por Jolie/ Callas e os momentos vivenciados pela personagem no longa. 

A Netflix divulgou uma lista das músicas que estão no filme, acompanhadas das cenas em que são cantadas, para quem deseja assisti-lo com este olhar. Replico abaixo:

Otello: Act IV: “Ave Maria” — Giuseppe Verdi

Norma: Act I: “Casta Diva” — Vincenzo Bellini 

Il Trovatore: Act II: “Vedi! Le Fosche Notturne Spoglie” — Giuseppe Verdi 

Gianni Schicchi: “O Mio Babbino Caro” — Giacomo Puccini 

La Traviata: Act III: “Intermezzo” — Giuseppe Verdi 

La Wally: Act I: “Ebben? Ne Andrò Lontana” — Alfredo Catalani 

Medea: Act III: “E Che? Io Son Medea” — Luigi Cherubini 

Carmen: Act I: “L’Amour Est un Oiseau Rebelle (Habanera)” — Georges Bizet 

Madama Butterfly: Act II: “Coro a Bocca Chiusa” — Giacomo Puccini 

I Puritani: Act II: “Qui la Voce Sua Soave” — Vincenzo Bellini 

Parsifal: Act I: “Prelude” — Richard Wagner 

La Traviata: Act I: “Sempre Libera” — Giuseppe Verdi 

La Traviata: Act III: “Addio del Passato” — Giuseppe Verdi 

Anna Bolena: Act II: “Piangete Voi?” — Gaetano Donizetti 

Tosca: Act III: “E Lucevan le Stelle” — Giacomo Puccini 

Tosca: Act II: “Vissi d’Arte” — Giacomo Puccini 

Nabucco: Act III: “Va, Pensiero, Sull’ali Dorate” — Giuseppe Verdi 

Confira outra crítica nossa sobre o filme aqui.

Sugestão de leitura

"Maria": um retrato de Maria Callas no apagar das luzes 2

Em meados de 1950, a imprensa soltou uma bomba que chocou a opinião pública brasileira: o imigrante letão Herberts Cukurs, criador e proprietário dos pedalinhos da Lagoa Rodrigo de Freitas, cartão postal do Rio de Janeiro, havia cometido crimes de guerra durante a ocupação nazista da Letônia. Neste livro, que vai virar filme, o historiador Bruno Leal, professor da Universidade de Brasília e criador do Café História, investiga o chamado “Caso Cukurs”, desde a chegada de Cukurs no Brasil até a sua execução por agentes secretos do Mossad, de Israel. Livro disponível nas versões impressa e digital. Confira aqui. 

Alex Levy-Heller

Alex Levy-Heller é cineasta, sócio-diretor da Pipa Pictures, BFA em Artes Dramáticas pela University of Nebraska, USA, membro da Academia Brasileira de Cinema, DBCA (Diretores Brasileiros de Cinema e do Audiovisual) e da Associação Brasileira de Cineastas. Dirigiu os filmes: "O Relógio do Meu Avô", "Macaco Tião - O Candidato do Povo", "Christabel" e "Jovens Polacas".

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