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Lucie Varga: a “desconhecida” historiadora dos Annales

Ao estudar o movimento historiográfico dos Annales, considerado um divisor de águas para a pesquisa e escrita da História, costumeiramente montamos em nossas cabeças uma espécie de “linhagem” das grandes figuras associadas à publicação francesa. Marc Bloch, Lucien Febvre, Fernand Braudel, Georges Duby, Pierre Nora, Jacques Le Goff… A alguém que passou por uma graduação na disciplina, esses nomes aparecem quase naturalmente ao se refletir sobre o fazer histórico, ainda considerados pilares de uma forma de se fazer a História “nova” – mesmo que algumas dessas novidades já acumulem boas décadas de existência.

Igualmente comum é a defesa de que esse clima de inovação metodológica e temática teria favorecido o desenvolvimento do estudo da História das Mulheres, que ganhava relevo historiográfico também em função do forte impulso dos movimentos feministas a partir da década de 1960.

Fotografia da historiadora Lucie Varga. Foto: © Suhrkamp-Verlag, Frankfurt a. Main

Ainda que essas afirmações não estejam de todo modo equivocadas, é bastante curioso observar que dentro da própria revista dos Annales, em 1986 – portanto, uns bons anos depois de todo o boom da luta pela emancipação feminina na França – tenha sido publicado um artigo coletivo 1 que denunciava, entre outras coisas, a falta de espaço na publicação para a História das Mulheres. Diziam as autoras, na ocasião:

“Escolher para isto [um ensaio de historiografia sobre o tema] esta revista, os Annales, não decorre do acaso, nem mesmo do desejo de demarcar uma publicação que, sem ignorar a história das mulheres, não lhe tem concedido um grande espaço”. 2

Percebemos, então, um duplo problema de fundo: durante pelo menos boa parte de sua existência, a revista abordou a História das Mulheres em raras ocasiões; e, ao observar aqueles nomes aos quais ligamos a sua identidade, ficamos com a pergunta: onde estariam as historiadoras dos Annales?

Numa publicação cuja direção ainda não foi ocupada por mulheres e da qual a prevalência em outros cargos segue sendo masculina, uma presença feminina nos primeiros anos da revista parece bastante significativa e pouco lembrada: trata-se de Lucie Varga. Sua trajetória, de certa forma, é bastante elucidativa do problema em questão.

A secretária estrangeira de Lucien Febvre

Nascida Rosa Stern no ano de 1904, em uma cidade próxima a Viena chamada Baden, ela era proveniente de família de posses. Por capricho, ainda jovem mudou o nome para Lucie. Casou-se com Joseph Varga, jovem húngaro de origem mais modesta. Da união, teve uma filha chamada Berta. Um ano depois desse nascimento, inscreveu-se na Universidade de Viena, onde estudou História, História da Arte e Filosofia. Em 1932, defendeu a sua tese de doutorado sobre a Idade Média. 3

No ano seguinte, separou-se do marido, e começou a dar aulas em uma universidade popular criada em uma municipalidade socialista em Viena (Volkschochschule). Foi esse o momento de sua extrema politização. Lucie Varga aderiu ao movimento antifascista, além de engajar-se no movimento feminista. 4 Casou-se pela segunda vez com Franz Borkenau, intelectual austríaco que viria a ser considerado um dos primeiros a elaborar o conceito de “totalitarismo”. 5 A relação pouco durou, mas é digna de ser mencionada porque a jovem historiadora tomou com ele a decisão de sair de Viena. As origens judaicas do casal cada vez mais ameaçavam a sua integridade naquele país.

No momento em que o mais comum entre os seus pares era buscar abrigo em Praga, Varga e o marido decidiram mudar-se para Paris. Ela queria dar prosseguimento aos seus estudos. Logo conheceu o eminente historiador Lucien Febvre, um dos “pais fundadores” da revista Annales d’histoire économique et sociale, que a contratou como assistente. Em carta escrita a Marc Bloch, seu parceiro nos Annales, ele comentava:

“Meus trabalhos… aqui, novamente, eu lhe asseguro. Trabalho ativamente nas Religiões do século XVI. Contratei um “treinador”, melhor dizendo uma treinadora: 6 uma austríaca aluna de Dopsch 7, sobre o qual creio já ter falado com você, madame Varga-Borkenau – que três manhãs por semana vem trabalhar comigo”. 8

Artigo “A gênese do nacional-socialismo – notas de uma análise social”, de Lucie Varga, publicado em 1937.

Graças a seu intermédio, Franz Borkenau publicou três artigos nos Annales. Mas as oportunidades profissionais acabaram por afastar o casal. Ele quis seguir viagem para Londres depois de um tempo; ela permaneceu em Paris. E a distância parece ter acarretado a separação dos dois. Gradualmente, a relevância da atuação da aprendiz para o trabalho de Febvre ia aumentando, a ponto de Varga fichar livros e fornecer, assim, material para que Febvre pudesse publicar na Revue de Synthèse e nos Annales resenhas de obras que ele não tinha tempo de ler. 9 Durante sua carreira, Varga dedicou-se aos estudos sobre fenômenos de religiosidade e a fascinação que eles ainda exerciam. Inicialmente dedicada aos estudos medievais, logo ampliou a abordagem ao analisar tais fenômenos na contemporaneidade.

O passo seguinte foi o de começar a assinar as resenhas nas duas publicações. Varga se tornava a primeira mulher a publicar regularmente nos Annales. Mas sua relevância foi além: a edição mais engajada politicamente da revista – uma de 1937, dedicada ao estudo sobre a Alemanha – contou com uma forte participação da historiadora, que escreveu a apresentação do dossiê e alguns artigos, dentre os quais destaca-se um sobre a gênese do nacional-socialismo. 10

É nesse sentido que alguns defendem a relevância de Lucie Varga para o projeto dos Annales. Há quem diga que os rumos da revista foram alterados significativamente em função de sua atuação e suas ideias sobre a História. Especialmente nesses artigos antifascistas, Varga debatia a ideia de “autoridades invisíveis” como fundamentadora da adesão ao nazismo, bem como a de uma propensão dos alemães a buscar bodes expiatórios – no contexto em questão, os judeus e os socialistas, por exemplo – em momentos de crise. Recorria aos estudos sobre a psicologia para buscar explicações para esse fascínio que a extrema-direita alemã exercia sobre o que chamava de “massas anônimas” à extrema-direita alemã. Sua análise social da ascensão desse fenômeno político, nesse sentido, seria basilar para o desenvolvimento das outillages mentales (mentalidades) que consagrariam o trabalho de Lucien Febvre. 11 Ainda que essa afirmação nos soe exagerada, cabe refletir sobre os motivos pelos quais essa possível influência da discípula ser tão pouco discutida. Fato é que artigos de Febvre considerados centrais para o estabelecimento de uma “História das Mentalidades” foram escritos a partir de 1938, 12 portanto, depois de toda a relação entre ele e a historiadora austríaca.

Crises

Além da aproximação profissional, a relação pessoal entre o diretor dos Annales e Varga também aumentava. Ela passou a visitar a casa dos Febvre mais frequentemente. Chegou a dar aulas de alemão e a levar o filho Henri para conhecer a Áustria.13 Sob a sua orientação, Lucien Febvre programou uma viagem de férias a Viena e Praga, ocasião na qual aproveitou para estabelecer contatos profissionais com antigos professores e colegas da austríaca. Ao fim, envolveram-se em um relacionamento amoroso.

Em 1937, o relacionamento pessoal e profissional entre Febvre e Varga encontrou a ruptura.14 Constrangido e enfrentando uma crise pessoal, então, Febvre aceitava uma missão de trabalho de três meses na Argentina naquele verão. Curiosamente, foi em um cruzeiro que fez durante essa viagem que reencontrou Fernand Braudel – que, sabemos, futuramente seria o novo diretor da revista –, que havia sido aluno dele e de Marc Bloch em Estrasburgo, e com quem se encontraram em eventos episódicos ao longo da década de 1930. Braudel estava tomando a embarcação para retornar a Paris depois de uma temporada como professor na Universidade de São Paulo.

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Quanto à Varga, essa ruptura pessoal veio acompanhada de outra de cunho político. A Anschluss, anexação da Áustria à Alemanha, em 1938, obrigou-a a prover o seu sustento e de sua filha sem o apoio da família austríaca. Lucie tentou seguir a carreira acadêmica, além de outras atividades, como representante comercial e operária de fábrica. Em meio a tantas dificuldades, publicou um romance (em formato de folhetim, dividido em 13 episódios) no periódico socialista L’Oeuvre.

Em 1939, casou-se uma terceira vez, motivo pelo qual garantiu a naturalização francesa que a salvaria da deportação quando a França foi derrotada na guerra em 1940. Trabalhou como tradutora até estourar o conflito mundial e, depois da desastrosa campanha francesa, viu-se obrigada a migrar com a filha para Toulouse, no sul da França. Lá, buscou a sobrevivência dando aulas de alemão e fazendo trabalhos agrícolas. Toda essa instabilidade vivida nos últimos anos prejudicou bastante a sua saúde – ela era diabética – e, em abril de 1941, ela não resistiu à doença e faleceu, aos trinta e seis anos 15.

A primeira historiadora dos Annales, então, foi uma mulher socialista, judia e feminista. Uma trajetória tão singular, e cujo silêncio sobre a mesma nos parece ensurdecedor.

Notas

[1] Michèle Perrot, Arlette Farge, Cécile Dauphin, Christiane Klapisch-Zuber, Rose-Marie Lagrave, Geneviève Fraisse, Pauline Schmitt-Pantel, Yannick Ripa, Pierrette Pézerat, Danièle Voldman. “Culture et pouvoir des femmes: essai d’historiographie”. In: Annales. Économies, Sociétés, Civilisations. 41ᵉ année, N. 2, 1986. pp. 271-293. Esse texto foi traduzido para o português por Rachel Soihet, Rosana M. Alves e Suely Gomes Costa e publicado na revista GÊNERO. Revista do Núcleo Transdiciplinar de Estudos de Gênero – NUTEG V.2-N. 1. Niterói: EdUFF, 2000, p. 7-30.

[2] Idem, p. 7.

[3] Todos os dados biográficos foram retirados de Peter Scholler. “Lucie Varga (1904-1941), l’<<entraîneuse>> des Annales”. In: André Burguière, Bernard Vincent (org.). Un siècle d’historiennes. Paris: Des femmes – Antoinette Fouquet, 2004, p. 315-330.

[4] Idem, p, 316.

[5] Franz Borkenau. The Totalitarian Enemy. Londres: Faber and Faber, 1940.

[6] O termo em francês é “entraîneuse”. Bertrand Müller (“Introduction”. In: Marc Bloch, Lucien Febvre Correspondance. Paris: Fayard, 2003. t.3. Les Annales en crise [1938-1943]) destaca a triste escolha do emprego da palavra, pois em francês ele pode significar “treinadora” ou, pejorativamente, “garota de programa”.

[7] Refere-se a Alfons Dopsch, que foi professor de Lucie Varga na Universidade de Viena.

[8] Carta de Febvre a Bloch, início de março de 1934. Do original: “Mes travaux… Mais, ici encore, que je vous rassure. Je travaille activement aux Réligions du xvie siècle. J’ai pris un “entraîneur”, une entraîneuse plutôt, en la personne d’une Autrichienne élève de Dopsch, dont je vous parlé, je crois, Mme Varga-Borkenau ”. Marc Bloch, Lucien Febvre, Op. cit., 2003, p. 40.

[9] Quem levanta esta hipótese é Peter Schöttler, no livro Lucie Varga: les autorités invisibles. Une historienne autrichienne aux Annales dans les années trente. Paris: Le Cerf, 1991.

[10] Lucie Varga. “La Genèse Du National-socialisme Notes D’analyse Sociale”. Annales d’Histoire Économique et Sociale, 9 (48), 1937. EHESS: 529–46. http://www.jstor.org/stable/27574562. Na mesma edição, Varga assinou, ainda, um artigo sobre a juventude hitlerista.

[11] Para uma visão mais esmiuçada sobre essa relação entre o trabalho de Varga e as “mentalidades” de Lucien Febvre, ver a tese de doutorado de Ana Fernanda Inocente Oliveira, O Sentido da história para a École des Annales. 2014. 162f. (Doutorado em Sociologia) – Unesp/Araraquara.

[12] Publica em 1938 “La Phsychologie et l’Histoire” na Encyclopedie Française, e em 1941, nos Annales, “La Sensibilité dans l’Histoire”. Cf. Ronald Raminelli. “Lucien Febvre no caminho das mentalidades”. In Revista História, São Paulo, n.122, p. 97-115, jan/jul 1990.

[13] Bertrand Müller. “Introduction”. In: Marc Bloch, Lucien Febvre. Op. Cit., 2003, p. XLV.

[14] Peter Schöttler afirma que a ruptura se deu por exigência da esposa de Febvre, Sozanne Dognon, que teria descoberto a relação extraconjugal, enquanto Bertrand Müller indica não saber das circunstâncias para o rompimento.

[15] Berta, a filha, foi para Budapeste, ao encontro do pai e da avó. Acabou sendo deportada em 1944, e salva pelo Exército Vermelho, mas acabou sucumbindo logo em seguida.

Referências bibliográficas

DAVIS, Natalie-Zemon. Women and the wolrd of the “Annales”, History Workshop, n.33, 1992, p.21-137.

OLIVEIRA, Ana Fernanda Inocente, O Sentido da história para a École des Annales (Unesp/Araraquara, 2014).

PERROT, Michèle, FARGE Arlette (et aliae). “Culture et pouvoir des femmes : essai d’historiographie”. In: Annales. Économies, Sociétés, Civilisations. 41ᵉ année, N. 2, 1986. pp. 271-293.

RAMINELLI, Ronald. “Lucien Febvre no caminho das mentalidades”. In Revista História, São Paulo, n.122, p. 97-115, jan/jul 1990.

SCHÖTTLER, Peter. Lucie Varga: les autorités invisibles. Une historienne autrichienne aux Annales dans les années trente. Paris: Le Cerf, 1991.

__________. “Lucie Varga (1904-1941), l’<<entraîneuse>> des Annales”. In: André Burguière, Bernard Vincent (org.). Un siècle d’historiennes. Paris: Des femmes – Antoinette Fouquet, 2004, p. 315-330.

VARGA, Lucie. “La Genèse Du National-socialisme Notes D’analyse Sociale”. Annales d’Histoire Économique et Sociale, 9 (48), 1937. EHESS: 529–46.

Como citar este artigo

YAMASHITA, Jougi Guimarães. Lucie Varga: a “desconhecida” historiadora dos Annales (Artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/lucie-varga-e-os-annales/. Publicado em: 3 Jul 2017. Acesso: [informar data].

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