Em 30 de junho de 1950, a Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro organizou uma coletiva de imprensa para fazer uma grave denúncia: Herberts Cukurs, o imigrante letão que levara os pedalinhos para a Lagoa Rodrigo de Freitas, havia cometido crimes de guerra na Letônia ocupada pelos nazistas. Dali em diante, pelos próximos 15 anos, parlamentares, imprensa, entidades civis e organizações judaicas organizariam uma ampla campanha a fim de exigir do governo brasileiro uma coisa: a expulsão de Cukurs do Brasil.
Em “O homem dos pedalinhos – Herberts Cukurs: a história de um alegado criminoso nazista no Brasil do pós-guerra”, que publicado pela FGV Editora, o historiador Bruno Leal, professor da Universidade de Brasília (UnB) e criador do Café História, explica como as autoridades brasileiras lidaram com esse enorme e inédito imbróglio no imediato pós-guerra. Confira o livro aqui, nas versões impressa e digital.
“O livro não é uma biografia e nem uma investigação sobre a vida de Herberts Cukurs na Letônia ocupada pelos nazistas. Meu foco recai na posição do Estado brasileiro. Eu examinei milhares de documentos em arquivos e bibliotecas do Brasil, da Inglaterra, dos Estados Unidos, de Israel e do Uruguai. A atuação de nossas autoridades esteve longe de ser perfeita, mas é surpreendente ver o seu esforço na investigação. O Caso Cukurs mobilizou embaixadas, consulados, órgãos de segurança pública, agências de inteligência, ministérios, governos estrangeiros e cinco presidentes da República”, diz Carvalho.
Uma das principais contribuições do novo livro é romper com as narrativas esquemáticas ou conspiratórias que costumam explicar todos os casos de alegados criminosos nazistas no Brasil. Durante muito tempo, a imprensa e a cultura de massa repetiram que Cukurs não foi expulso e nem extraditado do Brasil porque ele teria contado com o acobertamento do governo brasileiro e a proteção de redes nazistas secretas internacionais. Como os historiadores mantiveram-se afastados do tema por muito tempo, essas narrativas ganharam força e nunca foram contestadas.
Em 1950, o imigrante letão Herberts Cukurs, então proprietário dos pedalinhos da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, foi acusado de ter cometido crimes de guerra durante a ocupação nazista da Letônia. O “caso Cukurs” logo se tornou conhecido no Brasil e no exterior e mobilizou governos, entidades judaicas e não judaicas, parlamentares e opinião pública. Percorrendo documentos inéditos, disponíveis no Brasil e no exterior, este livro examina a complexa construção do histórico “caso Cukurs”, sobretudo a posição das autoridades brasileiras diante dele.
“O Ministério da Justiça indeferiu todos os pedidos de naturalização de Cukurs, o que deixou ele bastante desprotegido. Por outro lado, Cukurs nunca foi expulso ou extraditado, mas não porque ele tivesse contado com o acobertamento do governo e de redes nazistas, e sim devido a um somatório de motivos: a retórica anticomunista da Guerra-Fria, a ausência de pedidos de extradição a negligência de governos estrangeiros, especialmente o da Inglaterra, problemas de natureza formal nas peças acusatórias, entre outros. Isso não quer dizer que não havia antissemitismo no governo. Alguns funcionários públicos expressaram opiniões claramente antissemitas e suas ações eram favoráveis à permanência de Cukurs no Brasil, mas isso não explica o desfecho do caso”, diz o autor.
“Eichmann brasileiro”, segundo a imprensa
Em 1960, a imprensa brasileira começou a chamar Cukurs de “Eichmann brasileiro”, em referência a captura de Adolf Eichmann, na Argentina, pelo Mossad. Isso aterrorizou Cukurs, que achou que seria o próximo alvo dos agentes israelenses. A polícia de São Paulo chegou a destacar policiais para dar proteção do imigrante letão, já que havia um grande medo de que a soberania nacional fosse violada, como no país vizinho.
“A acusação contra Cukurs baseou-se, fundamentalmente, no depoimento de cinco judeus sobreviventes do Holocausto na Letônia. Esses depoimentos eram muito sérios e impactantes: afirmam que Cukurs matou milhares de judeus, participou do incêndio de sinagogas e de outros tantos crimes hediondos. Cukurs, por sua vez, negava as acusações, embora admitisse ter colaborado com a ocupação nazista. O governo brasileiro abriu várias frentes de investigação, mas esbarrou na má-vontade de vários governos estrangeiros. Nos anos 1960, a Alemanha Ocidental, a capitalista, demonstrou algum interesse em pedir a sua extradição à justiça brasileira, mas esse pedido jamais foi feito, e Cukurs continuou vivendo no Brasil. O caso foi um quebra-cabeça”, afirma Carvalho.
Tramas secundárias do Caso Cukurs
O livro tem ainda o mérito de capturar várias tramas secundárias que ajudam a entender as várias dimensões do caso. Na Letônia, Cukurs lutou como na guerra de independência do país e obteve o status de herói nacional, graças aos voos de longa distância que fazia com aviões construídos por ele próprio. Quando imigrou para o Brasil, logo depois da Segunda Guerra Mundial, veio acompanhado por uma jovem judia cuja vida ele salvou dos nazistas. O caso perdurou até 1965, quando Cukurs foi assassinado no Uruguai, por agentes do serviço secreto israelense, o Mossad. Em cima do peito sem vida de Cukurs, foi deixado um bilhete com uma assinatura: “Aqueles que nunca esquecerão”.
Na apresentação da obra, o historiador Fabio Koifman, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, sublinha que “é com entusiasmo que os estudos da história do Brasil desse período e demais interessados no tema recebem o trabalho de uma brilhante tese de doutorado. (…) O leitor merece sempre ser informado de maneira clara se seus olhos percorrem obras que misturam realidade com ficção ou se, de fato, está lendo um texto historiográfico. O presente livro é trabalho de historiador…e dos bons”.
Sobre o autor
Bruno Leal Pastor de Carvalho é professor do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB) e editor do portal de divulgação científica Café História. O livro é fruto de sua tese de doutorado, defendida em 2015, no Programa de Pós-Graduação em História da UFRJ.
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