Roger Ebert foi um dos maiores críticos cinematográficos que já houve. Vencedor de um Prêmio Pulitzer e merecedor de uma estrela na Calçada da Fama de Hollywood, certa vez escreveu: “Quando você pergunta a um amigo se Hellboy é bom, você não está perguntando se é bom em comparação com Sobre Meninos e Lobos (Mystic River), você está perguntando se é bom em comparação com O Justiceiro (The Punisher).” Essa frase, aparentemente simples, ilustra uma abordagem essencial para a crítica: a análise deve levar em conta o contexto, o estilo e o público-alvo da obra.
Nem tudo se resume a gêneros ou preferências pessoais. Trata-se de compreender os objetivos e as expectativas de cada produção. Uma pessoa que é fã de filmes de ação pode achar 2001: Uma Odisseia no Espaço entediante, ainda que artisticamente seja um marco incomparável no cinema. Assim, ao criticar, é essencial avaliar o quão bem uma obra atende aos seus propósitos dentro do estilo a que pertence. Nada é simplesmente bom ou ruim. Tudo — filmes, livros, políticas públicas — é bom ou ruim para alguém.
Ebert era um mestre nessa arte. No mesmo texto do qual selecionei a frase acima, ele chamou Kung-Fu Futebol Clube (Shaolin Soccer) de “uma bobagem”, mas “uma bobagem superior”. E pontuou: “Se você está pensando em assistir a um filme em que os jogadores voam 15 metros no ar e violam tudo o que Newton considerava sagrado, você não quer saber se eu achei que era tão bom quanto Encontros e Desencontros (Lost in Translation).”
Essa reflexão serve como ponto de partida para analisar O Jogo da Corrupção, a segunda temporada da produção franco-chilena El Presidente (Amazon Prime, 2022). Em oito episódios, a série narra a ascensão de Jean-Marie Faustin Goedefroid de Havelange — mais conhecido como João Havelange, o filho de um comerciante de armas belga que governou a FIFA por 22 anos.
Se você procura uma série documental e investigativa que explore profundamente a corrupção no futebol, esta produção não é para você. Melhor seria ler Foul, do jornalista escocês Andrew Jennings (publicado no Brasil como Jogo Sujo). A própria série deixa isso claro logo no início, ao incluir um aviso peculiar: “Apesar de esta história se basear em eventos reais, certos personagens, caracterizações, incidentes, localidades e diálogos são fictícios ou inventados para fins de dramatização”. Isso levanta uma questão: quais partes são baseadas em fatos e quais foram inventadas? A série não responde.
No sexto episódio, por exemplo, o cenário é a Copa do Mundo de 1978, na Argentina, a primeira sob a presidência de Havelange. O general Jorge Videla, através do almirante Augusto Raúl Juárez (um personagem fictício baseado em Carlos Lacoste, militar que comandou o comitê organizador da Copa argentina), ordena que Havelange suborne a seleção brasileira para facilitar a vitória da Argentina. Havelange recusa, mas, acompanhado de Teófilo Salinas, presidente da federação peruana, vai ao vestiário do Peru para oferecer suborno ao time antes de sua partida crucial contra a seleção da casa. Ambos são interrompidos por Videla, que deseja aos jogadores peruanos um “retorno seguro”.
Segundo o professor Luiz Henrique Borges, pesquisador do futebol brasileiro e seus embates com nossos hermanos argentinos, os jornais da época noticiaram que Videla, de fato, foi ao vestiário da seleção peruana antes do jogo (que, não custa lembrar, terminou 6 x 1 para os argentinos) para “desejar sorte” aos jogadores peruanos, mas estava acompanhado de Henry Kissinger, então secretário de Estado dos EUA, e não de Havelange. Na série, Kissinger tem uma aparição muito breve e fica subentendido que ele intermediou o patrocínio da Coca-Cola à FIFA e à Copa do Mundo.
Se não podemos confiar na veracidade dos eventos apresentados, então por que assistir?
Porque a série é divertida e abraça sua ficcionalidade com criatividade. Sergio Jadue, narrador da história, é um exemplo disso. Ex-presidente da Federação Chilena de Futebol, Jadue interage com a trama, discute ao telefone com seu agente por mais dinheiro e até entra em greve. Personagem principal da primeira temporada da série (2020), infelizmente não mais disponível no Brasil, nessa segunda temporada, Jadue comenta as situações a partir de seu ponto de vista, nos apresenta os personagens, explica os bastidores e interfere diretamente na história.
Mesmo no tom leve e cômico, a série aponta aspectos históricos importantes. Ditadores como Castello Branco, Médici e Videla são rotulados sem rodeios. Quando Havelange é recebido pelo general Médici, o narrador nos informa: “O Brasil tinha um novo presidente. Sim, outro militar. Esse era um pouco mais linha-dura. Não sei por que, mas achei bem parecido com o anterior” — Médici, Castello Branco e Geisel são representados pelo mesmo ator (o brasileiro Nélson Freitas), marcando a continuidade da ditadura brasileira. Já na Argentina, a situação política é descrita pelo narrador como: “ditadura sangrenta, pessoas desaparecidas, sequestro de crianças, repressão e tortura”. Embora em cena mais curta, as torturas praticadas pela ditadura chilena no Estádio Nacional de Santiago são evidenciadas.
Já Havelange aparece como um personagem mais matizado. Um apaixonado pelo esporte (participou de dois jogos olímpicos como atleta e foi um dos membros mais longevos do COI, 1963-2011), ele inicialmente é um purista, revoltado com o que vê como a armação inglesa na Copa de 1966 (os brasileiros foram caçados em campo diante da complacência dos juízes, que nada fizeram contra a violência dos adversários).
Determinado a acabar com a dominação europeia do futebol, Havelange é, nos primeiros episódios, quase um Dom Quixote, um sonhador idealista. Seu sonho de uma Copa do Mundo para todos, no entanto, é rapidamente transformado (numa visão um pouco rousseauniana) pelas realidades da política da FIFA, pelo racismo dos europeus e pela realpolitik.
Para tomar o poder em Zurique, ele trafica armas e votos na África, cria a Confederação Sul-Americana de Futebol e promete uma Copa do Mundo de juniores para o Japão. Já na FIFA, diante das dificuldades de organizar a Copa do Mundo da Argentina, vende direitos para a Adidas, se alia a ditadores e, pouco antes da Copa da Espanha, cria uma empresa para administrar os direitos de imagem do futebol e ganhar dinheiro livremente, deixando a FIFA “pura” e sem fins lucrativos. Se a série deixa clara a falta de escrúpulos da trajetória de Havelange, também cria uma espécie de guerra Europa x resto do Mundo, na qual é difícil não torcer para o nosso lado.
“Jogo da Corrupção” vale a pena
Com personagens carismáticos e uma narrativa que brinca com sua própria ficcionalidade, O Jogo da Corrupção é uma série envolvente que mistura fato e fantasia para contar uma história de ambição, poder e decadência. Apesar de suas liberdades criativas, é um entretenimento de qualidade que vale a pena e agrada até mesmo quem não se interessa por futebol. Fica a esperança de que a Amazon volte a disponibilizar a primeira temporada para podermos acompanhar mais da história de Jadue e os escândalos da FIFA no século XXI.