O lugar dos “intelectuais mediadores”: entrevista com Angela de Castro Gomes

Eles são fundamentais para a circulação do conhecimento na sociedade; produzem objetos culturais originais e sem os quais os debates na esfera pública teriam outra forma e importância. Conheça os chamados “intelectuais mediadores”.
31 de agosto de 2020
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Angela de Castro Gomes e organizadora e autora, com Patrícia Hansen, de livro que examina os "intelectuais mediadores". Foto: Bruno Leal

Em setembro de 2019, a historiadora Angela de Castro Gomes, um dos mais importantes nomes da historiografia brasileira, e pessoa pela qual eu (e tantos outros colegas da História) temos profunda admiração, esteve em Brasília para dar a “aula magna” do Programa de Pós-Graduação em História da UnB. O evento foi um grande sucesso. Diante de um auditório cheio de estudantes e professores, a historiadora apesentou uma fala intitulada “Ainda os intelectuais mediadores – Alexina de Magalhães Pinto, o folclore infantil e o princípio da máxima fidelidade relativa”.

Antes de seguir para o aeroporto, eu e Ana Paula Tavares, subeditora licenciada do Café História, tivemos o prazer de entrevistar Angela para o nosso portal. Naquele final de tarde nós três conversamos bastante sobre a categoria “intelectual mediador”. O termo aparece no título da sua conferência na UnB, mas foi lançado em um importante livro organizado por ela e pela historiadora Patrícia Hansen: “Intelectuais mediadores: Práticas culturais e ação política” (2016, Civilização Brasileira).

A tese de Angela e Patrícia neste livro é a seguinte: nossa sociedade aprendeu a valorizar a figura do intelectual, que em sentido lato seria aquela pessoa (quase sempre homem e branco) que produz uma “cultura original” capaz de influenciar os debates que ocorrem no espaço público. Esse intelectual pode ser um artista, cientista, acadêmico, inventor, escritor etc. Por outro lado, essa mesma sociedade deu pouco ou nenhum valor a uma outra figura do meio cultural: o vulgarizador/divulgador de conhecimentos. Essa pessoa pode ser um editor, um tradutor, um curador ou um divulgador científico, enfim, uma pessoa que costuma ser entendida como mera mediadora entre os “grandes gênios” de uma época e o grande público. Numa contestável escala de valores, o trabalho de mediação é quase sempre visto como “inferior”, “menos importante”, um trabalho de “repetição” e quase invisível.

Porém, segundo afirmam Angela e Patrícia, essa forma de ver o papel de mediação cultural é um erro. Elas chamam essa segunda “categoria” de “intelectuais mediadores” (reconhecendo-os como intelectuais, portanto) e afirmam a sua enorme importância no mercado de bens culturais. Essas pessoas, de acordo com as duas historiadores, não são meras repetidoras, mas criam algo original, sendo capazes de influenciar também os debates na esfera pública e formar gerações inteiras.  

Para saber mais sobre essa figura do “intelectual mediador”, que tanto orienta nossa percepção do mundo, inclusive nossa percepção desse mundo chamado “passado”, confira a entrevista a seguir, realizada em setembro de 2019, transcrita em dezembro de 2019 e revisada em agosto de 2020 pela entrevistada. Eu tenho certeza que você vai começar a perceber o circuito cultural de uma outra forma, muito mais rica e interessante.  

Angela Maria de Castro Gomes tem graduação em História pela UFF; Doutorado e Mestrado em Ciência Política pelo IUPERJ; Pós-Doutorado no Ceis-20 da Universidade de Coimbra; Professora Titular de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense. Atualmente é Professora Visitante Nacional Sênior da Unirio. É organizadora e autora de inúmeros artigos e livros que se tornaram referência na historiografia brasileira, dentre os quais “A invenção do trabalhismo”, “História e historiadores”, “Burguesia e trabalho” e “Cidadania e direitos do trabalho”, além do já mencionado “Intelectuais mediadores: Práticas culturais e ação política”.

Na entrevista, as perguntas foram feitas por mim ou pela Ana Paula, mas como todas foram elaboradas por nós dois juntos, não achamos ser necessário indicar quem as fez no dia da entrevista, já que tal divisão foi meramente operacional.

Tanto na sociologia quanto na historiografia, há diversos trabalhos consagrados que se debruçam sobre os mediadores culturais. Você e a Patrícia Hansen trazem uma inovação: vocês falam em “intelectuais mediadores”. Quais são as diferenças entre essa categoria de “intelectual mediador” e a de “mediador  cultural”? E entre ela e a categoria, também conhecida, de “intelectual”?

O esforço que eu, a Patrícia Hansen e todo um grupo de pessoas que escreve no livro fazemos, é o de chamar a atenção para a importância e a centralidade da produção cultural de figuras que queremos identificar como “intelectuais mediadores”. Eles são intelectuais que se distinguem por se dedicarem às práticas culturais voltadas, consciente e explicitamente, para projetos de mediação cultural e que, de forma ampla, envolvem a divulgação de conhecimentos e de valores. É algo que está sempre ligado, direta ou indiretamente, a uma dimensão pedagógica e política em sentido largo.

Uma primeira distinção, então, é essa: não estamos falando de práticas de mediação cultural realizadas por atores sociais, muito numerosos e relevantes em qualquer sociedade, como é o caso de algumas figuras familiares (avós), dos professores em geral ou também de uma categoria de trabalhadoras, como as empregadas domésticas. Há vários estudos de sociologia e antropologia que mostram como eles atuam. No nosso caso, estamos recortando práticas de mediação cultural realizadas por intelectuais. Isso, porque a categoria “intelectual” acabou ficando muito ligada àqueles sujeitos identificados como criadores ou produtores de conhecimento científico, artístico etc, que estariam fazendo algo considerado “original”.  Por isso, são chamados de autores, inventores, pesquisadores, pensadores, e reconhecidos como “grandes homens” (as mulheres são muito raras) em suas áreas e momento de atuação. Esse tipo de trabalho intelectual é fundamental e decisivo no mundo cultural e não estamos querendo minimizá-lo de forma alguma. Mas, esse é o ponto: tão importante quanto produzir conhecimentos é divulgar esses conhecimentos e saberes para um amplo público. Produção e divulgação não são e nunca foram processos estanques. Um está ligado e não existe sem o outro; um alimenta o outro. A gente só produz conhecimentos e inovações – na física, na literatura, na pintura, seja lá no que for –  com o objetivo de que tudo isso possa alcançar e circular entre públicos com tamanhos e perfis os mais diversos, e das formas mais variadas.

Não há uma separação rígida entre as atividades intelectuais de produção e divulgação de conhecimentos, embora possa haver uma especialização. Ou seja, dando um exemplo, um médico ou um historiador podem se dedicar tanto a fazer pesquisas científicas, quanto a falar na televisão para um grande público. Mas também pode haver um intelectual que se volte especificamente à mediação cultural, dedicando-se a editar uma revista ou um “programa” nas mídias sociais.

Existem práticas culturais, específicas e complexas, que são próprias às atividades dos “intelectuais mediadores”, como é o caso da edição (de livros, revistas, coleções); da tradução; da crítica (literária, artística), entre muitas outras. São essas práticas, sempre conectadas a projetos politico-culturais, que fazem com que um intelectual seja um intelectual mediador. Contudo, durante muito tempo, esse tipo de ação cultural foi muito desvalorizada no mundo intelectual e na sociedade em geral, como se o trabalho de mediação/divulgação fosse uma coisa “menor”. Ora, isso fazia com que os intelectuais a eles dedicados também fossem identificados como “menores”. Havia uma clara hierarquia pela qual os intelectuais mediadores não eram vistos como “verdadeiros” intelectuais. O que eles faziam seria algo “fácil”, uma mera “simplificação” que “rebaixava” o conhecimento. 

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Bruno Leal e Angela de Castro Gomes, Universidade de Brasília. Foto: Ana Paula Tavares.

Um dos grandes objetivos do livro e de minhas pesquisas, atualmente, é demonstrar   que essas práticas de mediação cultural exigem muito dos intelectuais, pois elas nada têm de fáceis. O intelectual mediador não é um repetidor, um transmissor eletrônico, uma linha de condução. Muito ao contrário, a mediação envolve processos complexos de criação cultural, logo, é também um trabalho que “cria” algo específico e original. E faz isso, inclusive, por estar dirigida a um público amplo, que não é o dos pares. As práticas culturais de mediação realizadas por esses intelectuais devem se orientar pelos mesmos critérios de cientificidade e ética vigentes para a produção acadêmica. O público muda, mas a seriedade do trabalho intelectual não.

O que precisa ser entendido é que não há produção de conhecimento sem sua divulgação. Não há atividade intelectual de mediação que não envolva a criação, a invenção de algo “original”. Fazer uma coisa simples é muito difícil. É um muito complexo ser simples.

Nós queríamos voltar à questão específica da diferença entre mediador cultural e intelectual-mediador. Algumas pessoas na museologia, por exemplo, consideram o curador como um mediador cultural, mas eu percebi um pouco pelo livro de vocês que esse lugar também pode ser o de um intelectual. Será que essa classificação depende da função que a pessoa tá exercendo naquele momento? Ou será que depende do perfil dessa pessoa, isso é, do conhecimento que ela traz?

Eu penso que as categorias de mediador e de intelectual têm fronteiras fluidas; são de difícil definição. Assim, a categoria de intelectual mediador também não é nada fácil. Há muitos mediadores em uma sociedade. Justo por isso, a categoria de intelectual mediador precisa sofrer controles, senão perde o sentido. Por outro lado, não se pode mais pensar o intelectual como se fazia no século XIX.

O intelectual mediador refere-se apenas à função que ele está exercendo ou há um perfil? Sem dúvida, a prática cultural exercida pelo intelectual é decisiva. Mas ela não pode ser vista isoladamente, pois, nem todos os curadores devem ser entendidos como intelectuais mediadores. Isso vai depender também do perfil dessa pessoa, de sua proposta ou projeto, que está articulada às questões de um grupo ou rede, em determinado momento e lugar. O que a categoria permite entender, é que há uma série de ações (e posições), muitas vezes não consideradas, que são realizadas por intelectuais que, assim, atuam como mediadores. Além disso, essa função não precisa ser ocupada por uma única pessoa – às vezes a curadoria pode ser o trabalho de um coletivo. O que quero destacar é como essa categoria permite uma ampliação da ideia do que é um intelectual. Não só no sentido quantitativo, que também existe, mas principalmente no qualitativo, já que várias práticas culturais pouco valorizadas ganham uma importância até então não reconhecida.

 A gente pode usar outro exemplo, como o dos professores. Todos os professores, de todos os níveis, em todos os países, são mediadores, uma vez que o trabalho docente é um trabalho de mediação cultural. Porém, nem todos os professores são intelectuais mediadores. Não teria o menor sentido utilizar a categoria nesses termos, que seriam tão amplos que a diluiriam. Mas podemos encontrar professores que são intelectuais mediadores. Como a gente vai reconhecê-los? Bem, a gente vai reconhecer através da pesquisa, do estudo de caso. Se você pesquisa o tema e não afasta a possibilidade de encontrar um professor que seja um intelectual mediador, você pode se deparar com um. Ou então você pode partir da hipótese de que aquele professor X é um intelectual mediador. E vai testar se ele esteve ligado a um tipo de proposta, se desenvolveu um trabalho que teve ressonância na escola, na comunidade etc.

No livro que eu a Patrícia organizamos, um dos autores é o professor português Joaquim Pintassilgo. Ele trabalha com o caso de um professor de ensino primário que escreveu manuais didáticos e organizou uma biblioteca, que foram fundamentais para a formação de muitos professores. Era adepto das concepções da “escola nova” e era também um adepto de Oliveira Salazar. Sua leitura conservadora e católica dos princípios da “escola nova” teve impactos no meio educacional e cultural de Portugal nos anos 1940/50. Esse professor é um intelectual mediador da maior importância, mesmo sem ter escrito um “grande” livro ou estar em academias que avalizam o “prestígio” dos intelectuais.

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Ana Paula e Angela de Castro Gomes, Universidade de Brasília. Foto: Bruno Leal.

Eu reconheço que, em muitos casos, pode ser difícil estabelecer quem é intelectual mediador. Não há uma bula, um conjunto de características fixas ou rígidas, que a gente preenche e diz: “encontrei um intelectual mediador!” Na pesquisa, você pode identificar algumas características e algumas delas podem ser mais decisivas que outras. No campo da música, por exemplo, a gente pode sair de um circuito de grandes compositores homens, geralmente da música erudita. Compositores/ras e músicos populares podem ser intelectuais mediadores. Músicos que tem origem popular e não se enquadram nessa imagem idealizada do intelectual “culto”. Mulheres, no século XIX, que se apresentam, tocam e publicam suas composições musicais, também podem ser intelectuais e intelectuais mediadoras. Essa categoria é valiosíssima para dar visibilidade às mulheres, que eram (e ainda são) desconsideradas em sua produção intelectual.

Você e a Patrícia sugerem que não apenas a sociedade, mas o meio intelectual científico e acadêmico também costumam hierarquizar o processo de produção de bens culturais: o criador em geral é visto como alguém mais importante do que o mediador. Vocês indicam também que essa dicotomia é um problema, não só porque a gente tem que olhar para o lugar do mediador e entender a importância que ele tem em fazer as ideias circularem (e talvez isso seja importante para uma mudança social no longo prazo), mas também porque, muitas vezes, principalmente quando a gente olha para o passado, o criador também exerce papel de mediador. Na sua avaliação, porque existe um esforço tão grande de diferenciação entre uma categoria e outra?

Eu acho que essa divisão tem origem em uma forte tradição intelectual que remonta ao século XIX, na qual a figura do intelectual está muito ligada aos “grandes” nomes masculinos da ciência, literatura, produção artística e musical. E esse tipo de produção, durante muito tempo, foi explicado e interpretado como fruto de suas genialidades pessoais. O intelectual era um gênio, um herói individual, no panteão de grupos sociais e de nações. Porém, esse tipo de interpretação não é mais aceito pela história e ciências sociais. Tanto que a categoria intelectual passou a ser tratada em articulação com outras, entre as quais a de sociabilidade intelectual. Quer dizer, intelectual só existe em rede, o que dá força à dimensão coletiva do processo de produção e socialização dos conhecimentos, e reforça o vínculo, que não é mecânico, com projetos politico-culturais de um tempo e lugar. 

Mas, sem dúvida, a visão do intelectual como “gênio” colaborou muito para a invisibilidade de um grupo de homens e, principalmente, de mulheres, que poderiam estar exercendo funções de intelectuais mediadores. Assim, nem eram vistos, quanto mais reconhecidos e valorizados. O que podia ser agravado pelas condições de gênero e raça. Sabemos do racismo e do machismo da sociedade brasileira e das dificuldades de ela reconhecer intelectuais mulheres, negros/as. Essa invisibilidade também tem a ver com algo já mencionado: o fato de ter sido construída uma distinção entre o trabalho do intelectual “criador”, que é original e de “vanguarda”, e um outro tipo de trabalho, chamado de vulgarização e divulgação, que era visto como de “repetição”, ou pior, de repetição empobrecedora. Algo que não se sustenta, nem teoricamente, nem empiricamente, porque sabemos que no mundo da cultura não existe mera repetição. Os bens culturais circulam socialmente e vão sendo apropriados e transformados, ganhando sempre novos sentidos. Desta forma, o intelectual mediador é também um intelectual criador de diversos e importantes bens culturais, que tem características próprias, porque voltadas para um público que não é o dos pares.

No Brasil, nós da História tivemos muitas discussões com órgãos de financiamento de pesquisas e de avaliação de Programas de Pós-Graduação, no sentido de fazê-los compreender e aceitar que precisamos nos envolver cada vez mais com atividades de divulgação do conhecimento histórico voltado para o grande público. Precisamos nos comunicar, crescentemente, com esse grande e diferenciado público, como vocês vêm fazendo com o Café História. Eu cito o caso da História, mas penso que isso aconteceu com outras áreas. Para ser valorizado, esse tipo de trabalho, que é o dos intelectuais mediadores, precisa ser reconhecido pela própria academia. Talvez esse seja um ponto fundamental para afastarmos os maus produtos culturais, sejam eles produzidos por acadêmicos ou não. Afinal, são esses produtos que vão formar uma consciência histórica na sociedade. E, no caso da História, eles serão melhores quando seguirem os parâmetros da ciência da história do seu tempo. Nesse sentido, exatamente da mesma maneira que qualquer bem cultural voltado para o público acadêmico, embora com objetivos, estratégia e linguagem diferentes. A partir do momento que o reconhecimento desse tipo de produção existir dentro da academia e também entre as  instituições que financiam e  avaliam a academia, acredito que poderá crescer em número e qualidade, sempre obedecendo a uma ética da responsabilidade.

Quando o historiador é um intelectual mediador, as questões éticas e os demais parâmetros que vão assegurar a qualidade da produção cultural ficam muito claros. Mas quando nós estamos falando de outros intelectuais mediadores, que não são do meio acadêmico, talvez a coisa fique um pouco mais obscura. Um tradutor, por exemplo, não necessariamente é um professor universitário, e nem um pesquisador no sentido acadêmico do termo. Qual é a diferença, então, entre um e outro? Quais podem ser os parâmetros de qualidade a serem seguidos por um tradutor?

Vou usar o seu exemplo. O tradutor é muitas vezes alguém que é formado pela academia; ser tradutor é muito difícil. A pessoa tem que ter domínio de, pelo menos, duas línguas, além de outro código cultural. É um trabalho extremamente difícil, que deixa evidente a força criativa de uma prática cultural paradigmática para se pensar o intelectual mediador. Esse tradutor pode ser alguém que não tem uma formação acadêmica, mas precisa igualmente seguir as regras e a ética do ofício de tradutor, precisa conhecer muito bem o autor/a que está traduzindo, sua obra e a literatura de sua época. O ponto a fixar é que não ter formação acadêmica não impede alguém de ser intelectual mediador e de ser intelectual, dependendo da prática cultural que está desenvolvendo.

Traduzir, fazer uma exposição, produzir um livro escolar ou um livro de divulgação, escrever um romance histórico, tudo isso envolve regras que são conhecidas e compartilhadas em determinado lugar e momento. O mercado tem certamente um grande peso no caso dos bens culturais voltados para um grande e diversificado público. Mas o mercado não deve ter e creio que não tem, ao menos em médio e longo prazo, o poder de “fazer” um intelectual mediador. O mercado é importante, claro – vender e atrair público é parte da lógica da mediação – mas a seriedade, competência e o respeito compartilhados no interior de certa prática cultural de mediação também são decisivos. Assim, a categoria intelectual mediador deseja “abrir” a categoria intelectual, e valorar práticas culturais, que associadas a propostas políticas em sentido largo, são fundamentais em qualquer sociedade.

Você falava sobre comunidades, de pessoas que se tornam “líderes”… eu vou usar a palavra líder, mas não sei se ela é a mais correta, pois, não se trata do líder de uma organização, mas sim de projetos, propostas que são articuladas por alguém que surge como um grande guardião da memória. Essas pessoas seriam mediadoras culturais ou também podem ser intelectuais mediadoras?

Sim, em muitos casos acho que essas pessoas podem ser intelectuais mediadores.  É bom frisar que essa categoria se aplica à produção de bens culturais. Ela não se refere, é bom frisar, ao mundo da política. Nesse caso, estamos falando de pessoas “comuns” que se expressando culturalmente – pela música, grafite, dança, poesia, museu ou centro de memória etc. – conseguem atingir um públicos numerosos e diferenciados. Quer dizer, na verdade, são pessoas nada comuns, apenas não se encaixam no figurino intelectual mais compartilhado. Não é raro que pessoas assim assumam posições/funções dentro de seu grupo/comunidade, sejam reconhecidas e, em certos casos, tenham mais idade. Existe um tempo de aprendizado que vem com a experiência da vida, que não vem só daquela pessoa, individualmente. Aquela pessoa expressa algo que vem de antes, vem dos antepassados do grupo e deve ser transmitido e perdurar.

Mas jovens podem igualmente ser intelectuais mediadores. Quando, por exemplo, são músicos de ritmos como o Hip Hop e outros, eles podem se beneficiar de sua imagem, desenvolvendo projetos sociais e culturais, com poder de atrair crianças e jovens. Eu tive alunos que fizeram um trabalho de curso com o MC Marechal, tratando-o como um intelectual mediador.    

Às vezes os alunos me perguntam: “como é que a gente vai saber?” Eu sempre respondo: vão ter que pesquisar na documentação, no trabalho de campo. Mas eu reconheço que trabalhar com a categoria não é fácil.

É preciso estudar o caso.

Exato, a gente tem que fazer um esforço de compreensão para ir caminhando. Mas eu estou convencida que vale a pena. Essa categoria pode ser muito útil para a pesquisa histórica, porque desmitifica e atualiza a figura do intelectual, dando-lhe extremo valor.    

Como citar esta entrevista

GOMES, Angela de Castro. O lugar dos “Intelectuais mediadores”: entrevista com a Angela de Castro Gomes. Entrevistadores: Bruno Leal Pastor de Carvalho e Ana Paula Tavares Teixeira. In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/intelectuais-mediadores-entrevista-angela-de-castro-gomes/. Publicado em: 31 ago. 2020. ISSN: 2674-5917.

Bruno Leal

Fundador e editor do Café História. É professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em História Social. Tem pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisa História Pública, História Digital e Divulgação Científica. Também desenvolve pesquisas sobre crimes nazistas e justiça no pós-guerra.

6 Comments Deixe um comentário

  1. Eu acho que a renomada historiadora parece que está reconhecendo um fato que se espera hoje e amanhã do novo intelectual para além da academia e para além da sua necessidade estritamente acadêmica e profissional sem falar do inelectual alienado do ponto de vista social como mostrado caricaturalmente pelo carnavalesco Joaozinho Trinta mas sobretudo como um ilelectual responsavel consigo pelo.que produz e divulga e de sua crescente utilidade tradutora, e mediadora de debates e demandas politico sociais do momento dificil em que vivemos.

  2. Tenho refletido sobre este tema e especialmente sobre os mediadores do conhecimento academico nas ciencias humanas que “medeiam” nas redes sociais tipo facebook conflitos entre tais redes entendidas como veiculadoras de produtos “fechados” para o consumo direto e as produções academicas necessariamente abertas à critica dos pares. Na área de história o E.Bueno ou Peninha é um exemplo claro disso

  3. Se a cultura ocidental acadêmica relegou muito tempo a figura do mediador como secundário no circuito da informação/conhecimento, imagine a categoria gramsciana de intelectual orgânico. Gostaria que a profa. Angela de Castro Gomes comentasse a respeito desse conceito. grata!

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