A atribuição de instrumentos musicais como próprios ou não às mulheres reflete ao longo da história o contexto social das práticas musicais e a visão dominante masculina da posição da mulher na educação, no mercado profissional, como é visto o corpo feminino e mesmo a autorização de sentimentos e afetos considerados adequados.
Os critérios para essa atribuição passaram por vetos a uma postura física tida como provocativa à imaginação masculina, a repertório que expressasse emoções supostamente em desacordo com os sentimentos femininos, a instrumentos de timbres considerados masculinos (sobretudo os graves) ou a uma técnica que “deformasse” a expressão facial. O compositor alemão Gustave Kerker, por exemplo, afirmou que mulheres não poderiam tocar instrumentos da família dos metais (trombone, tuba etc.) e parecerem bonitas. Essa preocupação com a expressão facial estimulou que muitas mulheres escolhessem o canto, no lugar de um instrumento.
Desde a primeira metade do século XX diversas pesquisas têm analisado esses estereótipos, principalmente na música europeia a partir do século XVIII. Algumas ampliam o espectro de análise, incluindo tradições mais antigas da Ásia, África, Oceania e Américas, contextos específicos (como escolas de samba ou instituições de ensino) ou se debruçam sobre algum instrumento em particular.
Critérios que mudam
Historicamente, a prática instrumental feminina se limitou a contextos específicos como o cotidiano da casa, a preparação para o matrimônio, rituais religiosos ou a vida na corte. Evitando instrumentos associados a caça e atividades militares (como percussão e cornetas) que remetiam a uma vida social em espaços públicos, priorizando a delicadeza de movimentos e uma posição de submissão (que se refletia na escolha de repertório menos expressivo e de menos protagonismo em grupos musicais), o estereótipo de gênero dos instrumentos musicais ajudou a manter a mulher no espaço doméstico.
Por essas associações, instrumentos de percussão carregam o estereótipo de “masculinos”. Mas isso nem sempre foi assim. Famoso por seus salmos, o Rei Davi era conhecido pela sua habilidade com instrumento de cordas1 e sua vitória sobre o gigante Golias foi comemorada pelas mulheres de Israel cantando, dançando e tocando pandeiros. Muito antes de Davi, Miriam (irmã de Moisés e Aarão) profetizava com um instrumento de percussão nas mãos.
O violino e a flauta, ainda hoje entre os mais procurados pelas mulheres, já foram considerados inapropriados pelos movimentos de braços e seios que poderiam chamar a atenção indevidamente.
O bandolim da princesa e o violão da primeira-dama
O bandolim é um instrumento de cordas tradicionalmente associado às mulheres. De formato delicado, pode ser segurado no colo como uma criança, mantendo pernas cruzadas e cobertas. Os dedos se movimentam num espaço pequeno, sem provocação erótica e produzindo uma sonoridade graciosa.
No retrato da Princesa Maria Josefina de Saboia, pintado por Jean-Baptiste André Gautier-Dagoty em 1777, os símbolos de nobreza e submissão feminina são claros. A princesa aponta para um busto de seu marido e atrás há um retrato de seu pai e a linha da altura das cabeças dos três personagens explicita as relações hierárquicas, posicionando a mulher abaixo do marido e do pai. A riqueza do ambiente e dos trajes deixa clara sua posição social. O acesso à cultura é indicado pelos livros e pelo bandolim, instrumento apropriado para uma nobre francesa do século XVIII.
O bandolim ganhou força no início do século XX, quando mulheres educadas de classe média buscavam contornar os tradicionais papéis restritivos de gênero sem deixar de parecer “respeitáveis”. Os grupos de bandolim e violão eram uma opção para atuar em concertos públicos, isto é, fora de casa. Eram uma alternativa às orquestras de cordas tradicionais, onde o baixo e o violoncelo não eram considerados próprios para as mulheres, que precisariam abrir as pernas para acomodar os instrumentos ao tocar.
No Brasil, a imprensa exaltava os grupos de senhoritas bandolinistas com expressões como “encantador quadro formado pelas senhoras”, “colmeia de flores vivas e inquietas” ou “florida corbeille de perfumadas flores, aquele conjunto de mimosas criaturas”. Já o violão era visto com desconfiança, ligado a gêneros de música popular e espaços menos nobres da vida social. Por isso, era comum nesse período que os grupos mistos tivessem homens nos violões e mulheres nos bandolins.
Princesa Maria Josefina de Saboia por Jean-Baptiste André Gautier-Dagoty.
Fonte: Wikipedia.
Um evento que revela essa tensão é o famoso sarau promovido em 1914 pela primeira-dama do país, Nair de Teffé, no Palácio do Catete. Considerada a primeira mulher cartunista do mundo, a esposa do Marechal Hermes da Fonseca era conhecida por suas ideias avançadas e a inclusão no programa do maxixe Corta-Jaca de Chiquinha Gonzaga, executado pela própria anfitriã ao violão, causou escândalo e foi objeto até mesmo de um discurso revoltado de Rui Barbosa no Senado Federal.
Nesse mesmo sarau, a primeira-dama tocou ao bandolim duas peças de música europeia, acompanhada pelo violão de seu professor Ernani de Figueiredo. Podemos perceber que o bandolim era um instrumento bem aceito nos salões, conveniente a uma senhora da sociedade, ao contrário do violão e do maxixe, gênero censurado abertamente pela imprensa e intelectualidade da época.
O lugar da música
A presença das mulheres no bandolim diminuiu sensivelmente no Brasil com a aproximação entre instrumento e a música popular a partir da década de 1920. A migração do ambiente doméstico e dos salões da sociedade para o ambiente externo das ruas e a função de solista, muitas vezes com exigências virtuosísticas, em frente a um grupo de diversos instrumentos tiram o bandolim do rol de instrumentos adequados às mulheres.
Essa restrição reflete considerações do século XVIII como do artigo Vom Kostüm des Frauenzimmer Spielens, publicado no Musikalischer und Künstler-Almanach de 1783 de forma anônima, mas atribuído ao pastor e compositor Carl Ludwig Junker. O autor recomenda para mulheres instrumentos de som delicado (como teclado, alaúde e harpa) que exerçam função de acompanhamento. Essa divisão entre homens solistas e mulheres acompanhadoras reforçava o papel de subserviência feminina esperado pela sociedade.
Em maio de 2022, em participação no Seminário Mais Mulheres na Política, a ministra do Supremo Tribunal Federal Cármen Lúcia Antunes Rocha (1954) comentou a menor presença de mulheres em relação aos homens em diversas áreas de atuação e contou que em sua casa os meninos aprenderam violão e as meninas piano. “É que o piano você toca em casa, não vai ter a tentação de colocar o violão embaixo do braço e ir pra rua”.
O resultado de toda essa história de distinções e censura é que ainda hoje a presença das mulheres é limitada em certos lugares da música, sub-representadas no espaço profissional e acadêmico. Alguns gêneros musicais são tradicionalmente mais machistas que outros e mesmo incluindo as mulheres vão tentar enquadrá-las em papéis específicos. Cantora de rock, sim, mas guitarrista não. Flautista, sim, mas arranjadora não. Professora de crianças, sim, mas chefe de departamento não. Estrela da ópera, sim, mas compositora relevante não. Felizmente, os casos de sucesso em quebrar os estereótipos são muitos, cada vez mais frequentes e luminosos.
Referências
DESIATA, Annalisa. Le Muse del Mandolino: Um Viaggio tra musica e pittura dal XVII ao XXI secolo. Bréscia: Aldebaran Editions, 2022
KOSFOKK, Ellen. When Women Play: The Relationship between Musical Instruments and Gender Style. Canadian University Music Review, Canadá, volume 16, número 1, p. 114 -127, 1995.
KRILLE, Annemarie. Beiträge zur Geschichte der Musikerziehung und Musikübung der deutschen Frau (von 1750 bis 1820). Berlim: Triltsch & Huther, 1938.
SIPOS, Cecilia. Frauen als Instrumentalistinnen im 18. Jahrhundert. Dissertação (Mestrado em Música) -Anton Bruckner Privatuniversität, Viena, 2016.
SPARKS, Paul. Clara Ross, Mabel Downing and ladies’ guitar and mandolin bands in late Victorian Britain. Early Music. Oxford press: 2013.
STEBLIN, Rita. The Gender Stereotyping of Musical Instruments in the Western Tradition. Canadian University Music Review, Canadá, volume 16, número 1, p. 128 -144, 1995.
Fontes e outras referências
Jornal “A Rua”
Jornal “O Paiz”
Revista “A Faceira”
Sítio eletrônico do Tribunal Superior Eleitoral
Notas
[1] Diferentes traduções da Bíblia registram que Davi tocava “harpa”, “cítara”, “saltério” ou até mesmo “alaúde”. Esses nomes são usados de maneira imprecisa, para designar algum instrumento da família das cordas. Da mesma forma, “pandeiro”, “adufe”, “tamboril” e “tamborim” indicam instrumentos de percussão leve.
Como citar este artigo
DUARTE, Fernando. O que a história social da música tem a nos dizer sobre a relação entre instrumentos musicais e gênero? (Artigo). In: Café História. Publicado em 19 jun. de 2024. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/instrumentos-musicais-e-genero/. ISSN: 2674-5917.