É comum encontrar entre quem coleciona antiguidades da Segunda Guerra Mundial, pequenos cartões de falecimento de soldados alemães mortos durante o conflito. Impressos em língua alemã, eles mesclam linguagens escrita e visual, símbolos militares e religiosos. Em alemão, esses cartões são chamados Sterbebilder, “imagens da morte”, em uma tradução literal para o português. No Brasil, eles são conhecidos como recordatórios e são comuns no catolicismo.
Os recordatórios, especialmente, de militares alemães mortos durante a Segunda Guerra Mundial (ou após o término do conflito na condição de prisioneiros em campos soviéticos), são itens colecionáveis populares e ricas fontes históricas para estudiosos das artes gráficas e das histórias militar e das religiões. Na Alemanha, é comum seu uso em trabalhos de genealogia, já que, entre orações e imagens votivas, são registrados dados biográficos do morto.
Apoio à alma
Os recordatórios surgiram na Europa, no começo da Idade Moderna. Eles estão relacionados com o desenvolvimento das artes gráficas decorrentes da invenção da imprensa de tipos móveis pelo ourives Johannes Gutenberg, em Mainz, na Alemanha, em meados do século XV. Os primeiros “cartões de oração”, como também são conhecidos, foram impressos nos Países Baixos, no século XVII. Na época, Amsterdã já era um importante centro europeu de artes gráficas.
Inicialmente, os recordatórios foram conhecidos como Bidprendtjes, algo como “cartões de oração”. Mas ao longo do tempo, eles receberam denominações diferentes: Totenzettel, Trauerzettel, Trauerbilder, Sterbezettel, Totenbilder, Partenzettel e, finalmente, Sterbebilder, comum na Alemanha até hoje. No Brasil, é comum ouvir “cartão de falecimento” ou “santinho”.
Para o Catolicismo, os recordatórios são objetos importantes, pois representam um meio de recordar uma pessoa falecida há muito tempo. Para muitos católicos, os recordatórios são uma forma de apoio à alma dos mortos através dos vivos, pois, quando recebidos, os recordatórios devem ser guardados dentro dos livros de oração. Quando abertos para as preces domésticas, os recordatórios guardados lembram as pessoas de orarem pelas almas dos falecidos, contribuindo para a expiação dos pecados, a passagem pelo Purgatório e a salvação da alma.
A impressão e a distribuição de recordatórios ocorrem durante os rituais fúnebres, a exemplo das Exéquias ou são enviados pelos correios pelas famílias enlutadas em resposta às cartas e aos telegramas de condolências. Eles também podem ser distribuídos como lembranças durante as Missas de Sétimo Dia ou mesmo em novenas.
Os recordatórios e a morte em combate
O costume de imprimir recordatórios chegou à Alemanha na primeira metade do século XIX. Ele foi adotado especialmente nas regiões católicas, a exemplo da Baviera. Com o desenvolvimento da fotografia e das técnicas de impressão de imagens visuais, a exemplo da litografia, os recordatórios se tornaram cada vez mais sofisticados. Porém, via de regra, eles seguiam um conjunto de modelos que era oferecido aos clientes pelos impressores. Na medida que as obras de arte passaram a circular através das técnicas de impressão, surgiram empresas que detinham os direitos de suas imagens e forneciam, mediante pagamento, aos impressores.
Na Alemanha, a Primeira Guerra Mundial impulsionou o comércio de recordatórios decorados com rica iconografia. E não era para menos: o país teve um grande número de mortos, cerca de 2 milhões de soldados, número muito superior ao de alemães mortos em outras guerras.
A imagem a seguir (figura 2), representa a frente do recordatório de Josef Hartl, que serviu pela Alemanha na Primeira Guerra como Cabo no 6º Regimento de Artilharia Bávara. Conforme informa o cartão, ele era natural de Dorsten, oeste da Alemanha, onde hoje está localizada a Renânia do Norte-Vestfália. Seu retrato ocupa uma das faces do recordatório. Ele veste uma túnica de campanha bem alinhada e com destaque para a barreta da Cruz de Ferro de 2ª Classe que recebeu por distinção em combate. Sobre as duas faces que formam o verso do recordatório, imagens devocionais relacionadas à morte: Cristo que jaz morto na Cruz; Cristo que vai ao encontro de um soldado, que, após ser ferido mortalmente, encontra-se nos estertores.O recordatório do Cabo Hartl serve de exemplo para um padrão que foi reproduzido pelos recordatórios impressos durante a Segunda Guerra Mundial: retratos dos mortos, preferencialmente, vestindo uniformes; imagens de Cristo, de Nossa Senhora ou de temas devocionais; símbolos ligados à morte em combate.
A próxima figura mostra o verso do recordatório do Cabo Hans Neumaier, natural de Vilsbiburg, Baviera. Ele serviu em um Regimento de Caçadores de Montanha, durante a Segunda Guerra Mundial, sendo veterano das campanhas da Áustria, Tchecoslováquia, Polônia, Bélgica, França, Grécia, Creta e União Soviética. Portador da Cruz de Ferro de 2ª Classe e do Distintivo de Assalto de Infantaria, ele morreu em 17 de setembro de 1942, nas proximidades do lago Lagoda, no noroeste da Rússia.O recordatório do Cabo Neumaier é duplo, sendo seu verso ilustrado com duas imagens em que aparecem covas rasas de soldados tipo “cruz de bétula”. Bétula é o nome de uma árvore de pequeno ou médio porte, típica das zonas temperadas do Hemisfério Norte. Sua casca é branca-prateada, sendo sua madeira, cortada de forma rústica e sem ser descascada, usada na confecção de cruzes para sepultamentos provisórios de soldados mortos. Os capacetes de aço indicam que ali se encontram os remanescentes humanos de um combatente falecido. Trata-se de um clichê em outros recordatórios, que o impressor substitui somente o nome e as datas de nascimento e morte do militar morto, cuja família encomendou a impressão de um lote de recordatórios.
Contudo, mais que um clichê fornecido aos impressores pela empresa HCoM, trata-se de uma representação que, além de fazer parte da cultura visual da época, expressava uma forma real de destino aos mortos em combate, pelo menos, das forças armadas da Alemanha, durante a Segunda Guerra Mundial
Patrimônio documental
Os recordatórios têm uma natureza religiosa, sendo o resultado do desenvolvimento das artes gráficas ao longo do tempo. A partir da Primeira Guerra Mundial, a preocupação com a morte em combate por parte dos seus sujeitos ganhou força e se tornou uma preocupação individual, familiar e pública. Sua impressão e a distribuição passaram a envolver o imaginário militar e a contemplar os mortos em combate. Com o surgimento da Nova História Militar, os recordatórios se tornaram uma fonte para responder novas indagações dos historiadores.
Os recordatórios não são apenas itens colecionáveis das guerras mundiais. O Sagrado é um componente importante da vida social, mesmo em uma sociedade secularizada. A preocupação com os mortos é, possivelmente, um dos aspectos mais importantes do catolicismo. Os recordatórios, deste modp, são fontes que podem elucidar os elementos simbólicos e religiosos da morte no universo católico.
Além disso, no presente, a morte parece ser algo distante com o qual não desejamos ter muito contato. Em uma sociedade marcada pelo culto à beleza e à juventude, a morte e seus rituais são indesejados, apesar de fazerem parte do ciclo da vida. Os recordatórios podem ser meios para examinarmos as permanências e as rupturas com o passado no que se refere à morte e à forma com a qual recordamos nossos mortos, sejam eles em tempos de paz ou de guerras.
Referências Bibliográficas
KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2014.
LE GOFF, Jacques. História e memória. 4. ed. Campinas: Unicamp, 1996 (Coleção Repertórios).
PIOVEZAN Adriane. Morrer na guerra: a sociedade diante da morte em combate. Curitiba: Editora CRV, 2017.
Como citar este artigo
NETO, Wilson de Oliveira. Imagens da morte: as funções dos recordatórios alemães nas duas guerras mundiais. In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/recordatorios-alemaes-nas-das-guerras-mundiais/ ISSN: 2674-5917. Publicado em: 18 Abr. 2022.
Foto principal: recordatórios de soldados mortos na Segunda Guerra Mundial, Foto: Alexander Historical Auctions, que comercializa recordatórios antigos.