Caroline Winterer, Professora de História e Diretora do Centro de Humanidades de Stanford, EUA, chegou recentemente a uma conclusão surpreendente: o chamado “Iluminismo Norte-Americano” é uma narrativa fabricada nos anos da Guerra Fria. Os Estados Unidos, segundo essa narrativa, são o bastião da “civilização democrática”, decididos e imparáveis, definidos por uma ruptura revolucionária com a monarquia hereditária e pelo virtuosismo republicano. Para os pensadores da Guerra Fria, a herança americana da “civilização democrática” seria sua proteção contra o totalitarismo.
O novo livro de Winterer, American Enlightenments: Pursuing Happiness in the Age of Reason (Yale University Press), rejeita essa narrativa típica da Guerra Fria. Nele, a historiadora defende que devemos pensar em “iluminismos” norte-americanos ao invés de “o Iluminismo”.
“Houve muitos iluminismos na América, não somente um ‘Iluminismo’ único e patriótico com a Revolução Americana e a Constituição como centro”, disse Winterer. Percebendo que “nunca encontraria essa mítica era dourada chamada ‘Iluminismo Norte-Americano’”, ela, ao invés disso, começou a investigar como aqueles primeiros americanos entendiam o que era ser esclarecido.
A pesquisadora descobriu diferentes grupos discutindo sobre diversas questões – não necessariamente sobre a Revolução, mas sempre sobre um processo interminável que eles chamavam de “esclarecimento”. Quando falavam em esclarecimento, as pessoas do século XVIII geralmente queriam se referir ao uso da razão (em oposição à revelação bíblica ou à opinião pública) para fazer do mundo um lugar melhor. Abrangendo temas que vão desde fósseis a gráficos no formato “pizza”, da inteligência militar à mão de obra escrava nas plantações, Winterer vê a grande narrativa do esclarecimento nos EUA como uma série de pequenas conversas sobre o que significava ser esclarecido.
“As pessoas no século XVIII não falaram sobre um único Iluminismo”, disse Winterer, acrescentando que “elas tinham várias definições para isso e falavam sobre a maneira como elas iriam se tornar esclarecidas fazendo x, y ou z”. A noção de um único e grande Iluminismo Norte-Americano – aquele que assumiu a transmissão unidirecional de ideais revolucionários da Europa – retrata os pais fundadores como inabaláveis e seguros. Para Winterer, nada disso é exato.
“A narrativa da Guerra Fria ‘do’ Iluminismo Norte-Americano é aquela em que os pais fundadores sabiam o destino correto e como alcançá-lo; eles o encontraram, eles o construíram, e nunca questionaram nada”, disse Winterer. Esta versão dos pais fundadores foi difundida pela historiadora Adrienne Koch, em seu livro The American Enlightenment: The Shaping of the American Experiment and a Free Society (1965), e foi tomada por sociólogos, filósofos e políticos para explicar fenômenos tão diversos quanto as instituições religiosas, o movimento dos direitos civis e a excepcionalidade americana.
A pesquisa de Winterer conta outra história. Ela afirma que os pais fundadores não estavam completamente certos de que a Revolução os aproximaria do esclarecimento. Havia questões como: se a monarquia patrocinava com êxito atividades intelectuais e culturais, poderia igualmente uma república sem Rei promover o esclarecimento para o povo? Como poderiam os americanos avaliar se seus novos governos republicanos eram mais ou menos esclarecidos do que as monarquias europeias?
Questionando o modelo “difusionista”
Como historiadora que traça a evolução das ideias, Winterer gosta de mergulhar no que ela chama de “a última grande era dos polímatas” – uma época em que as pessoas imaginavam que era possível conhecer tudo no mundo. Quando você estuda pessoas que estão tentando saber tudo, por onde começar? Winterer começou por colocar uma simples pergunta: “Quando se quer se tornar esclarecido, a que temas está se referindo?”
Sua pesquisa a levou a examinar uma grande variedade de assuntos, incluindo técnicas de cultivo, mastodontes, civilizações astecas, fósseis de conchas do mar, esforços para contar os nativos americanos e a primeira oposição intelectual consistente à escravidão. Cada assunto desenterrou um grande debate sobre o que significava “esclarecimento” e uma nova compreensão dos tipos de questões levantadas no sentido de buscar o esclarecimento.
As observações feitas por exploradores e colonizadores nas Américas deram origem a uma série de teorias sobre statecraft e a evolução das sociedades humanas. As novas descobertas também colocaram a opinião pública sob a lente de um microscópio. O desenrolar dos acontecimentos nas Américas desencadeou um debate sobre a ética da escravidão, sobre a veracidade da Bíblia e sobre a suposta supremacia da civilização europeia.
Entre as muitas conexões surpreendentes que Winterer encontrou estão as ligações diretas entre a denúncia da escravidão do filósofo francês Montesquieu em De l’esprit des loix (1748) e as plantações de açúcar das Índias Ocidentais, bem como entre a intrigante descoberta de fósseis marinhos nas Montanhas Apalaches, nos EUA, e o questionamento sobre a veracidade das representações bíblicas do Grande Dilúvio.
Tudo isso levou Winterer a questionar o que ela chama de modelo “difusionista”, que sustenta a maior parte das histórias do Iluminismo: “A história de que o Iluminismo aconteceu na Europa, surgiu da mente dos filósofos, depois veio de barco para a América e inspirou os revolucionários.”
Para ela, este modelo ou ignora as principais contribuições intelectuais das Américas ou as trata como pensamentos posteriores, minimizando as contribuições daqueles que integravam a vida intelectual do Novo Mundo no século XVIII. Os navios que transportavam mercadorias de e para as Américas também traziam novas ideias e opiniões, mas Winterer destaca que é uma “conversa de mão dupla” de longo prazo através do Atlântico.
Antepassados hesitantes
Outro debate que acontecia no mesmo momento envolvia a natureza e o propósito da linguagem. Seguindo John Locke, James Madison não estava convencido de que as palavras continham um significado intrínseco. Na opinião de Madison, nada sobre a linguagem era dada por Deus: as palavras estavam sempre em movimento, seus significados eram decididos temporariamente até que as gerações futuras as ressignificassem. De acordo com Winterer, as crenças de Madison sobre a linguagem sugerem que, mesmo para seus autores, a Constituição era menos uma coleção de verdades autoevidentes do que um documento que ganhou sentido através da interpretação e do debate. Esse debate continua ainda hoje.
Perguntas constantes, debates em andamento, interpretações em evolução: tudo isso representa os antepassados dos Estados Unidos como pessoas incertas. Winterer, no entanto, pensa que a ideia de incerteza enriquece nossa compreensão da democracia hoje.
“A democracia exige que conversemos uns com os outros sobre o que pensamos que sabemos e também sobre o que não sabemos. Juntos tentamos criar uma verdade viável para o momento, sempre conscientes de que ela é contingente “, disse a pesquisadora.
Para Winterer, esta é uma lição melhor para se aprender com o Iluminismo Norte-Americano do que a narrativa da Guerra Fria de uma confiança ilimitada. “Temos uma tradição nacional de falar sobre os limites do que podemos saber. Devemos reconhecer e valorizar essa tradição “.
Fonte: Stanford News
Tradução de Bruno Leal e Ana Paula Tavares. Tradução autorizada ao Café História.
Nota dos tradutores: Statecraft não tem uma tradução exata para o português. Sonia Fleury fornece uma explicação para a complexidade do termo: “… statecraft é visto como a iniciação de políticas públicas pelos ‘agentes’ (em termos legais, agentes fiduciários) dotados de poder para agir em nome do Estado, elaborando e regularizando as relações fundamentais entre Estado e sociedade. Statecraft é o cerne do processo de formação e reformulação, ao longo do tempo, da associação civil conhecida como Estado, pelo desenvolvimento de relações entre membros da associação (cidadãos) e a autoridade central que integra a associação e provê os meios pelos quais alguns membros podem expandir o poder produzido pela associação.” (FLEURY, Sonia. Estado sem cidadãos: seguridade social na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1994, p. 130).