A chegada dos nazistas e de outros grupos de extrema-direita ao poder na década de 1930 provocou o recrudescimento do fenômeno do antissemitismo na Europa em níveis nunca antes vistos.1 Na Alemanha, o governo editou centenas de leis e decretos com o intuito de gradativamente restringir os direitos civis dos judeus e diferenciá-los socialmente do restante da população. Eles foram proibidos de frequentar escolas, universidades e locais públicos. Foram expurgados do serviço público e proibidos até de mesmo de casar ou de manter relações sexuais com “alemães arianos”.2 Parte dessa legislação antissemita foi aplicada também nos territórios dominados pela Alemanha.
Essas leis, somadas a uma violência física orquestrada por governos e grupos antissemitas, forçou uma enorme onda de emigração judaica. E até 1938 era exatamente isso o que desejavam os nazistas: que os judeus fossem para bem longe da Alemanha e da Europa. Calcula-se que entre 1933, ano em que Hitler chegou ao poder, e 1939, quando começou a Segunda Guerra Mundial, 366.000 judeus emigraram da Alemanha e dos territórios anexados, caso da Áustria. Alguns foram para a Palestina, enquanto outros buscaram a Argentina, os Estados Unidos e até mesmo a China.
Custos altos e portas fechadas
A primeira e a mais importante razão para tantos judeus não terem deixado a Europa durante os anos do nazismo é simples: eles não tinham os recursos financeiros para fazê-lo. Os custos de uma viagem internacional nos dias de hoje são elevados. Na década de 1930, esses custos eram ainda maiores. Poucas pessoas faziam viagens internacionais na época, sobretudo em família – e menos ainda numa condição de mudança, levando todos ou quase todos os seus pertences.
No caso dos judeus, a situação era ainda mais complicada. Um número imenso de judeus europeus era miserável. O caso da Polônia é exemplar. Muitos dos que já vivam em cidades grandes, como Varsóvia ou Cracóvia, habitavam bairros paupérrimos. Não tinham passaporte. A maioria não tinha viajado nem mesmo dentro da Europa. Os judeus que viviam nos Shtetl eram ainda mais pobres. Eram pessoas muito humildes, vivendo em um mundo que ainda estava longe de ser a Europa urbanizada e moderna dos grandes centros. Tinham, em geral, famílias numerosas e não possuíam contatos no exterior. Em resumo, os judeus poloneses pobres, não tinham nem recursos, nem referências, nem documentos ou cultura compatível com esse tipo de empreendimento.3 E aqui vale lembrar que, dos 6 milhões de judeus mortos no Holocausto, mais da metade era de origem polonesa.
Nações em todas as partes do mundo estabeleceram cotas e exigências burocráticas rigorosíssimas, com evidente intenção de dificultar – e muito – a entrada de pessoas de ascendência judaica em seus territórios. Isso aconteceu mesmo em países considerados abertos aos imigrantes na época, caso dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha. No Brasil, o governo federal chegou a criar circulares secretas que instruíam seus diplomatas no exterior a não darem vistos de judeus – embora essas leis nem sempre fossem cumpridas com rigor.4 Muitas vezes, os discursos nacionalistas de proteção das fronteiras escondiam posicionamentos antissemitas de instituições e líderes políticos. Não raro, havia uma calorosa disputa interna nestas nações entre discursos mais humanistas e de solidariedade versus discursos mais racistas e a defesa do “fechar as portas”.
Em 1938, a situação dos refugiados judeus era tão crítica, que os americanos, pressionados diante de uma verdadeira avalanche de pedidos de visto de entrada (muitos dos quais negados), promoveram uma conferência internacional na cidade de Evian, na França, chamada a “Conferência de Evian”, para tentar resolver a questão. O resultado foi um enorme fracasso. Com exceção da República Dominicana, nenhum dos 32 países representados no encontro aceitou aumentar de forma expressiva suas cotas para refugiados judeus da Alemanha e da Áustria. Muitos dos formuladores da política externa ao redor do mundo compartilhavam de imagens preconceituosas dos judeus ou estavam mesmo embebidos de puro antissemitismo.5
Em alguns casos, a situação beirava o absurdo: a família de ascendência judaica finalmente conseguia o visto de entrada em um dado país, além dos diversos documentos exigidos para sua aceitação, como exames médicos, certificado de bons antecedentes, declaração de bens etc. Nesse momento, se tornava possível solicitar, então, os vistos de saída e de trânsito para cada membro da família (os dois vistos eram também necessários), mas o tempo para tirar esses outros vistos era tão longo, que quando saíam, aquele visto de entrada no país de destino ou algum outro documento tinha a validade expirada, fazendo com que o processo voltasse ao início – um processo, como vimos, bastante caro e numa época em que os bens e propriedade dos judeus tinham sido confiscados. Esse era o caso, por exemplo, de judeus de várias nacionalidades que vivam na França ocupada e tentavam se deslocar para fora da Europa, saindo por países como Portugal e Espanha, as rotas “mais fáceis” nesse período.
Laços afetivos, capacidade individual e imprevisibilidade
Há muitas outras razões que explicam a permanência dos judeus na Alemanha e na Europa durante o nazismo. Uma delas é que emigrar nunca é uma tarefa fácil. Além de ser caro, emigrar significa deixar a terra natal, cortar um vínculo emocional ancestral, deixar para trás familiares, lar, trabalho, seu estilo de vida, bens, propriedades, sonhos. Emigrar é ter que se adaptar a uma cultura nova, a uma língua nova. É deixar tudo o que ama e conhece para adentrar no imprevisível e no desconhecido. Nem todos estavam preparados para uma mudança tão radical quanto esta.
A comunidade judaica europeia estava, com certeza, muito assustada com a violência e perseguição. Mas muitas pessoas ainda assim optaram por não sair do país porque acreditavam que aquela era apenas mais uma onda antissemita na Europa – que seria possível lidar com essa onda, que em breve seria superada, da mesma forma que seus pais, avós e bisavós também superaram no passado.6 Nos anos 1930, em plena Europa moderna e racional, era inconcebível imaginar que os judeus acabariam mortos aos milhões por uso de armas de assassinato em massa como as câmaras de gás. Além disso, é parte do espírito humano acreditar em sua própria capacidade de luta e de resistência em tempos sombrios. As pessoas criam mecanismos psicológicos que lhe dizem que “sim, é possível”. Aconteceu durante o nazismo e em várias outras situações-limite vivenciadas por comunidades étnicas no século XX, caso dos libaneses durante a guerra civil.7
Há que se considerar, também, o caso daqueles que, antes da guerra, conseguiram deixar a Alemanha e a Áustria rumo a países como França, Bélgica e Polônia. Não contavam que esses países, a partir de 1939, cairiam, um a um, em domínio nazista. Ou seja, muitos judeus conseguiram escapar da perseguição nazista no Reich, mas acabaram voltando ao domínio nazista em outros países derrotados durante a Segunda Guerra Mundial. Algo muito parecido aconteceu na América Latina durante os anos de ditaduras militares. Um perseguido podia deixar, por exemplo, o Brasil rumo ao Chile, sem saber que dali a pouco tempo este país também se tornaria uma ditadura militar.
Mundo em guerra
Quando a Segunda Guerra Mundial começou, a opção de emigrar se tornou ainda mais difícil. Muitos judeus já não tinham mais recursos e, com o mundo em guerra, os mares e territórios tinham se tornado extremamente perigosos, restritos, impedindo muitos de escaparem. No dia 23 de outubro de 1941, sublinha o historiador Michael Marrus, “Himmler enviou uma ordem fatal que percorreu a cadeia de comando nazista: a partir de então não seria permitida emigração judaica em nenhum ponto do território controlado pela Alemanha. No dia 29 de novembro foram enviados os convites para a Conferência Wannsee, planejada para coordenar as deportações em toda a Europa. A Solução Final estava pronta para ser colocada em prática”.8
Notas
1 Em linhas gerais, antissemitismo é o preconceito, hostilidade ou discriminação contra judeus.
2 Parte dessa legislação antissemita foi aplicada também em territórios dominados pela Alemanha.
3 WASSERSTEIN, Bernard. Na iminência do extermínio. São Paulo: Cultrix, 2014.
4 KOIFMAN, Fabio. Quixote nas trevas – o embaixador Souza Dantas e os refugiados do nazismo. Rio de Janeiro: Record, 2002.
5 SNYDER, Timothy. Terra negra: O Holocausto como história e advertência. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
6 Segundo Avraham Milgram e Robert Rozett, o senso de perigo dos judeus foi confundido pela oscilação do cumprimento da política antissemita – muitos acreditaram que o pior já tinha passado. In: MILGRAN, Avraham; ROZETT, Robert. O Holocausto – as perguntas mais frequentes. Jerusalém: Yad Vashem, 2012. p.26.
7 FRIEDMAN, Thomas L. From Beirut to Jerusalem. Macmillan, 1995.
8 “Solução Final” é o termo (eufemístico) usado pelos nazistas nos documentos e no cotidiano para se referir ao extermínio físico dos judeus como forma de resolver o “problema judaico na Europa”. MARRUS, Michael R. A assustadora história do holocausto. Ediouro, 2003. pp.-98-99.
Referências Bibliográfica
FRIEDMAN, Thomas L. From Beirut to Jerusalem. Macmillan, 1995.
MARRUS, Michael R. A Assustadora História do Holocausto. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
ROZETT, Robert. O Holocausto – as Perguntas Mais Frequentes. Jerusalém: Yad Vashem, 2012.
KOIFMAN, Fabio. Quixote nas Trevas – o Embaixador Souza Dantas e os Refugiados do Nazismo na França. Rio de Janeiro: Record, 2002.
SNYDER, Timothy. Terra negra: O Holocausto como história e advertência. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
WASSERSTEIN, Bernard. Na Iminência do Extermínio – A História dos Judeus da Europa antes da Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Cultrix, 2014.
Como citar este artigo
CARVALHO, Bruno Leal Pastor de Carvalho. Sem saída: entendendo a permanência de judeus na Europa nazista (Artigo) In: Café História. Publicado em 18 de fevereiro de 2019. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/por-que-tantos-judeus-nao-deixaram-a-eruopa-durante-o-nazismo