Ali Abbasi tem sua obra marcada por cenas e situações chocantes, não à toa ele é considerado por alguns críticos uma espécie de Lars Von Trier do cinema do oriente médio. E em Holy Spider (Dinamarca/França/Alemanha/Suécia – 2022), Abbasi não aceita limites na sua representação da realidade dura, violenta e misógina das prostitutas no Estado Islâmico.
No filme, a jornalista Arezoo Rahimi (Zar Amir Ebrahimi) viaja de Teerã para Mashhad decidida a investigar uma série de assassinatos cometidos em um curto espaço de tempo, tendo como alvo as prostitutas e aditas em ópio que circulam pelas noites nos entornos do bairro onde mora Saeed Azimi (Mehdi Bajestani). Azimi, um pai de família profundamente religioso e dedicado, além de veterano da guerra entre o Irã e o Iraque (1980-1988), decide travar sua própria guerra pessoal contra a cena da prostituição local após sua esposa Fátima (Forouzan Jamshidnejad) ser confundida com uma das trabalhadoras do sexo. Azimi venera o Íman Reza e ressente o fato de não ter morrido na guerra como um “mártir”, o que seria considerado uma grande honra para sua família. Dentro de sua cabeça perturbada, Saeed entende os assassinatos como uma forma de purificação e expurgo dos pecados aos quais sua santa cidade sucumbia. Matar não causa em Saeed nenhuma comoção, foi assim durante a guerra, e assim continuou em seus crimes atrozes contra mulheres.
Rahimi, uma mulher independente e destemida, chega a Mashhad e sofre com a misoginia masculina por não seguir o comportamento discreto e praticamente invisível esperado das mulheres iranianas. Rahimi não se dobra aos abusos, e com uma determinação e coragem inquebráveis segue suas próprias investigações sem ajuda de nenhuma das autoridades locais. Em uma situação extremamente precária e vulnerável, contando apenas com a colaboração do jornalista Sharifi (Arash Ashtiani), Rahimi mergulha no submundo da cidade sagrada. Uma imagem, até então, bastante distante da que temos quando pensamos nas relações interpessoais em uma teocracia do Oriente Médio. O consumo de drogas, a prostituição e a miséria de mulheres completamente desamparadas pelo Estado são esfregadas em nossa cara sem nenhuma piedade. O abandono e a marginalização são a regra, assim como a punição masculina contra crimes que, em sua origem, tem raiz nos comportamentos dos homens que passaram pelas vidas dessas mulheres – algumas foram abandonadas com filhos, outras são viúvas da guerra e outras ainda são arrimo de família vendendo sexo por dinheiro ou um pouco de ópio.
A atriz Zar Amir Ebrahimi teve sua própria experiência com a misoginia iraniana. Após anos como uma estrela da TV, sua vida virou um inferno após o vazamento de uma suposta sex tape, oque a obrigou a abandonar o Irã e buscar refúgio na França. E isso aproximou Ebrahimi tanto de Rahimi, que o papel acabou rendendo a ela o Leão de Ouro do festival de Cannes em 2022 como melhor atriz. Já o diretor Ali Abbasi vivia e estudava no Irã na época dos crimes de Saeed Hanaei, mas logo abandonou o país para continuar sua formação na Suécia e na Dinamarca. Em uma visita a Teerã, o diretor acabou assistindo ao documentário “And Along Came a Spider” (2003), que foi realizado após a execução de Hanaei em 2002. Desde então Abbasi planejava uma ficção envolvendo o tema, conseguiu inclusive a aprovação dos censores culturais iranianos para filmar nas locações originais, porém, após tomarem conhecimento do conteúdo do roteiro, os censores retiraram sua permissão. Abbasi então transferiu as filmagens para a Jordania onde o filme finalmente pode ser realizado.
Holy Spider é um filme polarizador. Em um extremo temos as críticas que acusam Abbasi de estimular misoginia com suas imagens gráficas da violência dos assassinatos. Na obra vemos com riqueza de detalhes na utilização de filtros, sonoplastia e takes longos que potencializam a crueldade dos métodos que Saeed utilizava para torturar e matar suas vítimas. A sua assinatura registrada, por assim dizer, era o estrangulamento utilizando o hijab – lenço usado para cobrir os cabelos – das mulheres que assassinou. E esse ritual do modus operandi de Saeed é repetido várias vezes com requintes de crueldade. Na estréia de Holy Spider em Cannes, várias pessoas se levantaram e saíram em meio as cenas explicitas de sexo e violência. Abbasi foi acusado por parte da imprensa europeia de voyeurismo misógino.
No outro extremo temos outro grupo, no qual me incluo, que defende a importância de uma obra sem a maquiagem e a mão da censura iraniana, onde a realidade pode ser, sim, feia, desnuda e perturbadora, rompendo com a militância bucólica e bem-comportada que marca muitas das obras que passam pelo crivo do departamento cultural do Irã. É uma crítica direta à misoginia presente em países onde normas religiosas são levadas ao extremo e se misturam com leis estatais. Onde não existe laicidade. Onde o (falso) moralismo faz com que boa parte de uma população proteste em defesa do assassino e de sua visão “higienista” de limpeza social. Na história real de Saeed Hanaei, o apoio da opinião pública que gozou durante seu julgamento só foi extinto ao ser descoberto que ele realizava atos sexuais com as vítimas antes de matá-las. Sua santidade veio a terra com a realidade de sua perversão. A ficção Holy Spider não chega a abordar esse fato, mas nem seria necessário, a satisfação no rosto de Azimi durante os crimes já fala por si.
Holy Spider foi indicado a pré-seleção ao Oscar de Filme Internacional em 2023, apesar de não participar da premiação, chegou aos cinemas de todo o mundo e se encontra disponível na plataforma MUBI para os brasileiros.
Holy Spider pode ser visto no streaming Mubi.