Historiador também pode ser youtuber

Entrevistamos o historiador Icles Rodrigues, criador do canal “Leitura ObrigaHISTÓRIA”.
18 de setembro de 2017
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Icles-Rodrigues
Icles Rodrigues é o criador do canal Leitura ObrigaHISTÓRIA. Foto: acervo pessoal do entrevistado.

Você certamente já ouviu falar nos youtubers Whindersson Nunes e Felipe Neto, jovens comediantes cuja audiência na internet é de causar inveja às grandes emissoras de televisão. Muito provavelmente também já conheceu alguma bela receita do Caio Novaes, do canal de culinária “Ana Maria Brogui”, ou já se divertiu com alguma experiência científica feita pelo jornalista Iberê Thenório no canal “Manual do Mundo”. Mas nem só de comédia, comida e experimentos vive o YouTube. Ele também oferece – o que talvez você também já saiba – bons canais de História. Um desses canais é o “Leitura ObrigaHISTÓRIA”, criado em 2015 pelo historiador Icles Rodrigues, doutorando em História pela Universidade Federal de Santa Catarina.

Com mais de 22 mil inscritos, o canal oferece, entre outros conteúdos, entrevistas, resenhas de livros, explicação de conceitos históricos e discute fontes históricas. Há algum tempo, o time do “Leitura ObrigaHISTÓRIA” (que também tem um blog, iniciado em 2009, anos antes do canal) ampliou a equipe: a historiadora Luanna Jales apresenta o quadro “Mulheres na História” e a antropóloga Mariana Pisani, o quadro “AntropoLógica”. Como nós do Café História somos entusiastas da divulgação acadêmica de História para o grande público e admiradores do canal, resolvemos conversar com Rodrigues. Se você pretende ter um canal de YouTube para divulgar História, eu salvaria essa conversa nos “favoritos” agora mesmo!

Icles, antes de mais nada, muito obrigado por conversar com o Café História. Nós gostamos bastante do trabalho que você, a Luanna Jales e a Mariane Pisani desenvolvem no “Leitura ObrigaHistória”. Conte-nos um pouco sobre o canal: origem, dinâmica, periodicidade, temas, público, etc.  Qual o principal objetivo dele?

Primeiramente, obrigado pela oportunidade de falar sobre nosso trabalho no Café História. Sobre o canal, as origens dele podem ser traçadas até 2009, quando eu estava na primeira fase da graduação em História na Universidade Federal de Santa Catarina. Após a leitura de um livro em particular que me agradou muito, “Testemunha ocular”, de Peter Burke, que recentemente foi relançado no Brasil, fiquei pensando que mais pessoas deveriam saber o quanto aquele livro era interessante, e tive a ideia de fazer um blog para postar resenhas de livros que eu lia.. Naquele momento de deslumbre de um historiador em formação, aquele livro era, para mim, uma “leitura obrigatória”. Daí é fácil entender de onde saiu o nome do blog. Em 2015, as atividades no blog eram quase inexistentes, haja vista que tinha perdido a vontade de continuar resenhando todo livro que eu lia. Foi, então, que me veio a ideia de criar um canal onde eu pudesse falar dos livros em vídeo. Conforme o trabalho foi progredindo, fui incluindo mais temas, quadros, abordagens e até mesmo pessoas para formar uma equipe, no caso a Luanna Jales, que recentemente se graduou em História pela Universidade Federal de Santa Catarina, e Mariane Pisani, antropóloga e atualmente doutoranda em Antropologia pela Universidade de São Paulo.

Como é o processo de produção dos vídeos, desde a escolha dos temas até o momento das filmagens? Vocês elaboram roteiros, por exemplo? Usam teleprompter para gravar? Quanto tempo leva, em média, para produzir um episódio?

O principal motivo pelo qual o canal permanece de pé é que eu estou sempre tentando me manter motivado a continuar trabalhando – e tentando trabalhar de modo a continuar sempre empolgado. A escolha dos temas geralmente é feita de acordo com aquilo que tenho vontade de falar a respeito. No caso dos quadros “Mulheres na História”, apresentado pela Luanna, e “Antropológica”, apresentado pela Mariane, elas têm total autonomia de escolha de temas – neste caso, minha participação no roteiro se resume a opinar muito pontualmente ou dar sugestões que julgo úteis baseadas na minha experiência com o canal e no conhecimento do público deste. De vez em quando fazemos enquetes com nossos colaboradores que nos apoiam pelo site Apoia.se para a escolha de pautas, quando há mais de uma opção de tema em vista.

O processo normalmente começa pela leitura da bibliografia do vídeo, que pode ser desde um único artigo ou capítulo de livro até mais de uma obra, dependendo da conjuntura. Escrevo o roteiro, reviso, e na hora de gravar uso um tablet pendurado na câmera, logo abaixo da lente, para leitura do texto. No início, eu fazia tudo sem roteiro, mas eu acabava sempre esquecendo de pontos importantes ou sendo muito redundante. O roteiro me dá maior controle tanto da concisão como do conteúdo.

O tempo dos vídeos depende muito. Alguns vídeos, como os de anúncios de livros, às vezes são feitos em cerca de seis, sete horas. Outros, como alguns do quadro “Fontes Históricas”, podem levar dois, três dias, já que cada um deles é baseado em um capítulo de livro e são mais longos, ainda que não costumem ter muitos elementos visuais que façam a edição demorar demais. As exceções até o momento foram os vídeos sobre fontes audiovisuais e sobre fontes musicais – este último levou algumas semanas.

Já alguns vídeos, como o que fizemos explicando os conceitos de Direita e Esquerda, podem levar meses para ficarem prontos. Só o roteiro deste último levou dois meses de trabalho, até que eu ficasse satisfeito. Algo parecido aconteceu com um vídeo que fiz sobre a Alemanha Oriental. O vídeo final ficou com 53 minutos e levou meses para ficar pronto. Em casos assim, a edição é muito desgastante. Nesse último vídeo sobre a Alemanha, inclusive, eu cometi um erro ao “decorar” a sigla da Alemanha Ocidental errado. A pressão quanto à qualidade do resultado final foi tamanha que deixei esse detalhe passar. Felizmente não foi nada mais grave, como um erro conceitual.

Icles, há alguns anos temos acompanhado o crescimento de grupos que negam o Holocausto. Há algumas semanas, as redes sociais registraram um debate surpreendente sobre se o nazismo seria de esquerda ou de direita. Em recente entrevista, o cantor Zezé di Camargo disse que não houve ditadura militar no Brasil, mas sim o que ele chamou de “militarismo vigiado”. O papel dos historiadores profissionais (aqueles com formação na área) na divulgação do conhecimento histórico nunca pareceu tão importante e urgente como agora. Certamente, essa divulgação não vai resolver sozinha esse difícil cenário de desvalorização das Ciências Humanas, mas talvez possa contribuir para revertê-lo. Você concorda?

Absolutamente. Em partes, é exatamente essa necessidade que me fez decidir que eu deveria transformar o canal em mais do que apenas um veículo de divulgação bibliográfica. E há muita demanda do público, como os números do meu canal me levam a supor. Dos dez vídeos mais visualizados nesses mais de dois anos de trabalho, metade são de conceitos básicos como direita e esquerda, fascismo, anacronismo, anarquismo, feudalismo, e outros são próximos a isso, como os vídeos sobre o que é Antropologia, o que é a Escola dos Annales, entre outros. Penso que esse tipo de conteúdo básico, que na academia parece ser às vezes um pouco negligenciado por ser tomado como algo consolidado, deve voltar aos holofotes. É cansativo ter que, periodicamente, voltar ao básico, ao que já foi dito e consolidado, mas devemos trabalhar com o mundo que temos, não o mundo ideal.

Eu acredito bastante que nós historiadores podemos ser youtubers, que não há qualquer tipo de embaraço nisso, diferente do que possam pensar, até porque o YouTube pode ser um lugar privilegiado para a divulgação do conhecimento histórico para o grande público. Mas também acredito que é preciso tomar uma série de cuidados na elaboração do produto que vai ao ar. Por exemplo: não podemos nos tornar reféns da demanda do público e nem ignorar essa demanda. Que cuidados vocês do Leitura ObrigaHistória têm em mente ao elaborar um vídeo?

O que me faz continuar é a motivação. Logo, eu preciso estar realmente interessado em fazer os vídeos que eu faço. Sempre que eu fiz um vídeo sem estar genuinamente interessado ou seguro para fazê-lo, o resultado me desagradou, ainda que normalmente agrade ao público. Levando em conta que atualmente eu não tenho podido colocar vídeos de conteúdo toda semana por conta do meu doutorado em andamento, mais do que nunca eu preciso que os temas sejam do meu interesse e por isso raramente atendo aos inúmeros pedidos que recebo. No entanto, eu tento fazer com que os temas que eu aborde tenham relevância para nossos espectadores, e quase sempre eles atendem aos interesses do público, mesmo que não tenham sido um pedido direto do mesmo.

Minha principal diretriz é não deixar que o Leitura ObrigaHISTÓRIA vire o milionésimo canal de opinião sobre atualidades do YouTube. Para explicar melhor, posso me remeter ao conceito de fast thinkers, que Pierre Bourdieu inclusive usa em um dos últimos livros que resenhamos no canal, a obra Sobre a televisão. Ele faz uma crítica aos supostos pensadores do momento, que estão sempre com suas frases e reflexões prontas para os eventos do momento. Em contraponto, há os intelectuais que preferem se abster da efervescência desses debates e dar tempo ao tempo, de modo a observar esses eventos à luz de suas consequências, munido de uma melhor reflexão sobre o assunto. Longe de mim querer alimentar uma autoimagem de intelectual – já que minha produção acadêmica nem sequer permitiria tal petulância –, mas essa segunda postura me agrada muito mais. Por isso que é muito raro fazermos vídeos sobre algum “assunto da moda” ou mesmo comentarmos sobre isso nas redes sociais. Embora eu tenha deixado muito claro em um vídeo de resposta a perguntas frequentes, FAQ de 2016, qual é meu posicionamento político-ideológico, expliquei mais de uma vez no canal que eu tento fazer um conteúdo mais expositivo e menos opinativo, com o máximo de respaldo acadêmico que eu conseguir. A última coisa que eu quero com ele é fazer algum tipo de “pregação para convertidos”. E se por um lado renego completamente o mito da “imparcialidade” ou da “neutralidade” – características que me são atribuídas por muitos espectadores –, por outro lado penso que adotar uma postura menos opinativa e mais expositiva funciona melhor para mim, e tem um potencial de alcance mais abrangente.

Icles, que dicas você daria para os historiadores que pensam em criar um canal no YouTube visando à divulgação do conhecimento histórico?

Um conselho que pode servir para qualquer pessoa que queira fazer um canal é: tenha certeza que o recorte temático do seu canal não lhe deixará sem pauta em breve. Devido à explosão de canais nos últimos anos, os de nicho têm tido mais chance de destaque, mas um recorte muito fechado pode acabar relegando o canal a uma morte rápida. Outro ponto importante a se atentar é a exposição. A partir do momento em que você se colocar publicamente dessa forma, quanto mais visibilidade você receber, mais você será elogiado e amado por alguns e odiado por tantos outros. Sua competência, suas crenças, seu posicionamento político, suas intenções são características que serão constantemente comentadas, às vezes elevadas de forma exagerada, outras vezes questionadas ou mesmo negadas.

É necessário estar ciente de que o YouTube pode ser um ambiente muito tóxico, e que nem todas as pessoas lidam com isso da mesma maneira. Meu posicionamento em relação ao meu canal é simples: eu criei minha própria sala de aula no YouTube. Assim como eu jamais admitiria o desrespeito de um aluno em sala, o mesmo acontece no canal. Por isso, os comentários de todos os vídeos passam por moderação para evitar que si direcionem para caminhos perigosos. Por um lado, algumas pessoas nos acusam de censura. Por outro, recebemos elogios de pessoas que veem nosso canal, o único desse tipo e com esse tema do YouTube brasileiro, como um espaço onde elas se sentem mais seguras.

Outra coisa importante: raramente vale a pena discutir com certos comentaristas. Na Internet é muito comum que todos queiram ter a última palavra, e em uma conversa de comentários não é incomum que seu interlocutor simplesmente não entenda seus argumentos ou deliberadamente os ignore com o intuito de forçar seu argumento, opinião ou, por vezes, sua distorção histórica. Ao contrário de um debate in loco, onde você pode facilmente desmobilizar certas posturas, como a de defesa de que o nazismo seria de esquerda, na Internet isso é mais complicado, não só pela insistência de certos grupos, mas também pela possibilidade de ataque em massa e do clima de “vitória no debate” baseada em likes ou em “torcida”, algo que está longe de ser saudável para debates sérios. É também por esse motivo que moderamos os comentários: já há muito espaço para pseudociência na Internet, nosso canal não é um deles. Por isso é importante ter sempre o máximo de respaldo acadêmico possível para o conteúdo que você produz. Sua resposta são suas fontes e bibliografia.

E o mais importante, para qualquer acadêmico dentro ou fora do YouTube: seja intelectualmente honesto. Isso é um pré-requisito para qualquer área do conhecimento –  ou ao menos deveria ser. Agir dessa forma e ser transparente com seu público faz com que ele perceba quem você é, entenda quais são seus limites, seus objetivos, e um público fidelizado levará seu conteúdo adiante.

Como citar essa entrevista

RODRIGUES, Icles. Historiadores também podem ser youtubers (Entrevista). Entrevista concedida a Bruno Leal Pastor de Carvalho. In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/historiador-e-youtuber/. Publicado em: 18 Set 2017. Acesso: [informar data].

Bruno Leal

Fundador e editor do Café História. É professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em História Social. Tem pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisa História Pública, História Digital e Divulgação Científica. Também desenvolve pesquisas sobre crimes nazistas e justiça no pós-guerra.

6 Comments Deixe um comentário

  1. As novas tecnologias da informação e da educação estão aí e devem ser conhecidas, exploradas, aprendidas e utilizadas. Popularizar o conhecimento, o acesso à informação, é muito importante nessa nossa época de vasta proliferação de fake news e congêneres. Convém salientar a observação feita pelo entrevistado para a necessidade de se “estar ciente de que o YouTube pode ser um ambiente muito tóxico, e que nem todas as pessoas lidam com isso da mesma maneira.” Mais uma pertinente entrevista produzida pelo Café História.

  2. Gostei da entrevista e fiquei interessada neste trabalho. Sou historiadora e professora de história aposentada. Muito bom, vou tentar acessar porque nunca usei o YouTube. Abraços.

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