Por uma história social das doenças: o caso da leishmaniose

23 de setembro de 2019
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Em entrevista ao Café História, Jaime Larry Benchimol, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz, especialista em história das ciências e da saúde no país, fala sobre a história social de uma antiga moléstia: a leishmaniose.

Cristiane d’Avila entrevista Jaime Larry Benchimol

“A história de uma doença nunca é a história de uma só doença. Em cada conjuntura sobressaem diversas doenças e há interações entre elas. No plano das ideias, usam-se constructos ou modelos aplicáveis a uma para dar sentido a outras, quer pelo mecanismo das analogias, quer pela via experimental”.

A afirmação do historiador da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) Jaime Larry Benchimol, especialista em história das ciências e da saúde no país, resulta de observações de seu mais recente objeto de estudo: a leishmaniose, ou leishmanioses, sendo três os tipos conhecidos: a visceral, a cutânea e a mucocutânea. 1

Complexo plural “construído” na virada do século XIX para o XX pela junção de moléstias que nada tinham a ver umas com as outras, segundo as palavras do pesquisador, a leishmaniose foi identificada como problema sanitário grave a partir de 1909. Pesquisadores cujos arquivos estão sob a guarda do Departamento de Arquivo e Documentação da COC, como Evandro Chagas, Leônidas Deane e Maria Paumgartten Deane, são os protagonistas de uma história de investigações que avançaram pelos séculos XX e XXI.

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Jaime Larry Benchimol no no evento de 25 anos da revista Manguinhos. Foto: Jeferson Mendonça dos Santos Silva / Departamento de Arquivo e Documentação/COC-Fiocruz.

Momentaneamente controlada nos anos 1950 e 1960, no Brasil e em outros países, a doença irrompeu em áreas consideradas livres da doença, em função de mudanças ambientais, migrações humanas e crescimento urbano caótico. Duplamente negligenciada, seja porque recebe pouca atenção do Estado, seja porque afeta populações negligenciadas, a leishmaniose ainda é cercada de incertezas sobre seus mecanismos de transmissão, diagnóstico, tratamento e prevenção. No entanto, segundo Benchimol, ela mobiliza uma das mais pujantes comunidades de pesquisa no Brasil. 

Pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz, Benchimol foi editor científico da revista História, Ciências, Saúde — Manguinhos de janeiro de 1997 a março de 2015. É professor do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da COC e do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Condições de Vida e Situações de Saúde na Amazônia (Fiocruz Amazônia, Manaus). Escreveu livros sobre febre amarela e organizou, com Magali Romero Sá, a obra completa de Adolpho Lutz.

Você escreveu muitos livros sobre febre amarela. Agora prepara uma coletânea sobre leishmaniose. Como chegou a esse objeto de pesquisa?

Durante muito tempo pesquisei a história da febre amarela. Para mim, o barato estava em conhecer a história social da doença, ou seja, não apenas como ela incidiu sobre diferentes grupos sociais e como estes vivenciaram e reagiram à doença, mas também como foram socialmente produzidos os conceitos e ideias que informaram a percepção dos homens sobre a febre amarela e que balizaram suas ações contra ela.

E escrevi páginas e páginas sobre como ela foi interpretada e combatida à luz de teorias miasmáticas, depois de diversas teorias microbianas concorrentes, que tiveram enorme repercussão no último quarto do Oitocentos2, sendo estes constructos postos abaixo na virada do século XX, quando prevaleceu a teoria que norteou as campanhas de Oswaldo Cruz e de outros sanitaristas.

Segundo esta teoria [a de Oswaldo Cruz], a febre amarela era uma doença transmitida por uma única espécie de mosquito (atual Aedes aegypti), com agente causal ainda desconhecido, julgando-se provável, porém, que fosse um protozoário, por analogia com a malária. A febre amarela tinha o homem como único hospedeiro vertebrado e grassava sobretudo nas cidades portuárias populosas das zonas mais quentes do planeta.

Combater a febre amarela significou alterar o ambiente que produzia os miasmas, neutralizar a suposta bactéria que causava a doença por meio de vacinas, realizar desinfecções e promover o isolamento dos doentes; agora significava principalmente combater um mosquito nas grandes cidades litorâneas da América e da costa ocidental da África.

Isso até a nova reviravolta ocorrida na virada dos anos 1920 para os 1930, quando a febre amarela passou a ser vista como doença primariamente silvestre, causada por um vírus, tendo vários hospedeiros vertebrados além do homem e várias outras espécies de mosquitos como transmissores. Em 1934, quando era drasticamente reestruturada a campanha contra a febre amarela, outras doenças foram reveladas como graves problemas de saúde pública no Brasil. É o caso da leishmaniose visceral.

Como isso aconteceu?

Os especialistas da Fundação Rockefeller e da saúde pública brasileira implicados na campanha tinham de dimensionar a verdadeira extensão da febre amarela e uma das ferramentas usadas para isso foram as viscerotomias: com respaldo de lei promulgada por Vargas, pessoas que morressem de febre suspeitas só podiam ser enterradas se fosse extraído um fragmento de seu fígado por um dos muitos viscerotomistas contratados nos mais remotos rincões do país. Podia ser um farmacêutico, um juiz de paz, um comerciante…

Correndo muitas vezes risco de vida, dadas as reações que esse procedimento causou, o sujeito enfiava a lâmina do viscerótomo no bucho do cadáver, punha o fragmento de fígado assim extraído num vidro com conservante e mandava o material para o laboratório que ficava em Salvador, depois no Rio de Janeiro para que fosse analisado.

Em materiais negativos para febre amarela, o patologista Henrique Penna encontrou dezenas de casos de uma doença que se supunha não existir nas Américas, a leishmaniose visceral. Muitos casos de esquistossomose seriam encontrados assim também.

Leishmaniose, leishmanioses, uma palavra que pode ser usada no plural e no singular. Qual a história dessa doença?

Leishmaniose é uma palavra usada com frequência no singular, mas é um complexo plural “construído” na virada do século XIX para o XX pela junção de moléstias que nada tinham a ver umas com as outras. Por exemplo: úlceras cutâneas que afligiam europeus e nativos na Ásia e África tiveram por muito tempo dezenas de nomes que aludiam às circunstâncias de tempo e lugar em que eram adquiridas: botão de Aleppo, de Biskra, o botão da Bahia descrito por Juliano Moreira etc. Os médicos atribuíam essa doença cutânea em geral benigna, também chamada ‘botão do Oriente’, ao clima e às condições de higiene das localidades afetadas.

Na década de 1890, um investigador russo relacionou-a a um protozoário, e essa teoria ganhou maior consistência nos Estados Unidos, onde um médico classificou como Helcosoma tropicum o protozoário encontrado nas úlceras de uma imigrante armênia que havia contraído a doença em sua terra natal.

Leishmania leishmaniose
Leishmania donovani-numa, célula de medula-óssea. Foto: CDC

Por outro lado, na Índia, a partir de meados do século XIX, passou a grassar epidemicamente uma doença muito letal, que afetava as vísceras, sobretudo o fígado e o baço, conhecida como kala-azar. As autoridades coloniais britânicas promoveram inquéritos para saber que doença era aquela. Para uns era uma forma grave de malária, para outros uma manifestação anômala da ancilostomíase.

Trabalhando independentemente, Willian Boog Leishman e Charles Donovan identificaram em 1903 um protozoário como o agente etiológico do calazar. Um novo gênero – Leishmania – foi então criado para acomodar o parasito classificado como Leishmania-Donovani. E em 1906, um médico alemão mostrou que havia grande semelhança morfológica entre este protozoário e o Helcosoma tropicum, do Botão do Oriente, sendo este reclassificado como Leishmania tropica.

Assim, dois protozoários indistinguíveis, com os recursos técnicos então disponíveis, causavam doenças com quadros sintomáticos e cursos completamente diferentes. Isso representava uma anomalia para um princípio caro à medicina pasteuriana, isto é, a ideia de que a cada doença infecciosa correspondia um microrganismo específico, um agente causal único e claramente discernível. Tal anomalia é um aspecto essencial do processo subsequente de produção de conhecimentos sobre esse grupo de doenças que foi se tornando cada vez complexo e diversificado com o passar do tempo.

Como se deu esse processo de descobertas no Brasil?

Em 1909, Antonio Carini e Ulisses Paranhos, do Instituto Pasteur de São Paulo, e Adolpho Lindenberg, do Instituto Bacteriológico de São Paulo, relataram a descoberta de Leishmania nas chamadas “úlceras de Bauru”. Vinham elas acometendo muitos operários que trabalhavam na construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, que ligaria Bauru ao Mato Grosso e à Bolívia.

Aqueles primeiros diagnósticos de leishmaniose na América Latina traziam novidades em relação ao botão do Oriente: aqui o parasita podia atacar não só a pele, mas também as mucosas; tinha curso clínico mais grave, ocasionando com frequência graves deformações e a morte. Outra singularidade: a doença não grassava em cidades, mas em zonas de florestas.

Nas primeiras décadas do século XX, centenas de casos seriam descritos principalmente por dermatologistas que atendiam doentes vindos das zonas rurais para os hospitais das cidades em busca de tratamento. Mas no tocante à leishmaniose visceral, a singularidade das Américas parecia residir na ausência dessa forma da doença cuja extensão geográfica no Velho Mundo vinha se ampliando por força de estudos que haviam diferenciado o kala-azar da Índia, China e de outras regiões; e a leishmaniose visceral que grassava na zona do Mediterrâneo, principalmente entre crianças e cães.

Houve um diagnóstico de leishmaniose visceral no continente americano em 1912, feito por um médico paraguaio num indivíduo que havia trabalhado na Noroeste do Brasil, a ferrovia que fora palco do surto de “úlcera de Bauru”, mas esse diagnóstico ficou como um evento intrigante, isolado, até a descoberta feita em 1934 por Henrique Penna, o patologista do Serviço de Febre Amarela.

A Fiocruz é protagonista importante nos estudos sobre as leishmanioses. Pode descrever como se deu esse processo histórico?

Aconteceu o seguinte. Carlos Chagas, diretor do Instituto Oswaldo Cruz, incumbiu então seu filho primogênito, Evandro Chagas, diretor do hospital que havia na instituição, de investigar aquele novo problema médico. Com as fichas dos casos diagnosticados post-mortem, ele encontrou o primeiro paciente brasileiro diagnosticado em vida com a doença, em Aracaju, Sergipe.

À frente da Comissão Encarregada do Estudo da Leishmaniose Visceral Americana, da qual fazia parte o médico argentino Cecílio Romaña, Evandro Chagas visitou outros lugares no Nordeste, mas logo concentrou sua investigação no Pará, onde outros jovens médicos foram incorporados à sua equipe.

Tendo como bússola os laudos produzidos pelos patologistas do Serviço de Febre Amarela, Evandro Chagas e seus colaboradores fariam grandes esforços para demonstrar a teoria quase apriorística da suposta autoctonia da Leishmaniose Visceral Americana. Eles procuraram repetir o feito dos que haviam logrado estabelecer o conceito da Leishmaniose Tegumentar Americana e também o do descobridor da afamada tripanossomíase americana (doença de Chagas). Certamente foram influenciados pela ebulição científica provocado pela recente descoberta da febre amarela silvestre.

A leishmaniose visceral encontrada no Norte e Nordeste do Brasil e na província do Chaco, no nordeste da Argentina, ocorria em indivíduos de diferentes idades, ao passo que a do Mediterrâneo incidia preferencialmente em crianças. A doença americana ocorria exclusivamente em áreas silvestres ou zonas rurais em estreito contato com matas, e não em cidades, como o calazar, que se manifestava sob a forma de intensas e letais epidemias na Índia.

Cães eram os principais reservatórios do agente da leishmaniose visceral mediterrânea, mas esses animais domésticos não podiam desempenhar igual papel em doença tão esparsa quanto a americana; só animais silvestres atuando como reservatórios primários podiam explicar o perfil epidemiológico da leishmaniose visceral americana. Ao incriminar uma nova espécie − Leishmania chagasi − como seu agente causal, Evandro Chagas estabelecia explícita associação com outro pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz, Gaspar de Oliveira Vianna, que havia descrito a Leishmania braziliensis, então reconhecida como o agente da leishmaniose tegumentar americana.

Joaquim Eduardo Alencar, num Congresso Médico do Nordeste Brasileiro realizado em Fortaleza, em julho de 1953, declarou que a leishmaniose, quer a tegumentar, quer a visceral, constituía um problema de relevância para o Nordeste, se bem que não pelo elevado número de casos. Um dos fundadores, em 1947, da Faculdade de Medicina do Ceará, Alencar ensinava parasitologia aí. O Congresso e o tema em discussão revelam a densidade que vinha adquirindo o campo médico na região e os estudos sobre as doenças do Nordeste feitos por médicos locais, em colaboração cada vez mais frequente com investigadores de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.

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Fêmea de flebotomíneo. Foto: CDC.

Os postos de saúde criados em zonas interioranas desempenharam papel importante no número crescente de diagnósticos da leishmaniose tegumentar, mas os casos vivos de leishmaniose visceral eram poucos, e assim se mantinha de pé a noção estabelecida por Evandro Chagas de que era doença rara e esporádica.

Em quatro décadas, 34 casos tinham sido reconhecidos, a maior parte no Pará e na Bahia. Mas em 1953 irrompeu uma epidemia no norte do Ceará que alterou drasticamente esse quadro. Em apenas cinco anos (1953 a 1957), o total de casos in vivo no Brasil saltou para 1.832. No continente americano o total subiu de 35 para 2.179 (1.840 em vida e 339 post-mortem), porém mais de 98% desse total pertenciam ao Nordeste do Brasil.

Os médicos e farmacêuticos da região há muitos anos vinham observando infecções de natureza desconhecida, como o “mal do buchão”, que só agora identificavam. A epidemia de 1953 mostrou, assim, que o pequeno número de diagnósticos feitos anteriormente, em vez de traduzir a raridade da doença, era consequência da falta de assistência à população rural e do desconhecimento dos médicos e farmacêuticos que atuavam no interior (não podemos subestimar a importância desta última categoria na prestação de assistência às populações rurais nordestinas!).

Foi então instituída uma Campanha contra a Leishmaniose Visceral no Ceará sob a chefia do já citado Joaquim Eduardo de Alencar. Samuel Pessoa esteve na região e enviou para lá dois de seus assistentes − Leônidas Deane e sua mulher, Maria Paumgartten Deane, ex-integrantes da equipe de Evandro Chagas.

Como foi combatida a doença?

Como na Índia e em outras partes do mundo, a leishmaniose visceral foi combatida por meio da dedetização domiciliária no Nordeste do Brasil. Os Phlebotomus longipalpis desapareciam das casas tratadas com este inseticida de ação residual; nos abrigos de animais domésticos sua ação era menor; e ao ar livre, nula. Seus criadouros eram na verdade mal conhecidos ainda. E as dedetizações eram feitas pelo Serviço Nacional de Malária, ficando assim a reboque da profilaxia dessa doença, ou seja, dos hábitos dos Anopheles, que não eram os mesmos dos Phlebotomus.

A Campanha contra a Leishmaniose Visceral no Ceará envolveu também a descoberta e eliminação dos casos caninos. À luz dos valores atuais da ética animal, é chocante o número de cães eliminados ao longo de oito anos de Campanha: de 279.423 animais examinados, 78.929 foram abatidos, não obstante apenas 3.712 (1,32% do total) fossem dados como positivos (as técnicas para o diagnóstico parasitológico eram consideradas incertas).

Ninguém tinha dúvidas de que a epidemia de leishmaniose visceral era em larga medida determinada pelas condições socioeconômicas dos trabalhadores rurais. Atribui-se a Alencar um comentário muito significativo: “A leishmaniose é uma doença de cães e daqueles que levam vida de cão”. Por isso a profilaxia devia incluir a melhoria das condições de vida das populações atingidas, mas, na prática, limitou-se ao tratamento com os antimoniais então disponíveis, especialmente o Glucantime, fornecidos gratuitamente a hospitais e postos de saúde.

Atualmente, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), as leishmanioses são as únicas doenças tropicais negligenciadas em crescimento, sendo o Brasil o país com o maior número de casos das três formas da doença: tegumentar ou cutânea; a mucocutânea e visceral ou calazar. Qual a situação da doença no Brasil?

A leishmaniose visceral foi controlada no Brasil, mas apenas momentaneamente. Hoje apresenta elevada incidência e vasta distribuição, adquirindo formas graves e letais quando associada à má nutrição e infecções concomitantes, como a Aids. Grandes empreendimentos no interior do país após o golpe civil-militar de 1964 contribuíram para a transformação das leishmanioses cutânea e mucocutânea num problema também mais grave, especialmente na região amazônica.

Na verdade, no final do século XX, no Brasil e em outros países, todas as formas de leishmaniose que pareciam sob controle reemergiram em zonas rurais e urbanas e irromperam em áreas consideradas livres desse complexo de doenças endemoepidêmicas devido a mudanças ambientais, migrações humanas, crescimento urbano caótico e outros processos socioeconômicos incidentes sobre largas porções dos territórios desses países.

Isso explica o notável incremento na cooperação internacional no tocante às leishmanioses e a outras doenças que passaram a ser qualificadas como “negligenciadas”. Muitas incertezas (antigas ou novas) pairam ainda sobre os mecanismos de transmissão, as técnicas diagnósticas, o tratamento e a prevenção das leishmanioses. Embora esse complexo de doenças seja de fato negligenciado pelas políticas públicas e afete populações também negligenciadas, mobiliza uma das mais pujantes comunidades de pesquisa no Brasil.

Você afirma no seu mais recente artigo que a extrema especialização dos profissionais que lidam com doenças tropicais se contrapõem, com algumas exceções, à inabilidade para perceber o problema holisticamente. Como chegou a essa percepção?

Novos paradigmas, especialmente a biologia molecular, mudaram a maneira de ver as leishmanioses, dando-lhes complexidade bem maior do que tinham na época analisada atrás, ao mesmo tempo em que aumentava o número de investigadores dedicados a esse objeto de pesquisa, oriundos dos programas de pós-graduação que vinham se multiplicando no país. Para um historiador essa é uma época dura de ‘roer”.

Para fazer história de uma ciência ou doença a gente precisa se assenhorear da linguagem dos especialistas que escreveram sobre elas. Com o tempo aprendi a lidar com a literatura produzida por clínicos, bacteriologistas, parasitologistas, zoólogos e entomólogos, mas um não iniciado tem grande dificuldade de penetrar a literatura atual, das novas gerações formadas sob a égide da biologia molecular e das tecnologias experimentais e diagnósticas derivadas dela. Tenho me valido da história oral para dar sentido aos processos contemporâneos.

A extrema especialização dos profissionais que lidam com as leishmanioses e outras doenças parece ter como contrapartida, com exceções, é claro, uma inabilidade para perceber o problema holisticamente, como fazia a geração multivalente de Samuel Pessoa, Leônidas Deane e Joaquim Alencar, mais sensível aos determinantes sociais e ambientais das doenças. E isso acontece porque elas são também eventos culturais que dependem de categorias de pensamento e constructos verbais específicos a uma geração, os quais refletem a história do campo médico e da sociedade que o engloba.

Notas

1 Segundo definição da Fiocruz, “As leishmanioses são um conjunto de doenças causadas por protozoários do gênero Leishmania e da família Trypanosomatidae. (…) A leishmânia é transmitida ao homem (e também a outras espécies de mamíferos) por insetos vetores ou transmissores, conhecidos como flebotomíneos (…) A transmissão acontece quando uma fêmea infectada de flebotomíneo passa o protozoário a uma vítima sem a infecção, enquanto se alimenta de seu sangue.” São vários os sintomas da doença.

2 Século XIX.

Jaime Larry Benchimol possui graduação em história no Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense (1976); mestrado em Planejamento Urbano e Regional pela COPPE, Universidade Federal do Rio de Janeiro (1982); especialização em restauração de monumentos históricos na Itália (1983); e doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense (1995). É pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz. Foi editor científico de História, Ciências, Saude — Manguinhos de janeiro de 1997 a março de 2015. Desde então é membro do Conselho Editorial desta revista. É professor do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz e do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Condições de Vida e Situações de Saúde na Amazônia (Instituto Leônidas e Maria Deane, Manaus). Seus temas de pesquisa e ensino situam-se nas áreas de História das Ciências da Vida, História da Medicina Tropical e da Saúde Pública e agora, em menor medida, História Urbana.

Cristiane d’Avila é jornalista, doutora em Letras pela PUC-Rio, Tecnologista em Saúde Pública da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), onde atua no Departamento de Arquivo e Documentação. Mestre em Comunicação Social e Especialista em Comunicação e Imagem pela PUC-Rio. É organizadora do livro “Cartas de João do Rio a João de Barros e Carlos Malheiro Dias”, publicado pela Funarte em 2013, e autora do livro “João do Rio a caminho da Atlântida”, publicado em 2015 com apoio da Faperj. Colabora mensalmente com o Café História com textos sobre História da Ciência e da Saúde.

Como citar esta entrevista

BENCHMOL, Jaime Larrt. Por uma História Social das doenças: o caso da leishmaniose (Entrevista). Entrevista concedida a Cristiane d’Avila. In: Café História – História feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/historia-social-da- leishmaniose/. Publicado em: 23 set. 2019. Acesso: [informar data].

Cristiane d’Avila

Jornalista, doutora em Letras pela PUC-Rio, Tecnologista em Saúde Pública da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), onde atua no Departamento de Arquivo e Documentação. Mestre em Comunicação Social e Especialista em Comunicação e Imagem pela PUC-Rio. É organizadora do livro “Cartas de João do Rio a João de Barros e Carlos Malheiro Dias”, publicado pela Funarte em 2013, e autora do livro “João do Rio a caminho da Atlântida”, publicado em 2015 com apoio da Faperj. Colabora mensalmente com o Café História com textos sobre História das Ciências e da Saúde.

5 Comments Deixe um comentário

  1. Muito bom. Será que poderíamos fazer ter a história do sarampo, ou febre amarela ou QQ epidemias de ciclos? É importante contar as dificuldades com as vacinas e como isso ajudou a mudar o comportamento nas grandes cidades.

    • Cara Paula, peço desculpas pela demora em responder. Existem já boas histórias sobre epidemias. Uma boa fonte (entre muitas outras) é a revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, que você encontra integralmente pela internet. O que os historiadores ainda não debateram com o necessário vigor é o antivacinismo em voga que se presta a fecundas comparações com nossa conhecida Revolta da Vacina. Isso está contribuindo para um grande retrocesso no controle das doenças infecciosas. No começo do século XX, havia quem acreditasse que receber no corpo o vírus vacínico produzido em bezerros ‘avacalhava’ as pessoas. Hoje temos resistências motivadas por uma enxurrada de fake news, num tempo em que imbecis empoderados defendem o terraplanismo, a tortura, a escravidão, a liquidação de povos indígenas e das florestas e o anticomunismo, como se estivéssemos em plena Guerra Fria. É claro que isso é uma simplificação, mas pode servir como ponto de partida para uma reflexão sobre essa vaga de obscurantismo que varre o Brasil e parte do planeta.

  2. Caro Profesor Benchimol: excelente racconto histórico para conocer mejor sobre la historia de estas enfermedades que tienen gran peso en la salud pública de muchos lugares en Latinoamérica. Gracias! (y a la Doutora D’Avila pela reportagem muito boa)
    Sólo para adicionar un fato histórico: en 1963 el caro Profesor Aluizio Rosa Prata publicó el primer trabajo sobre el uso de Anfotericina B para los casos de Leishmaniasis Visceral graves y así abrió una nueva oportunidad terapeutica para estas protozoosis mortal sin tratamiento. Y luego permitió su uso en las variantes refractarias cutáneas o mucosas.
    Cordialmente
    Dr. Tomás Orduna
    Médico Infectólogo Tropicalista
    Hospital Muñiz de Buenos Aires

    • Caro dr. Tomás. Muito obrigado pela lembrança. Sua informação chegou na hora em que fechava um dos capítulos de um livro que publicarei em breve e foi usada e ampliada, com os devidos agradecimentos. Chamar-se-á Uma história das leishmanioses no Novo Mundo (fins do século XIX aos anos 1960)

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