Jerome de Groot, da Universidade de Manchester, fala sobre as formas como nós consumimos o passado, seja através de uma aula de História, por intermédio do professor, ou por meio de um teste de DNA vendido por um site de genealogia. Groot é hoje uma referência no campo da História Pública.
André Lemos Freixo entrevista Jerome de Groot
“Estamos cercados por versões do passado. Nós as usamos, nós as lemos, nós nos envolvemos com elas. Acima de tudo, nós as consumimos”, afirma Groot, que é um dos líderes do projeto “Double Helix History”, sobre DNA, genealogia, ancestralidade e História, e autor do livro Consuming History: Historians and Heritage in Contemporary Popular Culture (“Consumindo História: historiadores e ancestralidade na cultura popular contemporânea”, ainda sem tradução para o português, publicado pela primeira vez em 2008), muito lido por aqueles que estudam e que fazem História Pública.
Em entrevista a André de Lemos Freixo, professor do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Groot dá a sua definição de História Pública, fala sobre o seu envolvimento com o público não acadêmico, sobre as práticas de genealogia que fazem sucesso hoje no mundo inteiro, conectando pessoas a diferentes passados, e discute alguns aspectos sobre o “consumo da história”.
Além de autor de Consuming History, Groot também escreveu Remaking History: the past in contemporary historical fictions (2014) e The Historical Novel (2009).
Por que você escolheu trabalhar com História Pública? Como você define História Pública?
Para mim, as duas questões estão relacionadas. Eu não sou um historiador profissional. Minha formação acadêmica é na área de Letras, de modo que não estou preocupado com a história como “matéria”. Quando eu comecei a trabalhar com História Pública, eu não fazia ideia que uma disciplina assim existia (de verdade!). Eu simplesmente tinha a impressão de que a história estava acontecendo em público e que precisávamos prestar atenção nisso. Eu percebia que existia um enorme interesse pelo passado, mas a maioria dos meios de apresentação deste passado às pessoas não era compreendido pelos historiadores acadêmicos. Eu comecei, então, a me interessar por versões do passado apresentadas na televisão e em filmes, e a me preocupar com o fato de que os historiadores aparentemente não estavam muito envolvidos com o tipo de história que está acontecendo fora dos meios especializados.
Eu comecei então a pensar nas formas como nós “consumimos” o passado, isto é, como utilizamos o passado em nossas vidas e os meios que empregamos quando efetivamente pagamos para usá-lo. Quanto mais eu procurava, mais eu encontrava: de lojas de souvenirs de museus até propaganda comercial, dos argumentos políticos aos filmes de Hollywood. História é consumida, lida, interrogada, usada, pensada e debatida em milhões de lugares. O trabalho que fiz me obrigou a pensar cuidadosamente sobre a terminologia que empreguei. O que é “história”, afinal de contas? A quem ela pertence, quem a escreve, que a faz e quem a usa? Essas são questões fundamentais. Tornou-se mais e mais claro nos últimos cinco anos que o papel da história em nossas vidas é mais preocupante, e que precisamos participar da crítica a esse fenômeno a fim de oferecer alternativas.
Existem muitas definições para a ideia de “História Pública”. Para mim, História Pública é o estudo do modo como a história funciona e é compreendida culturalmente e como é usada em comunidades. Esta minha definição também está interessada no relacionamento entre essa abordagem e a história social, a história identitária e a história do cotidiano. Eu também mudei consideravelmente minha perspectiva, ao longo do tempo em que trabalho nesta área, em função do escopo internacional dos meus estudos. Comecei trabalhando com materiais basicamente do Reino Unido e dos EUA. Hoje acredito que precisamos pensar internacionalmente e transnacionalmente se quisermos considerar história como algo que funciona tanto localmente quanto globalmente. Também me tornei mais engajado politicamente e os debates sobre raça, etnicidades, identidades e ancestralidades indígenas, nacionalidades, valores culturais e identitários tornaram-se temas centrais para minhas discussões.
Em 2009, você publicou o livro “Consumindo História” (Consuming History). Fale sobre o fenômeno do consumo de história na contemporaneidade.
Estamos cercados por versões do passado. Nós as usamos, nós a lemos, nós nos envolvemos com elas. Acima de tudo, nós as consumimos: nós as compramos, assistimos, lemos. Elas nos conectam ao fenômeno global da passadidade (pastness), bem como nos lembram de nossas particularidades locais.
Meu argumento, na verdade, se divide em dois. Primeiramente, enquanto cidadãos e acadêmicos, nós precisamos admitir esse uso do passado e nos conscientizar do impacto da história popular sobre a imaginação histórica. Isso é muito profundo. O modo como um cidadão pode imaginar o passado, e sua relação com ele, é enormemente importante. As ferramentas de que dispõem para fazer isso não são neutras ou aleatórias. O modo como somos ensinados a pensar sobre o passado é central, seja por um professor ou por um jogo.
Meu segundo argumento, ligado ao primeiro, diz respeito à “historiografia popular”. Penso que textos populares, de todos os tipos, permitem pensar sobre história. Eles nos ensinam, sim, e nos proveem de conteúdos para visualizar como seria a China do século XIX, por exemplo, ou o que aconteceu na França em 1789. Ademais, textos populares também nos oferecem caminhos alternativos de compreensão do passado a ser construído. Permitem-nos intuir sobre os modos como o passado é produzido, escrito, imposto; e eles nos dão ferramentas para criticar essa estrutura. De modo que a “historiografia popular” pode ser emancipadora, uma vez que textos históricos de todos os tipos permitem que um usuário/ leitor/ jogador desafie pensamentos históricos normativos e reconheçam que o passado é interpretado e produzido para nós de muitas maneiras, seja por cineastas ou pelos próprios historiadores.
O projeto “História de Dupla Hélice” (Double Helix History) tematiza como as pesquisas sobre DNA impactaram a compreensão de certos imaginários históricos na contemporaneidade. No Brasil, ainda não é muito comum encontrar historiadores trabalhando com este tipo de objeto. Fale um pouco mais sobre sua pesquisa e experiência nesse projeto.
Estou interessado em como as pessoas compreendem seu passado, e me interessei nos últimos dois anos no modo como estamos começando a entender o passado através do prisma da Genética. Um exemplo simples pode ser encontrado nos testes genéticos pessoais de ancestralidade e etnicidade. Isso é muito comum – cerca de 20 milhões de pessoas em todo o mundo já realizaram esse tipo de teste. Pessoas, então, se ligam aos seus passados através de uma “maquiagem” genética, sendo informadas que elas possuem conexões com diferentes países e pessoas devido ao seu código genético. Elas são encorajadas a se conectar com outros e a escrever suas próprias narrativas de acordo com esse dado. Esse é também um bom exemplo de consumo da história, uma vez que estas 20 milhões de pessoas pagaram pelo acesso ao seu passado genético, e as companhias que vendem esses serviços cresceram imensamente.
A genealogia genética pessoal pode ser um grande meio de demonstrar como nós conhecemos a nós mesmos em relação ao nosso passado de modo diferente na era pós-genômica. Claramente, compreendemos o “ser humano” de forma diferente, tanto no agora (podemos “ler” a nós mesmos de maneira diferente) quanto no passado (DNA antigo significa que podemos compreender o homo sapiens diferentemente). Por conseguinte, se entendemos o “ser humano” de forma diferente, então sua relação com o passado também pode ser compreendida diferentemente. Que tipos de passados poderemos escrever a partir desse novo conhecimento genético? Como isso pode alterar o modo como pensamos sobre nós mesmos?
Um bom exemplo aqui seria o filme X-Men: Dias de um futuro esquecido, que representa a ansiedade sobre genética enquanto narra um conto histórico sobre os Estados Unidos da América pós-Vietnã, ao mesmo tempo em que propõe um possível desafio à linearidade e à ordem temporal. Se isso soa elaborado demais, o que quero dizer é que se o filme joga com a noção de tempo e com a nossa experiência da história, é porque nossa compreensão do humano – através da nova ciência genética – já foi colocada em um estado de fluxo.
Minha experiência de pesquisa sugere, portanto, que: a) nós não sabemos basicamente nada sobre genética (ou seja, estamos apenas na ponta do iceberg); b) cientistas adoram metáforas e devemos estar cientes disso quando eles descrevem as coisas; e c) a ciência se move rapidamente, mas já existem aspectos da ciência genômica que estão sendo interditados política e economicamente e nós precisamos estar cientes disso também.
Você está habituado a falar para amplas audiências de não especialistas. Como se sente ao falar diante destas audiências?
Eu adoro falar para não especialistas. É aí que o verdadeiro trabalho acontece, não? Se estou interessado pela história acontecendo fora da academia, então o objetivo central é falar para essas audiências. Pode ser muito difícil, particularmente do ponto de vista colaborativo. Nós precisamos reconhecer que todos no grupo tem algo a dizer, e que você não está ali para simplesmente dizer coisas às pessoas, mas sim para facilitar e apresentar ideias. Eu nunca vi razão em simplesmente descarregar informações nas pessoas. Eu prefiro fazer uma série de sugestões e observar onde chegamos em grupo a partir delas. Isso tem sido bastante fácil com o material sobre genética, uma vez que eu, definitivamente, não sei o bastante para ser um especialista nessa matéria. Eu não sou um cientista, então eu trago ideias e abro para discussão, particularmente sobre bioética e privacidade, e conseguimos ter bons debates.
Que desafios éticos você diria que os historiadores enfrentam quando passado e história vêm a público?
Estes desafios éticos estão se tornando mais agudos. Na verdade, creio que ética é o maior assunto e desafio para qualquer um que atue no campo da história na contemporaneidade. Primeiramente, há os desafios políticos – para quaisquer pessoas trabalhando com história ou na história, nós hoje reconhecemos que não atuamos no vácuo e nossos trabalhos têm consequências políticas. Nos EUA, Reino Unido, Brasil, Índia, Austrália, Japão – para onde quer que nos voltemos, a história está sendo distorcida e erroneamente utilizada para a defesa de agendas de que discordo muito. História nunca é neutra, e os modos nos quais ela funciona não podem nunca ser “normais”. De modo que temos a responsabilidade de vigiá-la cuidadosamente. Fui lembrado disso quando eu estive pela primeira vez na Rússia. Até aquele momento, eu achava que o meu trabalho era apenas uma boa discussão sobre filmes e televisão, mas ele foi interpretado por colegas russos como sendo útil para eles e seu desafio a poderosas vozes políticas. O ponto deles era que no escrutínio dos usos e efeitos da história, nós começamos a questionar para quem ela havia sido feita e o seu porquê. É parte da minha própria sorte e privilégio, enquanto acadêmico ocidental, que eu não tivesse percebido isso antes, e desde então eu tento manter isso sempre em mente.
Há uma ética e um dever de abordar o mundo e o nosso trabalho corretamente, mas também de reconhecer nossas próprias inclinações éticas e políticas. Eu sou enormemente privilegiado, tanto em termos de gênero quanto do meu contexto sociocultural, e eu estou totalmente consciente disso e tento, ao reconhecê-lo, mitigar isso o máximo que eu posso. Temos de estar conscientes de que a “história” é ela própria ideológica, racional, ocidental, uma construção colonial, e que os modos como esses discursos enquadram nosso pensamento é altamente problemático. Precisamos reconhecer que “história” tem sido um discurso profundamente problemático, bem como reconhecer as inclinações e problemas dentro de contextos institucionais nos quais trabalhamos.
Eu acho que nós precisamos pensar cuidadosamente também sobre história politizada que achamos de mau gosto. No Reino Unido e nos EUA, por exemplo, história tem sido usada por movimentos de extrema direita para justificar intervenções políticas. Acho que precisamos reconhecer como isso funciona e como podemos combater isso.
Jerome de Groot é Professor de Literatura e Cultura na Universidade de Manchester (UK). Ele é também historiador público com o projeto “Double Helix History” sobre DNA, Genealogia, Ancestralidade e História. Ele é autor dos seguintes livros (todos ainda sem tradução para o português): Consuming History: Historians and Heritage in Contemporary Popular Culture (2008/segunda edição 2016); Remaking History: the past in contemporary historical fictions (2014); e The Historical Novel (2009).
Andre de Lemos Freixo é Doutor em História (PPGHIS/UFRJ, 2012), Mestre (PPGHIS/UFRJ, 2008) e Bacharel com Licenciatura (UFRJ, 2006) em História. É Professor Adjunto no Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Tem como áreas de interesse: História da Historiografia Brasileira, História do Brasil Republicano, História Pública, Teoria e Filosofia da História. Foi coordenador do Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM/UFOP) no biênio 2014-2016.
Revisão técnica e edição: Bruno Leal e Ana Paula Tavares.
Como citar essa entrevista
GROOT, Jerome. Consumindo História: genealogia, História Pública e outros engajamentos com o passado (Entrevista). Entrevista concedida a André de Lemos Freixo. In: Café História – História feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/historia-publica-consumindo-historia/. Publicado em: 12 ago. 2019.