Em seu sentido mais simples, História Pública se refere à atuação dos historiadores e do método histórico fora da academia: no governo, em corporações privadas, nos meios de comunicação, em sociedades históricas e museus, até mesmo em espaços privados. Os historiadores públicos estão atuando em todos os lugares, empregando suas habilidades profissionais, eles são parte do processo público. Uma questão precisa ser resolvida; uma política pública precisa ser elaborada; o uso de um recurso ou uma atividade precisa ser melhor planejada – eis que os historiadores serão convocados para trazer à baila a questão do tempo: isso é História Pública.
A proposta surgida na Califórnia tinha a ver principalmente com a crise de empregabilidade que atingia os recém-formados na época, especialmente no setor público. Onde mais, para além da sala de aula, poderia atuar o formado em história? A História Pública, neste sentido, poderia ajudar a ampliar o leque de possibilidades. Embora alguns historiadores tenham criticado o projeto como corporativista, a História Pública prosperou nos anos seguintes. Ela fez enorme sucesso em países como Austrália, Nova Zelândia, Canadá e Inglaterra, energizando e sendo energizada por debates que envolviam desde patrimônio histórico até os passados sensíveis de populações nativas. Atualmente, há dezenas de mestrados em História Pública, especialmente nos Estados Unidos e Austrália.
No Brasil, a História Pública conheceu um verdadeiro boom nos últimos cinco ou seis anos. Para isso, muito contribuiu o Curso de Introdução à História Pública, oferecido na Universidade de São Paulo, em 2011, pelo Núcleo de Estudos em História da Cultura Intelectual, então coordenado pela professora Sara Albieri. O curso gerou um livro pioneiro (que é a primeira indicação desta bibliografia) e inspirou o 1o Simpósio Internacional de História Pública, realizado também na USP (desde então, já foram realizadas mais duas edições). Em 2012, foi fundada a Rede Brasileira de História Pública (RBHP).
Definir História Pública?
Não é tarefa das mais simples definir o que vem a ser História Pública. Seria ela uma metodologia, um campo, um objeto de estudo ou uma subárea da História? Somente o historiador estaria autorizado a fazer História Pública ou o “grande público” também participaria da elaboração desta História? Diferentes autores, em diferentes obras e a partir de diferentes perspectivas, concorrem a fim de oferecer respostas para essas e outras questões. Particularmente, eu entendo a História Pública como uma forma do historiador profissional engajar diferentes públicos não-especialistas com o conhecimento histórico, de forma crítica, participativa e emancipatória, utilizando para isso os mais diversos recursos tecnológicos e metodológicos. A História Pública, desta forma, tem muitas moradas. E nisso, ao que me parece, os historiadores parecem concordar: entende-se, hoje, que ela pode (e deve) ser feita nas ruas, na mídia, nos museus, nas galerias, nos arquivos, nas escolas, nas bibliotecas e até mesmo no interior de organizações privadas.
Independente da sua adesão ou não às breves – e certamente limitadas – definições acima arroladas, são dois os objetivos desta Bibliografia Comentada: provocar a curiosidade do leitor quanto a História Pública e oferecer alguma ajuda para aqueles que buscam começar os seus estudos nesta área. Espero que você possa desfrutar das indicações que seguem adiante e que, a partir dessas leituras, possa tornar-se o próximo historiador público.
Introdução à História Pública, organizado por Juniele Rabêlo de Almeida e Marta Gouveia de Oliveira Rovai (Letras e Voz, 2011) – Há dois livros que podem ser considerados essenciais para o leitor brasileiro interessado em História Pública. Este é um deles. Lançado em 2011, a coletânea organizada por Rabêlo e Rovai é a primeira obra especializada em História Pública publicada no Brasil. Antes dela, era preciso buscar referências em outras línguas, sobretudo em língua inglesa. Como o próprio título deixa claro, trata-se de um livro de natureza introdutória. Ele é dividido em três partes: “História Pública, Perspectivas Globais”, “Dimensões da Oralidade na História Pública” e Experiências em História Pública”. São 13 artigos no total, além da introdução de Sara Albieri, “História Pública e consciência histórica”. De todos os artigos, o mais citado na base do Google Acadêmico é aquele escrito por Jill Liddington, “O que é história pública?”. A escolha justifica-se. Liddington oferece algo que faltava no Brasil até então: um bom panorama sobre a História da História Pública. A presença de vários historiadores orais entre os autores do livro evidencia como a entrada da História Pública no Brasil deve muito ao campo da História Oral.
História Pública no Brasil – sentidos e itinerários, organizado por Ana Maria Mauad, Juniele Rabêlo de Almeida e Ricardo Santhiago (Letras e Voz, 2016) – Este livro é a outra leitura que eu acredito ser essencial para o leitor brasileiro interessado em História Pública. “História Pública no Brasil” é um voo de maior fôlego se comparado ao livro anterior. Além de trazer mais artigos (23 artigos, no total, além de uma introdução e um posfácio), ele foca no debate sobre as experiências e reflexões sobre História Pública realizadas no Brasil. Cinco anos o separam do lançamento de “Introdução à História Pública”. Nesse tempo, o debate sobre a História Pública ganhou força no país, despertando a atenção de estudantes, professores do Ensino Básico e pesquisadores acadêmicos. A densidade de “História Pública no Brasil” reflete esse crescimento. Um artigo muito interessante é o de Benito Bisso Schmidt, que discute os desafios de aplicar o rigor acadêmico a um trabalho de curadoria para o grande público, em Porto Alegre. Modéstia à parte, também gostaria de recomendar o artigo que o autor que vos fala escreve com Anita Lucchesi, “História Digital: reflexões, experiências e perspectivas”. “História Pública no Brasil” aborda ainda o Ensino de História, as políticas públicas e o uso do espaço público.
Public History: a Practical Guide, de Faye Sayer (Bloomsbury, 2015) – Este livro é um dos mais didáticos e completos para quem está começando a explorar o território da História Pública. O modo como ele é dividido ajuda bastante neste sentido. No início de cada capítulo, há um pequeno sumário onde o autor indica todos os pontos que serão abordados. No primeiro capítulo, por exemplo, Sayer discute: 1. Contexto da História Pública; 2. Tipos de História Pública; 3. Definições de História Pública; 4. A História da História Pública; 5. Os Debates sobre História Pública. Eu diria que o leitor encontra exatamente aquilo que comprou: um guia. De maneira simples, mas sem ser superficial, Sayer explora o que é (ou o que pode ser, melhor dizendo) História Pública, como ela se desenvolveu e quais mecanismos e ferramentas podem ser usados para se fazer História Pública. O livro discute ainda o desenvolvimento de projetos de História Pública em museus, bibliotecas, arquivos e outros centros de “preservação” da memória e patrimônio, além de destacar o uso das novas mídias nesses projetos e a importância da História Pública na educação e no desenvolvimento de políticas públicas. Ao final, o leitor encontra um glossário bastante interessante. Você sabe, por exemplo, o que é disneyficação? Segundo Sayer, o termo refere-se à “transformação da história para propósito de entretenimento. Trata-se ainda do processo de esterilização, falsificação e simplificação da História para o consumo da história para o grande público”. Você encontra a versão e-book do livro na Amazon Brasil por R$ 97,00. O investimento vale cada centavo.
A Shared Authority: Essays on the Craft and Meaning of Oral and Public History, de Michael Frisch (State University of New York Press, 1990) – Este livro do historiador oral Michael Frisch possui quase 30 anos e tem sido uma referência importante para os estudiosos da História Pública. Na obra, Frisch elabora o conceito de shared authority, (em português, “autoridade compartilhada”), utilizado para se referir a um processo de elaboração do conhecimento histórico no qual o historiador e as “pessoas comuns”, isto é, pessoas sem formação em história, atuariam em conjunto. Em outras palavras, Frisch, a partir de sua experiência com entrevistas de História Oral, acredita que as pessoas não precisam ser apenas consumidoras das narrativas historiográficas, mas podem ser participantes destas narrativas. A partilha desta reponsabilidade não é simplesmente, contudo, uma decisão do historiador, que decide ou não, a partir de um gesto de benevolência, compartilhar sua autoridade – essa autoridade, diz Frisch, é algo que já é compartilhado. Daí o título do livro ser “uma autoridade compartilhada” e não “autoridade compartilhada”. O que está em jogo para o autor é maneira como as instituições e os historiadores estão abertos para aceitar essa dinâmica. Um museu, por exemplo, pode ou não convidar seus visitantes para compartilharem suas histórias e impressões sobre as coleções que estão expostas. Você pode ler um trecho do livro no Google Books.
Crítica literária: em busca do tempo perdido, de João Cezar de Castro Rocha (Argos, 2011) – Formado em História, mas com uma consolidada carreira acadêmica construída na área de Letras, Rocha, que é hoje professor titular de Literatura Comparada na UERJ, não escreve sobre História Pública, mas oferece neste livro recursos interessantes advindos do campo vizinho para se pensar o conceito de público e de narrativa, fundamentais, como já sabemos, na reflexão sobre a atuação do historiador fora da academia. Há dois debates no texto de Rocha que nos interessam particularmente. O primeiro deles diz respeito ao debate entre a “academia” (os professores universitários) e o “rodapé” (intelectuais, especialmente críticos literários, que escreviam para o grande público na imprensa). Rocha propõe recuperar a importância do “rodapé” como espaço de atuação de mediadores culturais, figura esta que foi desqualificada em detrimento da institucionalização universitária dos estudos literários. O segundo debate de Rocha que eu destaco refere-se ao conceito de “esquizofrenia produtiva”, definido pelo autor como a possibilidade de “aprender a ser bilíngue em seu próprio idioma, aprendendo a lidar com audiências diversas, ampliando assim o registro da própria fala”. Rocha pretende, desta forma, estimular o especialista acadêmico, não necessariamente da teoria literária, a tentar uma nova forma de diálogo com o público. Conforme sublinha, “necessitamos estreitar os laços entre a produção do conhecimento e a apropriação do saber pela sociedade”.
Além desses cinco livros, será lançado em novembro de 2017 o livro History Comes Alive: Public History and Popular Culture in the 1970s, de M.J. Rymsza-Pawlowska. Vale a pena ficar atento a este lançamento. O livro discute o engajamento do público americano durante as comemorações do bicentenário da Independência dos EUA, em 1976 – tanto o ebook quanto o livro físico já estão em pré-venda na Amazon Brasil. Também já está disponível em pré-venda, na Amazon, The Oxford Handbook of Public History, editado por James B. Gardner e Paula Hamilton. Com mais de 500 páginas, o livro promete aprofundar não somente o debate teórico-conceitual sobre História Pública, mas também falar sobre métodos, fontes e experiências práticas no campo. Finalmente, para quem quiser começar por um artigo gratuito e em língua portuguesa, recomendo bastante a leitura de História Pública Digital, de Serge Noiret, do Departamento de Biblioteconomia da European University Institute, especialista em História Pública que vem, nos últimos anos, estreitando os laços com os historiadores brasileiros.
Como citar essa Bibliografia Comentada
CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. História Pública: uma breve bibliografia comentada. (Bibliografia Comentada). In: Café História – história feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/historia-publica-biblio/. Publicado em: 6 nov. 2017. Acesso: [informar data].
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