Nas cidades modernas, nossa relação com a vizinhança costuma ser cheia de tensões. Há vizinhos que escutam música alta, outros que fazem festas varar pela madrugada; há aqueles que não respeitam áreas comuns e os que são incapazes de dar um simples bom dia no elevador. Eu dei uma sorte tremenda: tenho como vizinho uma pessoa muito tranquila e respeitosa, que é amigo e colega de trabalho, o historiador Tiago Santos Almeida, especialista em história das ciências.
Almeida entrou na Universidade de Brasília no começo de 2020, pouco depois de mim, e nossos interesses convergentes – ele estudioso de história das ciências, eu pesquisador de história pública e divulgador científico – logo nos levaram a desenvolver várias parcerias e colaborações. Essa entrevista é fruto dessa relação de vizinhança e de convergência historiográfica.
Aqui, contudo, nosso papo gira em torno de outro tipo de vizinhança: a que reúne a História e as ditas “ciências duras”. Embora morem em um condomínio universitário, elas nem sempre se dão tão bem. A depender do autor e autora, e do momento que falamos, esse diálogo pode ser mais ou menos respeitoso, mais ou menos intenso, mais ou menos horizontalizado do ponto de vista do exercício do poder simbólico.
Para Tiago, contudo, a “História” e suas vizinhas de outros institutos não têm motivo para ignorarem umas as outras. Na verdade, a interlocução é benéfica para o desenvolvimento de todas, e para o nosso também, cidadãos. As ditas “ciências duras”, segundo Tiago, precisam da História, e os historiadores precisam também dessas ciências.
Tiago Santos Almeida é formado em História pela Universidade Federal de Sergipe. É mestre e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, com estágio-sanduíche no Centre de Philosophie Contemporaine da Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Foi professor colaborador e pesquisador de pós-doutorado (PNPD/CAPES) junto à Faculdade de História e ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás. Foi pesquisador visitante e docente colaborador do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia. É coordenador da Escola de História das Ciências da UnB e autor do livro “Canguilhem e a gênese do possível: estudo sobre a historicização das ciências” (2018) e organizador do livro “Historicidade e Objetividade” (2017), com artigos de Lorraine Daston. É editor Associado de Transversal: International Journal for the Historiography of Science, membro do conselho editorial da Revista de Teoria da História, da UFG, e da equipe editorial da revista História, Histórias, do PPGHIS-UnB. Na UnB, coordena o projeto de extensão “Escola de História das Ciências”, além dos projetos de pesquisa “História das Ciências e Letramento Científico” (PIBIC) e “Conhecimentos, técnicas e tecnologias nas épocas moderna e contemporânea” (PIBIC – Ensino Médio), o último em parceria com a Professora Marina Thomé Bezzi.
Ciências como a biologia, a astronomia, a física, a química, dentre outras que nos ensinam sobre o mundo e da vida, precisam da História? Por quê?
Precisam, sim. Mais do que uma simples informação sobre o passado, ou mesmo de um componente curricular para uma formação humanística desejável para os cientistas, a história das ciências é um fator de dinamização do pensamento científico, podendo impulsionar a produção de novos conhecimentos. Os cientistas não podem se limitar a conhecer a explicação atualmente aceita de um fenômeno, ou cairão numa espécie de “culto do fato”: é assim, porque é assim. Eles precisam saber como chegamos a essa explicação e porque descartamos teorias aceitas em outros tempos. Os motivos passam por questões teóricas, experimentais, observacionais etc., mas também por aspectos sociais, culturais, morais ou ideológicos que são constitutivos das ciências, mesmo daquelas consideradas mais “duras”.
Conhecer bem a história das ciências é fundamental tanto para a pesquisa quanto para a comunicação com o público (incluindo agentes políticos) e para o ensino daquelas ciências. De fato, na primeira metade do século passado, a entrada dos conteúdos de História das Ciências nos currículos escolares e, em seguida, a sua constituição como disciplina universitária autônoma, teve como ponto de partida o reconhecimento da sua relevância para o ensino de ciências. Isso se deu num período da história marcado por novidades científicas, como a teoria da relatividade e a mecânica quântica, que desafiavam de maneira radical a nossa percepção cotidiana do mundo, mas também os hábitos ou paradigmas do pensamento científico vigentes até então.
Na França, um dos grandes responsáveis pela introdução do ensino de História das Ciências nos currículos escolares foi Georges Canguilhem. Nos anos 40, Canguilhem, que era filósofo e historiador das ciências da vida e da medicina, ocupou o cargo de Inspetor Geral de Instrução Pública e defendeu que uma lição científica, fosse na biologia, na física ou em qualquer outra ciência, só poderia ser apreendida pelos alunos se o professor a apresentasse não como um simples fato, mas como a passagem histórica do “nem sempre soubemos” ao “agora sabemos”. Canguilhem acreditava que a explicação histórica das diferentes teorias, mostrando sua “edificação difícil, contrariada, retomada e retificada”, rompia com a visão dogmática das ciências e favoreceria a construção de uma verdadeira “cultura científica”. Hoje, Canguilhem talvez defendesse a importância da História das Ciências para o “letramento científico”, uma competência que deve ser desenvolvida na escola e que é fundamental para a formação de todos os cidadãos, e não apenas dos cientistas.
Por todos esses motivos, é comum encontrarmos disciplinas de história da física, história da biologia, história da química etc. como parte dos currículos universitários dessas formações específicas. É preciso dizer, no entanto, que, às vezes, essas disciplinas são ministradas por professores com excelente formação científica, mas sem nenhum treinamento histórico, que apresentam a história como uma narrativa heroica da sua ciência, ou como algo bastante superficial, não muito diferente de uma simples cronologia de nomes, fatos e descobertas. É ingenuidade e amadorismo supor que um biólogo será necessariamente o melhor professor de história da biologia, ou que um médico será o melhor professor de história da medicina. Então, é preciso inserir essa nuance na minha resposta: sim, as ciências precisam de história, mas de uma história feita e ensinada por pessoas com o treinamento acadêmico necessário para isso. É o que defende, por exemplo, o “Manifesto de Manchester sobre a História da Ciência e da Tecnologia”.
E os historiadores, eles também precisam da História das Ciências? No Brasil, são poucos os cursos de graduação em História que oferecem a disciplina.
No começo do século XX, a História das Ciências era praticada sobretudo por filósofos e cientistas, mas, já nos anos 30, Hélène Metzger, uma das historiadoras mais interessantes e injustiçadas do período, dizia, embora fosse química de formação, que uma boa história das ciências deveria ser escrita a partir dos métodos da historiografia profissional. De fato, nas décadas seguintes, os historiadores das ciências com formação filosófica ou científica se tornaram mais sensíveis aos debates teóricos e metodológicos da historiografia profissional. Canguilhem, por exemplo, leu com bastante atenção e aprendeu muito com os trabalhos dos fundadores dos Annales, Marc Bloch e Lucien Febvre. Há aproximações muito interessantes entre os trabalhos de Febvre e de Alexandre Koyré, um dos maiores historiadores das ciências do último século. Fora da França, Thomas Kuhn, que todos conhecem por conta do conceito de “paradigma” e do livro A estrutura das revoluções científicas, foi professor de História das Ciências em departamentos de História, embora ele mesmo fosse físico. Mas esses fatos não formam um “quadro geral” da posição da História das Ciências na historiografia do período.
Foi só a partir dos anos 80, mais ou menos, que a História das Ciências se estabeleceu como uma disciplina de historiadores profissionais. Isso tem muito a ver com a chamada “virada cultural” da historiografia, que mostrou que os historiadores profissionais poderiam se beneficiar de soluções encontradas pelos historiadores das ciências para a articulação entre as representações do mundo, as tecnologias e os diferentes saberes ou conhecimentos de uma época. Para o historiador francês Roger Chartier, que foi diretor do Centro Alexandre Koyré, na França, foram os trabalhos dos historiadores das ciências que elaboraram as melhores explicações para os processos de transformação ou de passagem de um sistema de representação a outro e, de maneira mais geral, encontraram as melhores explicações para as relações entre as obras de pensamento e a sociedade, que talvez tenha sido a principal dificuldade da história social das ideias.
No começo dos anos 80, Michel Foucault dizia que se os Annales não se interessaram de forma sistemática pelos trabalhos dos historiadores das ciências, foi por conta de uma interpretação limitada sobre o que poderia ser objeto da história e de um equívoco ainda maior acerca da relação entre as ciências e a sociedade. Os historiadores estavam acostumados a pensar as ciências como um produto das sociedades, quando, na verdade, segundo Foucault, deveriam considerá-las como fatores constitutivos da história. E, de fato, alguém negaria que, hoje, praticamente todos os aspectos da nossa vida em sociedade são atravessados, quando não determinados, pelas ciências e pelas tecnologias? Então, essa mudança apontada por Chartier e Foucault na compreensão da relação entre ciência e sociedade parece ter sido o fator decisivo para a transformação da História das Ciências numa disciplina verdadeiramente histórica, numa disciplina que conquistou o seu “direito de cidadania” nos departamentos de História. Mas esse é um processo recente e talvez isso ajude a explicar por que, no Brasil, são poucos os cursos de História que oferecem a disciplina de História das Ciências de maneira regular. Podemos contar nos dedos de uma mão aqueles que a oferecem como disciplina obrigatória.
A situação do ensino de História das Ciências nos nossos cursos de graduação em História se torna ainda mais desconcertante diante do fato de que, na pós-graduação, a história das ciências é um campo em contínuo crescimento no Brasil. Temos programas de pós-graduação exclusivamente dedicados à história das ciências, além de programas de pós-graduação em história com linhas de pesquisa que formam excelentes historiadores das ciências. Também temos revistas específicas da área muito bem avaliadas, associações nacionais e locais muito ativas, eventos científicos muito estimulantes e consolidados no calendário nacional, além de uma produção bibliográfica que, por sua quantidade e qualidade, situa o Brasil numa posição de destaque no cenário mundial da historiografia das ciências. Olhando para tudo isso que já produzimos e considerando a relevância das ciências e das tecnologias para a constituição do presente e para a preparação do futuro das nossas sociedades, acho lamentável essa escolha, feita pela quase totalidade de nossos departamentos, de deixá-las de fora da formação dos historiadores do século XXI.
Recentemente, o historiador da ciência James Poskett defendeu em seu mais recente livro, Horizons, A Global History of Science, uma história global e não eurocêntrica da ciência. Para ele, é preciso ensinar uma história da ciência que contemple a dimensão global dos cientistas que mais conhecemos, como Newton e Einstein, mas que destaque as contribuições de cientistas que estiveram à margem do e no Ocidente. Como você vê essa relação entre história global e história da ciência?
Precisamos ter cuidado com certas narrativas sobre a historiografia das ciências que dizem que os primeiros autores do campo só se interessavam pela Europa. Alexandre Koyré, por exemplo, muitas vezes acusado de eurocêntrico por pessoas que nunca leram seus livros, sempre ressaltou a importância da ciência árabe-islâmica para a história da física e da astronomia.
Mas é verdade que, em outros autores, mesmo o interesse pela dimensão global da ciência pode permanecer eurocêntrico. Um historiador, reivindicando uma perspectiva global, poderia se interessar pelas “contribuições” das culturas não ocidentais para a formação da ciência moderna (europeia), enquanto um terceiro se interessaria pela difusão da ciência moderna (europeia) para as outras regiões do planeta que não reuniram as condições para fazê-la nascer. Nos dois casos, esses historiadores hipotéticos precisariam conhecer um pouco da história da Ásia, da África e da América Coloniais. Mas suas respostas apenas reforçariam a ideia que está na origem das suas investigações: a ciência, como um empreendimento racionalmente universal, é uma conquista europeia, ainda que tenha contado com uma “ajudinha” dos países não ocidentais.
O historiador das ciências indiano Kapil Raj fez algumas das críticas mais contundentes ao caráter ideológico daquelas histórias, ou, melhor dizendo, do seu pressuposto comum. Em “Além do Pós-colonialismo… e Pós-positivismo. Circulação e História Global da Ciência”, um artigo bem famoso na área, publicado dez anos atrás, Raj mostrou como aquela perspectiva sobre o triunfo da Europa na corrida científica, supostamente devido à sua capacidade de organização das contribuições do Ocidente e do Oriente num sistema racional coerente e universalizável, se constituiu como um perigoso pressuposto historiográfico. Como alternativa ao modelo de difusão-recepção que organizava algumas histórias globais das ciências, Raj propôs a ideia de “circulação” como método de análise, buscando enfatizar a capacidade de intervenção dos diferentes atores no processo dinâmico de produção das práticas e conhecimentos científicos modernos.
Sem deixar de considerar as relações e assimetrias de poder entre colonizadores e colonizados, a “circulação” ajudou a romper com a ideia de uma Europa ativa e um mundo colonial passivo, ou seja, uma Europa que produz conhecimentos racionais e os difunde (ou impõe) em direção a culturas não científicas ou periféricas, e ajudou a romper com a própria ideia de “ciência ocidental moderna”. Em minhas aulas, também costumo indicar o artigo “Conexões, cruzamentos, circulações. A passagem da cartografia britânica pela Índia, séculos XVII-XIX”, no qual Raj mostra a importância das práticas indianas pré-coloniais de agrimensura para a formação da cartografia moderna. Ele insere esse estudo na família das modalidades historiográficas conhecidas como “história conectada” e “história cruzada”.
Falando ainda sobre escrita da história das ciências. Tenho visto historiadores questionando as “representações clássicas” da “Revolução Científica”, que viam o fenômeno como uma ruptura, de ordem racional, em relação às “superstições medievais”. Aquilo que aprendemos na escola sobre o tema está sendo repensado?
Essa ideia de “Revolução Científica” como uma grande ruptura com o pensamento medieval, que faz do nascimento da ciência moderna o acontecimento constitutivo de uma época – a época moderna –, é uma tese filosófica, encontrada em livros como The Metaphysical Foundations of the Modern Physical Sciences (1924), de E. A. Burtt, Science and the Modern World (1925), de Alfred N. Whitehead e The Origins of Modern Science, 1300–1800 (1949), de Herbert Butterfield.
Sua crítica mais recente está vinculada à perspectiva globalizada e às críticas pós-coloniais, bem como à aproximação entre História das Ciências e História do Conhecimento. Para esses críticos, a Revolução Científica era uma grande narrativa que explicava como o Ocidente venceu todas as outras regiões do planeta na corrida pela modernidade e, ao mesmo tempo, delimitava o campo de atuação dos historiadores das ciências: eles deveriam estudar aquilo que preparou, que derivou ou que se assemelhava à ideia moderna de ciência.
Mas é preciso ter cuidado para não exagerarmos na originalidade e no alcance dessas críticas contemporâneas. Koyré, um dos grandes responsáveis pela constituição da Revolução Científica como objeto historiográfico, nunca pretendeu que essa revolução fosse um fenômeno compartilhado por todas as ciências, ao mesmo tempo. Para ele, esse é um acontecimento restrito à história da física e da astronomia, enfim, às ciências matematizadas. Isso porque, embora aquela ideia de uma Revolução Científica geral parecesse implicar uma perspectiva descontínua do tempo, esse tempo permanecia único, singular. É uma ideia de tempo que vem do positivismo, no século XIX, segundo a qual todas as ciências estariam na mesma marcha de desenvolvimento. Koyré, como outros historiadores de sua geração, trabalhava com a ideia de “multiplicidade temporal”, afirmando que cada ciência tem a sua historicidade própria e que, portanto, em alguns casos, havia descontinuidade com o pensamento medieval, enquanto em outros, haveria continuidades muito claras.
Ainda que um pouco genéricas e até injustas em relação a alguns dos trabalhos mais “clássicos” da historiografia das ciências, aquelas críticas à tese de uma Revolução Científica generalizada trouxeram importantes contribuições teórico-metodológicas para a área. A ideia de Revolução Científica estava associada ao modelo de história das ciências enquanto história das teorias científicas, com certo interesse pela ciência experimental. Os historiadores das ciências atuais se interessam por outros objetos, como a história dos impressos e dos gêneros textuais das ciências, as práticas de medição e de observação, os instrumentos, as ilustrações científicas, os lugares das ciências, que não se limitam mais ao laboratório e ao observatório modernos, mas incluem os jardins, as forjas, os navios etc. Com isso, a ideia de Revolução Científica parece ter perdido a sua força e até caído em desuso. Mas velhos hábitos são difíceis de morrer e muitos críticos da Revolução Científica foram treinados como historiadores das ciências a partir da grande narrativa construída em torno e a partir dela. Por isso continuamos a ver histórias globais escritas a partir daquela perspectiva eurocêntrica, como mencionei a propósito da crítica feita por Kapil Raj. Essa talvez seja a principal dificuldade dos historiadores das ciências contemporâneos: encontrar uma nova explicação histórica global que substitua a grande narrativa da Revolução Científica.
Durante a pandemia, a ciência teve um papel importantíssimo na busca pela vacina, por novos tratamentos contra a Covid e contra a maré negacionista. Mas uma coisa me incomodava: no meio disso tudo foi possível ver também, aqui e ali, uma compreensão de ciência bem à lá século XIX, isso é, um conhecimento utilitário, despolitizado e sinônimo de verdade superior. Acho que não enfrentamos esses discursos naquele momento porque isso poderia fortalecer o negacionismo. Mas parece-me importante problematizar esse fenômeno agora. O que você acha sobre isso?
Nos primeiros meses da pandemia, a historiadora das ciências Lorraine Daston comentou que nem todos precisamos ser cientistas, mas que, diante da situação presente e dos desafios por vir, todos deveríamos nos tornar cidadãos cientificamente letrados. Creio que a história das ciências é uma das principais ferramentas que temos à disposição para esse letramento científico da população, justamente porque ela rejeita essa imagem fria, inteiramente racional, despolitizada e desinteressada da ciência, ao mesmo tempo que afirma a validade do conhecimento científico.
Um erro muito comum é a suposição de que a história das ciências relativiza o valor da verdade científica. Entre os muitos falsos argumentos dos negacionistas, estava a ideia de que, se a ciência já esteve errada no passado, talvez estivesse errada agora, sobretudo a propósito das vacinas. Dessa maneira, segundo eles, a história das ciências, que é repleta de erros e de discordâncias entre os cientistas, mostraria que não devemos confiar nas ciências. Enquanto alguns cientistas buscaram refutar aqueles argumentos negacionistas simplesmente assumindo uma postura de superioridade intelectual, os historiadores desempenharam um papel importante nos debates públicos ao mostrar que as ciências são mais confiáveis do que outros tipos de conhecimento justamente devido à sua história, e não apesar dela.
A existência de uma história das ciências significa que essas ciências passaram por revisões, por correções, que elas abandonaram concepções antigas e elaboraram teorias socialmente aceitas como verdadeiras pela comunidade científica. Então, a verdade científica é um produto dessa historicidade das ciências. Era isso que Bachelard queria dizer quando afirmou, nos anos 50, que a principal característica da cultura científica contemporânea é que ela é formada por uma objetividade racional, uma objetividade técnica e uma objetividade social. E por isso Canguilhem dizia que só as falsas ciências não possuem história.
Assim, em vez de reforçar uma imagem de ciência fria, inteiramente racional, os historiadores das ciências, que estiveram muito presentes nas mídias nos últimos anos, foram incitados a refletir e a se manifestar sobre a questão da autoridade científica e a mediação entre políticos, cientistas e público diante da urgência da pandemia, que expôs aos olhos de todos a dinâmica de divergências, erros, desvios e recuos que é própria ao pensamento científico, mas que, até então, se desenrolava de modo mais discreto, nos espaços da ciência, nos congressos, nos periódicos especializados etc. Enfim, os historiadores falaram da ciência como esse empreendimento social, historicamente determinado, mas, ao mesmo tempo, merecedor de nossa confiança, ainda que não infalível.
Nós somos colegas de departamento, somos vizinhos, e eu sei, por isso, que você viu Oppenheimer, do Christopher Nolan. Conta aí, o que você achou do filme?
Eu gostei muito do filme. Nolan é um excelente diretor, e sou fascinado pela maneira como ele aborda a questão do tempo em filmes como Amnésia, A origem, Interstellar e Tenet. Depois de Dunkirk, que é um drama histórico também no contexto da Segunda Guerra, estava muito curioso para ver como ele trataria a questão da ciência por trás da bomba atômica. Acho que o filme consegue abordar de uma maneira muito interessante as questões éticas e políticas que envolvem a prática científica, além de mostrar aspectos que dizem respeito à história das teorias físicas no período.
A relação entre Einstein e Oppenheimer, por exemplo, é construída daquela maneira pelo diretor justamente para dar conta dessas diferentes questões. Nesse sentido, embora baseado numa história real, acho que Oppenheimer se insere numa tradição de filmes que buscam refletir sobre as implicações morais do desenvolvimento científico e tecnológico, tais como Solaris, de Andrei Tarkovski, Blade Runner, de Ridley Scott, ou Ela, de Spike Jonze. Entre os filmes recentes sobre biografias de cientistas, acho que Oppenheimer leva grande vantagem em relação a Radioactive, por exemplo, que trata de uma maneira bastante superficial a vida e a ciência de Marie Curie, ou, para ficar no contexto da Segunda Guerra, O Jogo da Imitação, sobre Alan Turing.
Como citar esta entrevista
ALMEIDA, Tiago Santos. “Os cientistas não podem se limitar a conhecer a explicação atualmente aceita de um fenômeno”. Entrevista feita por Bruno Leal Pastor de Carvalho In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/historia-das-ciencias-entrevista-com-tiago-santos-almeida/. Publicado em 4 set. de 2023. ISSN: 2674-5917.