Como o cinema está relacionado com a identidade do brasileiro? De que forma o professor pode transformar um filme em uma experiência didática enriquecedora no trabalho com os seus alunos, em sala de aula? Essas foram apenas algumas das questões que abordamos nesta entrevista exclusiva com a historiadora Meize Regina de Lucena.
Segundo explica Lucena, “a noção de documento foi totalmente repensada no século XX. Mas, com certeza, podemos verificar que a relação Cinema-História tem se modificado profundamente nos últimos trinta anos”.
Meize Regina de Lucena Lucas é mestre em História pela Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e é Doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com bolsa-sanduíche na Université Paris III. Sua tese levou o nome “Caravana Farkas – itinerários do documentário brasileiro” (2005). Atualmente, é professora do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC). Pesquisa cinema brasileiro, documentário e imprensa.
De onde vem o seu interesse pela História? E mais: o que é ser um historiador ou uma historiadora no mundo de hoje?
Desde jovem me interessei pela diversidade das sociedades, seja no tempo ou no espaço. Além disso, achava fascinante pensar na existência de parâmetros, valores e culturas distintas da nossa. Hoje e em qualquer tempo ser historiador é pensar a diversidade e as inúmeras possibilidades do humano. Dizer isso significa lidar muitas vezes com questões incômodas como o nazismo.
Sua última formação acadêmica foi na área de cinema. Nos últimos anos, o conceito de documento foi bastante ampliado, de forma que o audiovisual tem sido visto cada vez com mais interesse pelos historiadores. Que questões norteiam a relação História-Cinema e qual a importância desta relação, hoje, para a “escrita da história”?
A noção de documento foi totalmente repensada no século XX. Mas, com certeza, podemos verificar que a relação Cinema-História tem se modificado profundamente nos últimos trinta anos. Antes se tomava o filme como um documento para se pensar a sociedade que o produziu. Hoje pensamos também nas formas como a sociedade consumiu esse filme. E sabemos que ela não é única. Por outro lado, o filme passa a ser visto também como objeto próprio para a reflexão histórica. Podemos pensar, por exemplo, na importância da construção de imagens pelas cinematografias nacionais e a formação de sua cultura e identidades.
Atualmente, muitos professores de História levam filmes para a sala de aula. Muitos alunos, entretanto, se queixam de que seus professores apenas substituem a aula pelo filme. De que forma, o uso de filmes em aulas de História pode ser mais significativo e colaborar para uma melhor discussão de temas da História?
Esse é um assunto complexo, pois muitas vezes se busca um método de como usar o filme quando é necessário pensar o que é uma imagem, quais suas potencialidades e limites e, por fim, com que capacidades cognitivas trabalhamos quando usamos um filme ou um trecho de filme em sala. O filme constrói representações e isso precisa ficar claro assim como o fato de que os alunos pensam historicamente de acordo com a bagagem cultural que eles trazem de fora da sala de aula – filmes, jogos, revistas, livros, revistas, músicas – e que trabalham na escola por meio das aulas e dos livros didáticos. Precisamos saber o que queremos quando levamos um filme para sala: gerar discussão através de imagens (falo em imagem não em ilustração), de diálogos, de personagens ou de funções dramáticas? Não podemos esquecer que um filme, mesmo quando fala do passado, fala mais do seu tempo presente. Basta comparar os épicos americanos sobre Roma do passado com os de hoje. Se por uma lado se mantém a ideia de uma sociedade romana devassa, ociosa, por outro, nos dias de hoje mostra-se uma Roma bem menos asséptica e organizada. As questões também são outras. Os escravos e sua exploração pelos romanos saem de cena e dão lugar às lutas políticas e territoriais. Mas deixe-me dar um exemplo para falar do poder da imagem. Toda a primeira seqüência do filme o Gladiador permite ao professor explorar as formas de organização social que se encontram expressas no exército e a própria identidade cidadão-soldado que caracteriza a sociedade romana antiga. Não se trata de tomar a imagem como ilustração, mas de estimular uma capacidade pouco demandada na escola: o exercício do olhar.
O cinema brasileiro passou por diversas redefinições identitárias. Em artigo recente, você fala sobre o papel da imprensa na construção de uma “cultura cinematográfica do país em novas bases” a partir dos anos de 1950 . Que imagem foi essa e como a imprensa consolidou essa imagem?
A imprensa tem um forte papel na construção das cinematografias nacionais. Esse não foi caso único e exclusivo no Brasil. O que defendo é que naquele momento o cinema passou a ser reivindicado como uma instância que permitia pensar o país. E naqueles tempos, bem mais utópicos, analisar e pensar levavam à ação. Ao lado das revistas de fofoca ou de crítica cinematográfica, surge toda uma cultura que busca pensar teoricamente o cinema, avaliar historicamente a produção nacional e estabelecer novos critérios de crítica. Não basta dizer se a fotografia é boa ou se o roteiro é interessante. O cinema passa a ser considerado um elemento fundamental da cultura e uma forma de expressão artística. Nesse momento, temos o surgimento das primeiras revistas de cunho teórico, das cinematecas do Rio de Janeiro e São Paulo, a publicação dos primeiros livros de História do cinema brasileiro, a criação dos suplementos literários nos principais jornais do país e a retomada de uma febril atividade cineclubista. Ver um filme era antes de tudo ler, pensar e discutir cinematograficamente.
No início da experiência cinematográfica no Brasil, havia uma tensão entre o documentário (na época chamado de “filme natural” ou “atualidade”) e o filme de ficção. O que caracterizava essa tensão? Ela ainda existe hoje?
O Brasil se manteve nas telas em boa parte graças à produção dos filmes de não ficção – as atualidades, cinejornais e naturais. Difícil avaliar essa produção, pois pouco sobrou desses anos. Podemos identificar vários momentos dessa produção. Logo que surge o cinema, essas fitas foram bem recebidas e vistas com euforia pela novidade que representavam. Posteriormente, com a repetição de fórmulas e os problemas técnicos, passam a ser duramente criticadas. Nesse momento, surge o cinema de cavação. Filmes feitos sob encomenda por políticos e empresários. No final dos anos 1910 e início dos 1920 começa-se a falar do potencial educativo dos filmes de não ficção. Filmes são feitos sobre o Pantanal, por exemplo, e são bem recebidos, pois permitiriam pela imagem a integração do país. Mas ao longo desses anos, o filme de ficção nos moldes estrangeiros, principalmente o americano, se construiu como ideal de cinema. Segundo os críticos das atualidades, esses realizadores dragavam dinheiro e força que deveriam nutrir o cinema de ficção.
Quando falamos em documentário, estamos falando de conceitos que passam por “realidade”, “verdade”, “ficção” e “personagem”. Que cuidados o historiador que trabalha com esse gênero audiovisual deve ter ao longo de uma análise?
Todo e qualquer filme é uma construção. Isso é básico e todos sabem. Mas também não podemos desconsiderar o poder que o real captado pela câmera tem sobre quem filma e quem assiste. Quando entro em uma sala de cinema ou ligo minha televisão estabeleço de antemão uma relação com o que vejo. Recebo informações antes – nome do diretor, gênero, resumo, ano de realização, prêmios, críticas, etc. – que constituem minha fruição do filme. Não se trata de estabelecer hierarquias ou graus de aproximação do real, mas de reconhecer formas e poderes distintos dos tipos de imagem produzidos.
Quais as principais fases do cinema-documentário no Brasil? Que obras e documentaristas melhor representam essas fases? Houve trocas culturais com modelos estrangeiros?
Difícil dizer, pois acredito que todas são importantes. Posso destacar alguma de que goste mais. Creio que os anos sessenta marcam um momento importante, pois afirmam que há uma coisa específica que se chama documentário e que não se confunde com filme de propaganda, científico ou cultural. A afirmação ocorre pela realização de filmes, pelas formas de inserção política (como a criação de festivais e de associações próprias, caso da ABD) e pela escrita. As trocas existem e é importante falar das mesmas, deixando de lado uma historiografia que pensa em termos de influência. Durante muitos anos se pensou a produção de Thomaz Farkas, realizada nesses anos 60, como uma transposição do modelo francês do cinema-direto de Jean Rouch. Nada nos filmes ou nos textos produzidos pelos realizadores brasileiros confirmam essa ideia. Mas claro que podemos reconhecer trocas. Esse momento é marcado pelo surgimento das câmeras leves e dos aparelhos de som sincrônico. E, como já dito, pelo surgimento de novas formas de escrita sobre o cinema, aqui e na Europa. É preciso olhar também para o continente. As experiências feitas na Argentina, por exemplo, foram fundamentais para pensar a forma como filmávamos o país e sua propalada modernização e burguesia.
Professora, a senhora poderia indicar alguma referência bibliográfica para os leitores do Café História que se interessam pelo cinema-documentário ou pela relação História e Cinema?
O livro “História e Cinema” organizado por Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba constitui uma boa referência para aqueles que querem começar o cinema com as categorias da história.
Como citar essa entrevista
LUCAS, Meize Regina de Lucena. História & Cinema: uma conversa sobre diálogos possíveis (Entrevista). Entrevista concedida a Bruno Leal Pastor de Carvalho. In: Café História – história feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/historia-cinema/. Publicado em: 7 mar. 2009. Acesso: [informar data].