Os estudos através da História Ambiental nos apresentam o ambiente como agente ativo na história, visto que as pessoas organizam e reorganizam suas vidas relacionando-se com o meio natural. Apesar de muitos estudos tratarem da natureza desde os primórdios da escrita humana, foi apenas no século XX que a historiografia desenvolveu uma atenção sistemática aos fatores ambientais e suas conexões com a história humana. De acordo com Donald Worster, a ideia de uma História Ambiental surgiu na década de 1970, com as conferências sobre a crise global e o crescimento dos movimentos ambientalistas entre cidadãos de vários países, sobretudo nos Estados Unidos e na Europa. [1]
Assim como toda narrativa histórica, a análise socioambiental da História é resultado de seu tempo, pois possui objetivos morais e compromissos políticos em um contexto onde o meio ambiente desponta como tema de interesse mundial. Ou seja, “as vozes das ruas” tiveram forte influência na formalização de uma história conectada aos anseios socioambientais. E se o historiador vai ao passado através das demandas do presente, por certo a questão ecológica impulsionou uma revisão da História considerando as preocupações da Era Pós-moderna. Sobre o intento da História Ambiental, Worster aponta que o seu objetivo principal se tornou aprofundar o nosso entendimento de como os seres humanos foram, através dos tempos, afetados pelo ambiente natural e, inversamente, como eles afetaram esse ambiente e com que resultados. [2]
A História Ambiental procura repensar as interações entre os sistemas sociais e naturais, considerando as consequências dessas interações ao longo do tempo. Deste modo, extrapolando as fronteiras geopolíticas, a história se ocuparia em compreender a própria terra, notando os seus usos e significados para os seres humanos. Apesar da exaustão na utilização dos recursos naturais pelos seres humanos, o historiador ambiental prefere apontar que o homem causa mudanças na natureza, e não danos, pois não necessariamente a relação entre os sistemas sociais e os sistemas naturais é desastrosa ou problemática.
Características metodológicas
Algumas das características metodológicas e analíticas da História Ambiental, conforme a leitura de José Augusto Drummond acerca das propostas provenientes da American Society for Environmental History, apontam que a maioria das pesquisas: 1) focalizam uma região com homogeneidade ou identidade natural; 2) dialogam sistematicamente com as ciências naturais; 3) exploram as interações entre os diferentes estilos civilizatórios e o uso dos recursos naturais; 4) valorizam a grande variedade de fontes pertinentes ao estudo das relações entre as sociedades e o seu ambiente; e 5) executam trabalhos de campo. [3] Portanto, a História Ambiental é um campo híbrido, que sintetiza contribuições de diversas áreas do conhecimento e cuja prática é inerentemente interdisciplinar.
Algumas mudanças epistemológicas consolidadas no século XX desafiaram os historiadores a repensar as temáticas estudadas na disciplina. De acordo com José Augusto Pádua, três mudanças no entendimento do mundo natural pelos seres humanos são relevantes, sendo: a noção de que o homem produz sérios impactos no mundo e pode causar sua degradação; a ampliação dos marcos cronológicos da terra para bilhões de anos; e a percepção da natureza como um agente histórico, em sucessivos processos de construção e reconstrução ao longo do tempo. [4]
Uma das premissas da História Ambiental é entender que o nosso planeta é uma realidade antiga e diversificada, que já sofreu gigantescas transformações biofísicas ao longo de sua trajetória. Por aqui já passaram inúmeras formas de vida, sendo que a espécie humana é apenas mais uma delas – uma espécie frágil e recentíssima, considerando os milhões de anos em que os organismos vivos estão se disseminando sobre a Terra. Em 1949, Fernand Braudel apresentou uma “história quase imóvel”, considerando que o ambiente circundante aos homens possui lentas transformações, em contraposição à maior velocidade dos movimentos humanos na História. [5] Apesar de incluir o ambiente na análise histórica, esta visão é criticada porque relega ao campo biofísico um aspecto estático na interação com as ações humanas. As pesquisas contemporâneas têm revelado situações de ruptura, de catástrofe e de mudanças intensas no âmbito dessas relações, tanto na curta quanto na longa duração.
Considerando que a questão ambiental só apareceu em um momento bastante recente da trajetória humana, devemos evitar um discurso de ajuizamento nas observações dos fatos passados – reservando-se, neste caso, a legitimidade da crítica histórica, que é inerente à atual historiografia. Porém, podemos observar, em qualquer época ou sociedade, que as relações ambientais já estavam presentes, sendo percebidas, ou não, segundo os padrões culturais de cada período. Neste sentido, conforme a formulação de Alfred Siemens, devemos “extrair ecologia” de documentos do passado que, obviamente, não tinham esse sentido ou essa justificativa. [6] A História Ambiental, como ciência social, deve sempre tratar das sociedades humanas, mas também deve reconhecer a historicidade dos sistemas naturais. O desafio, então, seria construir um diálogo aberto e interativo da relação entre sociedade e natureza. Qualquer análise sobre o passado deve incluir não apenas a fauna e a flora de determinados ambientes, mas também o animal humano com seus êxitos ou malogros em sua reprodução enquanto espécie. Neste intento, os antropólogos e cientistas naturais podem fornecer aos historiadores interessantes observações sobre sistemas sociais e ambientes físicos.
Paisagem: um conceito-chave
Um conceito-chave para os estudos em História Ambiental é, indispensavelmente, a paisagem. A Terra é um documento histórico carregado de informações. A afirmação de Marc Bloch é pertinente ao dizer que “a observação e a análise da paisagem de hoje, é necessária para ver melhor o passado”. [7] Para Simon Schama, a paisagem é cultura antes de ser natureza; um constructo da imaginação projetado sobre mata, água, rocha. Uma paisagem é repleta de significados identitários e simbólicos, construídos e reproduzidos, que acabam por alimentar o imaginário social. [8]
A observação das paisagens, no sentido empírico e através da pesquisa teórica, constitui uma importante característica da História Ambiental, pois através do trabalho de campo o entendimento dos lugares pode tornar-se mais satisfatório. Neste ponto, a História se entrelaçaria com a prática geográfica, que desde seus primórdios priorizou os estudos in loco. Nas palavras de Milton Santos, “a paisagem é o resultado de uma acumulação de tempos”, onde o espaço altera-se continuamente para poder acompanhar as transformações da sociedade. [9] Deste modo, a integração entre a geografia histórica e a História Ambiental é indispensável para se fazer uma análise que considere a paisagem em suas dinâmicas espaço-temporais. Pois, William Cronon lembra-nos que a natureza intocável não é uma opção: “Viver na natureza é usá-la e transformá-la com a nossa presença. A escolha que nós fazemos não deve ser a de não deixar nenhuma marca, que é impossível, mas sim quais tipos de marcas nós desejamos deixar”. [10]
Se no ambiente a natureza seria impossível de ser ordenada, dada sua dinâmica de funcionamento alheia aos desejos humanos, na narrativa histórica se esboçaria certa inteligibilidade de seus processos. A História constrói narrativas para ordenar o passado e a relação sociedade/natureza, que, em si, são realidades misturadas e desordenadas, ou ainda, sem unidade e sentido dados. Em síntese, na História Ambiental ocorrem fusões conscientes e coordenadas entre modos de fazer pesquisa: um encontro e hibridização da História natural com a História humana.
Além de ser um olhar retrospectivo das formas sociais de destruição ou de coevolução com a natureza, a pesquisa em História Ambiental permite um enfoque prospectivo para a reconstrução das relações mais sustentáveis. Tal pesquisa traz para o historiador a possibilidade de desenvolver o seu papel social, desmistificando os usos, as representações e apropriações da natureza.
Outro mérito, se assim podemos entender os atributos de um enfoque teórico-metodológico, seria a capacidade de o viés socioambiental ser a História das Histórias não ditas. Isto é, ao trazer para o debate historiográfico temas como colonização e desmatamento, a História estaria também dando voz à natureza, aos povos dominados e às populações tradicionais de um território. Repensar a exploração socioeconômica serviria então para relativizar os imperativos do progresso e do poder.
Um viés historiográfico comprometido com a vida
A questão ambiental se apresenta como um novo campo de atuação, estudo, ensino e pesquisa para os profissionais de História, especialmente no Brasil, um país configurado a partir da intensa atividade mercantil de produtos agrícolas e de extração.
A valorização e a necessidade de manutenção de todas as formas de vida constituem uma das preocupações da vertente ambiental na História. Conforme Regina Horta Duarte:
A história ao se voltar para o tema [ambiental] de forma sistemática e minuciosa cumpre um importante papel. […]. Ela poderá servir prioritariamente à vida e, mais que a sua mera conservação, poderá constituir-se em prol da afirmação da sua abundância. Daí, a história poderá honrar, mais uma vez, a sua disposição de ligar-se à vida presente e aos homens presentes. [11]
Podemos analisar a importância atribuída à Natureza sob a perspectiva de que: quanto mais próxima ela estiver do sujeito, mais temida e desprezada é; e, quanto mais escassa e distante ela estiver, mais amada e admirada se torna. Ao historiador cabe investigar o processo de exploração aplicado à natureza em determinados momentos da História, sendo que o momento atual carece de um estudo sistemático acerca das causas e consequências desta relação estabelecida entre o homem e o ambiente. Assim, por meio das fontes produzidas ao longo da trajetória humana – e também dos vestígios dos milhões de anos da terra e dos seres vivos – o desafio dos historiadores ambientais é extrair sentido do complexo funcionamento indissociável entre o mundo natural e a cultura humana, entre o palpável e o intangível.
Notas
[1] WORSTER, Donald. Para fazer História Ambiental. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 04, n. 08, p. 198-215, 1991.
[2] Ibidem.
[3] DRUMMOND, José Augusto. A História Ambiental: temas, fontes e linhas de pesquisa. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 04, n. 08, p. 177-197, 1991.
[4] PÁDUA, José Augusto. Um Sopro de Destruição: pensamento político e critica ambiental no Brasil escravista (1786-1888). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
[5] BRAUDEL, F. O. Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II. Santos. SP: Martins Fontes, 1983.
[6] SIEMENS, A. Extrayendo ecología de algunos documentos novohispanos de la época temprana. In: GARCIA, B.; JÁCOME, A. (Org.) Estudios sobre historia y ambiente en América I. México: El Colégio de México y Instituto Panamericano de Geografia e Historia, 1999.
[7] BLOCH, Marc. Apologia da História: ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011.
[8] SCHAMA, Simon. Paisagem e Memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
[9] SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. 5ª ed. São Paulo: Editora da USP, 2004.
[10] CRONON, William. The Trouble with Wilderness: or, Getting Back to the Wrong Nature. Environmental History, p. 7-28. 1995.
[11] DUARTE, Regina Horta. História & Natureza. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p.34.
Sugestões Bibliográficas
BLOCH, Marc. Apologia da História: ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011.
CRONON, William. The Trouble with Wilderness: or, Getting Back to the Wrong Nature. Environmental History, p. 7-28. 1995.
CROSBY, Alfred W. Imperialismo Ecológico: a expansão biológica da Europa (900 – 1900). São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
DEAN, Warren. A ferro e fogo: a históoria e devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia da Letras, 1996.
DRUMMOND, José Augusto. A História Ambiental: temas, fontes e linhas de pesquisa. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 04, n. 08, p. 177-197, 1991.
DUARTE, Regina Horta. História & Natureza. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
LEFF, Enrique. Construindo a História Ambiental da América Latina. Esboços, Florianópolis, v. 13, p. 11-30, 2005.
PÁDUA, José Augusto. As bases teóricas da História Ambiental. Estudos Avançados, São Paulo, v. 24, n. 68, p. 81-101, 2010.
PÁDUA, José Augusto. Um Sopro de Destruição: pensamento político e critica ambiental no Brasil escravista (1786-1888). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
PONTING, Clive. Uma história verde do mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.
SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. 5ª ed. São Paulo: Editora da USP, 2004.
SIEMENS, A. Extrayendo ecología de algunos documentos novohispanos de la época temprana. In: GARCIA, B.; JÁCOME, A. (Org.) Estudios sobre historia y ambiente en América I. México: El Colégio de México y Instituto Panamericano de Geografia e Historia, 1999.
SCHAMA, Simon. Paisagem e Memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
WORSTER, Donald. Para fazer História Ambiental. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 04, n. 08, p. 198-215, 1991.
Como citar este artigo
FERRI, Gil Karlos. História Ambiental: historiografia comprometida com a vida. In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/historia-ambiental-historiografia-comprometida-com-a-vida/. Publicado em: 5 abr. 2017. Acesso: [informar data]