Em 4 de julho de 2020, diante do icônico Monte Rushmore, o então presidente Donald Trump alertou seus compatriotas para o “ataque” à “Revolução Americana” realizado por “radicais” variados. Ali, em frente às faces petrificadas de Lincoln, Jefferson, T. Roosevelt e Washington, o bilionário teceu duras palavras acerca daqueles e daquelas que, dizia ele, estariam “deturpando” a história dos Estados Unidos, “difamando” seus heróis, “mentindo” sobre seus fatos e “atiçando” o ódio antiamericano nos jovens. Aos seus olhos, isso era nada menos do que uma ameaça existencial ao país, pois o quê restaria de seus valores e tradições se esses inimigos do Sonho Americano fossem vitoriosos? Para se contrapor a esse risco, nada menos do que apocalíptico, Trump propôs a adoção de uma “educação patriótica” capaz de ensinar seus “estudantes” a ter a devida devoção à nação e a tudo que ela representava. Com isso, as linhas estavam demarcadas: de um lado, os “patriotas” dedicados à preservação da “verdadeira história” estadunidense; de outro, a “turba raivosa” que buscava sua “destruição” para abrir caminho para a “revolução cultural”.
Alguns meses mais tarde, às vésperas de sua derrota nas eleições presidenciais de 2020, Trump comissionou o (infame) “1776 Report”, documento que esboçava a educação patriótica mencionada no Dia da Independência. Para seus autores, somente ela levaria à “renovação nacional” e à “redescoberta” de uma identidade compartilhada fundamentais para a grandeza da América. Com isso em vista, a intenção expressa do relatório era a de expor os “fatos corretos da história norte-americana”, supostamente sem “tomar partido” algum, para que seus leitores e leitoras pudessem vê-la com “reverência e amor”.
Dentre outras coisas, o texto, produzido por ideólogos direitistas sem qualquer credibilidade acadêmica, reduzia a história da nação a um embate entre os “ideais americanos”, perenes e imutáveis, e múltiplos “antagonistas” ao longo dos séculos, da “escravidão” oitocentista à “política de identidade” contemporânea (passando, claro, pelo “comunismo”). Em linhas gerais, essa abordagem reeditava velhos temas sobre o excepcionalismo norte-americano, minimizava os aspectos violentos do passado nacional e impunha a avaliação positiva dos Estados Unidos como sendo a única possível. O ódio contra a historiografia produzida nas “universidades”, supostos “viveiros antiamericanos”, é um dos exemplos dessa lógica aplicada ao presente.[i] Temos aqui, assim, uma narrativa que, ao invés de ser história, é somente ideologia: o objetivo final do “1776 Report” não era discutir perspectivas divergentes sobre o passado estadunidense ou debater honestamente questões empíricas, didáticas e metodológicas, mesmo sob um ponto de vista conservador, mas o de servir como propaganda reacionária e instrumento de doutrinação/ação política. Não é coincidência que, nas suas páginas finais, seus autores exortem os pais a apoiarem a perseguição a educadores que não inculquem o “amor e reverência profundos” à nação em seus pupilos.
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A comissão que elaborou o “1776 Report” foi desfeita por Joe Biden logo após sua posse, mas isso não significa que seus efeitos tenham sido inócuos, pelo contrário: por todos os Estados Unidos, o Partido Republicano, convertido a um nacionalismo delirante e cada vez mais autoritário, como aponta o jornalista Adam Serwer, tem introduzido (e, em certas situações, aprovado) peças legislativas que visam limitar justamente o que pode ser ensinado em sala de aula, em termos similares, quando não idênticos, aos usados por Trump e pelos autores do relatório acima mencionado. Há uma tentativa de se legislar sobre o passado que visa, pela força da lei, consignar determinadas interpretações da história norte-americana à ilegalidade e, por meio disso, assegurar a “educação patriótica” (negacionismo histórico por outro nome) almejada pela extrema-direita – uma espécie de desdemocratização do passado que é correlata à desdemocratização política em curso nos Estados Unidos (e não só lá!). Cabe, então, perguntar-nos: o que levou a essas reações? Por que o passado se converteu novamente em um cavalo de guerra importantíssimo para os republicanos? Por que, enfim, guerras de história?
Guerras de história
Para além da conjuntura política maior de recrudescimento contínuo da extrema-direita (incluindo supremacistas brancos desavergonhados), os estopins específicos para os atuais conflitos sobre o passado parecem ter sido dois: as enormes manifestações antirracistas da última década (e a consequente fundação do Black Lives Matter), com suas exigências de reformulação da memória estadunidense e reparação por feridas históricas diversas (a escravidão, em particular), e a publicação do 1619 Project pelo New York Times (NYT).
As primeiras revisitaram a degradação social causada pelo que Saidiya Hartman chamou de “pós-vida da escravidão” em terras estadunidenses, e também exigiam a retirada de monumentos de pessoas e instituições associadas à escravização de seres humanos. O caso dos memoriais confederados foi essencial a essas disputas: enquanto conservadores reivindicavam sua importância, defendendo a sua preservação, nem que fosse como “patrimônio”, os manifestantes demandavam sua remoção do espaço público (às vezes, inclusive, tomando eles próprios a decisão – correta, a meu ver – de removê-los) do país, sob o argumento, muito bem esmiuçado por Karen Cox, de que as homenagens a Robert Lee, Stonewall Jackson e os soldados da velha Confederação eram defesas da violenta supremacia branca e da segregação racial. Por sua vez, na ótica de seus defensores, era o “passado” nacional por completo (e não representações de alguns de seus personagens e eventos) que estava sendo destruído por essas iniciativas – o passo inicial para a ruína da própria América. Trump, no esteio dos confrontos de 2017 em Charlottesville, resumiu esses temores dizendo:
“Muitas das pessoas estavam lá para protestar contra a retirada da estátua de Robert E. Lee. Nessa semana é Lee. E eu percebi que Stonewall Jackson também está sendo retirado. Eu imagino, será que o próximo é George Washington? E Thomas Jefferson na semana seguinte? Vocês sabem, vocês precisam se perguntar, onde isso vai parar?”
Sob esse raciocínio, era toda a história do país, resumida aos seus grandes homens e seus “ideais”, que estaria a perigo: os ”radicais”, na retórica alarmista conservadora, estavam dando o primeiro passo para uma “revolução cultural” (sem precedentes!) que precisava ser derrotada ainda no nascedouro.
Inspirado pelos protestos antirracistas dos anos prévios, o 1619 Project, sobre o qual já comentei anteriormente, foi, para os conservadores, o sinal de que, enfim, tal “revolução cultural” havia chegado. Estavam exagerando, obviamente. No entanto, o projeto do NYT tinha sim um desígnio que, se não era “revolucionário”, era bastante ambicioso: reescrever, por meio de uma série de textos e imagens, a história dos Estados Unidos tomando a escravidão como seu elemento norteador. Do esvaziamento dos ideais democráticos ao planejamento urbano, passando pelo encarceramento massivo de pessoas negras e o advento de um capitalismo de rapina, não havia nada na história norte-americana que não tivesse sido tocado pelos espectros das plantations. Dessa maneira, o 1619 Project, em que se pese alguns de seus limites, reorganiza a narrativa mestra do país ao considerar que o terror racial, a violência social e a servidão humana não eram desvios de uma marcha inexorável à liberdade (meros equívocos corrigidos pelo tempo), mas seus elementos estruturantes.
Sob esse ângulo, o excepcionalismo que sustentava a imaginação histórica dos conservadores era virado de ponta-cabeça: os “ideais americanos” não passariam de cinismo, quando não mentiras puras e simples, e a sua tão decantada democracia capitalista seria, na verdade, um regime político-econômico que impunha miséria e morte à parte substancial da população do país, especialmente negra.
Ainda assim, as conclusões do projeto, sumarizadas na introdução de Nikole Hannah-Jones, não eram fatalistas ou, como diriam seus opositores, antiamericanas. Pelo contrário: ela terminava com a esperança de que, ao (re)conhecer suas feridas históricas, os norte-americanos e norte-americanas poderiam, finalmente, construir um país digno de suas aspirações e desejos democráticos. Antes de ser sua condenação, o 1619 Project era uma reinvindicação da nação, ainda que divergente dos delírios nacionalistas do trumpismo.
Nos meses que seguiram à sua publicação, houve uma torrente de reações, à esquerda e à direita. Se os progressistas, apesar de algumas críticas, abraçaram a iniciativa do NYT e a American Historical Association (AHA) lhe deu chancela, os conservadores, como já foi dito, viram nele o prenúncio da dissolução do país pelas mãos dos “radicais” e “revolucionários”. Até aí não temos nada de novo: nas guerras de história das décadas de 1980 e 1990, um tipo similar de retórica apocalíptica já tinha sido empregado pela direita, receosa de que a multiculturalização da história norte-americana levaria à “desunião da América” ou à sua “balcanização”.
Nem mesmo o uso eleitoreiro desses conflitos é novidade, pois parte da “revolução republicana” de 1994, que levou o partido a dominar o Legislativo durante a presidência de Bill Clinton, foi possibilitada pelo espantalho, efetivo para o eleitorado conservador, do “antiamericanismo” dessas histórias multiculturais. No entanto, a proporção dos conflitos atuais em torno do 1619 Project é substancialmente diferente, principalmente porque eles vieram juntamente à crise da democracia norte-americana (exemplificada pelo ataque ao Capitólio pelas hostes trumpistas em janeiro de 2021), o recrudescimento da supremacia branca, a vitória eleitoral de Trump em 2016 e a caixa de Pandora aberta por tudo isso.
Para setores expressivos da direita norte-americana, as manifestações antirracistas dos últimos anos e as demandas democratizantes nelas incluídas ou por elas inspiradas, incluindo as que se referiam ao passado nacional, haviam ido longe demais: como expressou um de seus intelectuais, elas, na sua ótica, ameaçavam a “Constituição” e, por extensão, a “liberdade” do país. O 1619 Project, com sua inversão da narrativa mestra do país, seria, para eles, a expressão cultural desse “ataque” à integridade nacional. Chegara a hora de estancar esse processo, do jeito que desse e do que jeito que fosse.
Desdemocratização do passado
Voltemos novamente ao discurso de Trump no Monte Rushmore e o 1776 Report. Ele foi um chamado à ação, ou seja, um modo de se mobilizar a militância republicana contra os inimigos da nação – daí sua linguagem virulenta, seu maniqueísmo e suas nítidas propensões ao autoritarismo. Faltava, contudo, um último item para que os desatinos republicanos se transformassem em atos: ele veio sob a forma de “teoria crítica da raça” (CRT, em inglês). De uma teoria acadêmica sobre o impacto do racismo no ordenamento legal dos Estados Unidos, o termo passou a englobar tudo aquilo que os conservadores rejeitavam, temiam e odiavam: o ensino das feridas históricas da nação, os debates acerca do racismo estrutural, as críticas aos memoriais confederados e perspectivas críticas sobre o pretérito estadunidense. Na colocação de Benjamin Wallace-Wells, a controvérsia ao redor da CRT não só condensou as disputas anteriores num único tema, como deu ímpeto às disposições republicanas em legislar sobre educação e, por consequência, sobre história. Para Christopher Rufo, o sujeito que impulsionou a contenda com suas denúncias sobre o suposto avanço da CRT nas escolas e empresas, ela seria um passo importante para a reconstrução da hegemonia conservadora que, no seu entendimento, levaria ao controle republicano do Estado norte-americano. Tratou-se, em suma, de uma polêmica manufaturada para dar coesão aos ataques do Partido Republicano e seus aliados à democracia nos Estados Unidos: “a arma perfeita”, nas palavras de Wallace-Wells.
Logo, a guerra de história em curso é fundamentalmente sobre poder e política, isto é, sobre quem tem o poder de definir quais passados circularão na esfera pública, quais pretéritos serão considerados legítimos e quais serão suas relações maiores com a pólis. É aqui que entram as leis sobre “educação patriótica”, cujos textos refletem o 1776 Report e as imprecações de Rulfo contra a CRT[ii], aprovadas ou propostas em 36 estados norte-americanos ao longo dos últimos dois anos.
Malgrado as variações textuais entre elas, essas peças legislativas propõem, em geral, o banimento dos debates sobre raça e classe das salas de aula, a proibição do uso do 1619 Project como material didático, a censura às menções nas escolas ao racismo estrutural e outras formas de opressão e, finalmente, o controle parental daquilo que é ensinado às e aos estudantes.
Em New Hampshire, por exemplo, a House Bill 1255 de 2021 explicitamente impede que “doutrinas subversivas” (leia-se “CRT”) sejam expostas aos alunos e alunas, enquanto na Virgínia, a Ordem Executiva 1/22 coíbe o ensino de “conceitos divisivos” nas instituições estaduais de educação, num tom semelhante à Lei H4605, de 2021, da Carolina do Sul, cujo o foco é suposta “coerção ideológica” de discentes por seus professores e professoras. E na Geórgia, para encerrar esse breve panorama, os deputados e deputadas aprovaram a HB 888, que desautoriza os educadores a tratar de “temas contemporâneos” e a divulgação de que a “real fundação” dos Estados Unidos é o preconceito racial (uma ofensa velada ao 1619 Project)
Essas movimentações, evidentemente, não pararam por aí. Em determinados estados, legisladores, em uníssono com conselhos locais de educação controlados pela direita, prescrevem o conteúdo a ser adotado pelas escolas. Na Flórida, no Alabama e em Indiana, todos estados republicanos, exige-se uma série de temas celebratórios da nação (sua dedicação à liberdade, a correção de seus valores fundantes, seu caráter intrinsecamente positivo, a bravura de seus heróis, etc.) ao mesmo tempo, em que se suprime “conceitos ideológicos” como “privilégio branco” e gênero e se dá direitos às famílias de retirar seus jovens de aulas cujos temas os ofendam.
No resumo dado por Ron DeSantis, governador da Flórida alinhado ideologicamente a Trump, “é necessário que paremos de ensinar as crianças a odiarem seu país” e “assegurar os direitos dos pais” na educação de filhos e filhas. Todo esse pânico moral só poderia levar ao estágio seguinte: as cobranças para que certas obras, incluindo livros canônicos (“Beloved”, de Toni Morrison, é um deles), sejam retiradas, quiçá definitivamente,de colégios, universidades e bibliotecas públicas.
Em nome da proteção às crianças, os republicanos querem impedi-las de ter contato com qualquer coisa que não sejam suas crenças familiares ou a devoção acrítica aos Estados Unidos, chamando isso de “educação patriótica” quando, em realidade, é um enorme esforço de desdemocratização do passado e, consequentemente, de desresponsabilização histórica, cujos objetivos são bastante sombrios.
No primeiro caso, essas leis, independentemente de seu sucesso, não podem ser separadas do assalto conservador, nos âmbitos estaduais, ao direito ao voto, ao arcabouço dos Direitos Civis e às lisuras das eleições por todos os Estados Unidos. Confrontados com sucessivas derrotas nas votações populares (a vitória de Trump foi garantida pelo Colégio Eleitoral, é bom lembrar) e com mudanças demográficas que os relegariam ao status de minorias políticas, os republicanos tem sistematicamente lutado para despir milhares de cidadãos e cidadãs de seus direitos eleitorais, desmontar a Lei de Direitos Civis de 1964 (marco fundamental da expansão democrática no país) e, finalmente, colocar em dúvida os processos eleitorais com acusações infundadas de fraude e mobilizar permanentemente sua base política para, se necessário, repetir a insurreição de 6 de janeiro de 2021.
Se projetos políticos invariavelmente precisam, para seu êxito, de visões de história que os anteparem, então faz sentido que os republicanos proponham (ou imponham) uma história assentada no “esquecimento celebratório”, como sublinha Dominick LaCapra, que, ao invés de encarar honestamente os fardos do passado norte-americano, opte por trivializá-los, banalizá-los e, em última instância, negá-los por meio do silêncio forçado. Uma história sem os Outros permite atirá-los para fora dos limites da comunidade de semelhantes e, à vista disso, da própria cidadania: se não são cidadãos legítimos da pólis, pois seus passados e vidas não importam, por que deveriam exercer quaisquer direitos nela? A representação histórica de uma América branca, “democrática”, homogênea e sem feridas históricas a enfrentar (tudo não passaria de “vitimismo”) leva inevitavelmente à sua naturalização no presente e à reafirmação das estruturas de dominação que a sustentam, embora, para parafrasear Adam Serwer, ela sirva para, num passe de mágica, negar sua existência.
O programa de Trump, encampado pelo Partido Republicano, é a culminação perversa dessa imaginação histórica excludente e autoritária: “fazer os Estados Unidos grandes novamente” é desdemocratizar não só sua atualidade, mas seu pretérito, para assegurar a exclusão de todos e todas que não se incluam numa caracterização de cidadania crescentemente restritiva.
Finalmente, esse “passado fantásmico”, para usar um termo de Wendy Brown, concebido tanto para assegurar os estadunidenses brancos de sua inocência quanto para culpar as “minorias” por seus próprios problemas, nada mais é do que uma operação de desresponsabilização histórica em larga escala – uma história, escreveu James Baldwin, pela qual não se deseja pagar exatamente porque seus lucros foram consideráveis. Se as feridas históricas são “vitimismo” e se as exigências por sua reparação são desatinos antiamericanos, o passado não tem qualquer relevância para o presente, salvo enquanto objeto de contemplação passiva e veneração acrítica. Diante disso, ninguém precisa se responsabilizar por sua implicação na herança/reprodução de processos de dominação.
Segundo David Theo Goldberg, o que resta é uma neoliberalização das injustiças que as reduz a comportamento privado, por um lado, e a resultados “naturais” da competição do mercado e de disposições individuais. Nessa perspectiva, o social é “desmontado”, recorrendo novamente a Brown, e processos maiores somem de vista. Logo, protestos antirracistas, demandas por restituição e a atenção às formas como o passado impacta o presente (a “pós-vida da escravidão” é uma delas) só podem ser vistas como antagônicas ao espírito nacional e, no limite, suas inimigas, agora encarnadas na dupla figura da CRT e do 1619 Project. Neoliberalismo e nacionalismo excludente acabam, por fim, se encontrando como os bons amigos que são.
As guerras de história diminuindo?
Não há indícios de que as guerras de história diminuirão ou de que, no curto prazo, a coalização republicana dará um passo atrás em sua sanha autoritária, até porque a forte presença de Trump no cenário eleitoral norte-americano e a dependência do Partido Republicano de uma base cada vez mais radicalizada não nos permite o otimismo – nada indica que o nacionalismo branco estimulado pelos republicanos e sua esfera midiática (tal qual a Fox News demonstra cotidianamente) vá esmorecer. Por outro lado, a intensidade das respostas à desdemocratização do passado (e política), incluindo aquelas no campo legislativo[iii], aponta para a continuidade reforçada das alianças antirracistas e progressistas dos últimos anos. Isso, por si só, deve intensificar as disputas, mesmo que outros espantalhos além da CRT e do 1619 Project sejam encontrados para alimentar os pânicos morais reacionários e seus passados fantásmicos, porque o conservadorismo estadunidense necessita das fantasias racistas, implícitas ou explícitas, para sua sobrevivência. A luta, portanto, não é somente entre concepções diferentes acerca da história dos Estados Unidos, mas entre aqueles que defrontam, nas palavras de Baldwin, a “dor e o terror” do passado para quem sabe superá-las e os que, com seu “poder tirânico”, querem estendê-las indefinidamente.
Notas
[i] O documento é explícito a esse respeito: “as universidades são hoje viveiros de anti-americanismo e censura que se combinam para gerar nos estudantes e na cultura maior, no melhor dos casos, um desdém e, no pior deles, um ódio completo por esse país” (1776 REPORT, 2020, p. 18).
[ii] Como demonstraram dois jornalistas, os textos das peças legislativas são todos muito similares entre si e às imprecações originais de Rufo contra a CRT, o que leva a crer em um esforço realmente concertado de ação para bani-la dos Estados Unidos – algo, inclusive, admitido pelo próprio Rufo. Não se trata, portanto, de uma rebelião genuinamente popular contra a CRT, mas de um pânico moral fabricado pela direita para seu benefício político-eleitoral.
[iii] Há esforços em 17 estados para expandir o currículo sobre racismo e desigualdade, propostos como respostas ao assalto republicano contra a CRT e à desdemocratização mais ampla em curso, com destaque para a Califórnia, Nova Jersey e Colorado. Em certos locais, como em Vermont, houve apoio dos republicanos a essa legislação, mas, em geral, elas foram propostas pelas coalizões democratas.
Bibliografia
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AVILA, Arthur Lima de. O Passado Norte-americano na Era da Fratura: episódios das guerras de história nos Estados Unidos da década de 1990, Tempo, vol. 22 n. 40. p.329-346, mai-ago., 2016.
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COX, Karen. No Common Ground: Confederate monuments and the ongoing fight for racial justice. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2021.
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RICHARDSON, Heather Cox. How the South Won the Civil War: oligarchy, democracy, and the continuing fight for the soul of America. Oxford: Oxford University Press, 2020.
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Como citar este artigo
AVILA, Arthur Lima de. Guerras de história nos Estados Unidos da Era Trump (Artigo). In: Café História. Publicado em 2 mai de 2022. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/guerras-de-historia-nos-eua-da-era-trump/. ISSN: 2674-5917.