Especial “Passados presentes da Espanha”
Na tarde do dia 3 de maio de 2018, o grupo terrorista ETA (Euskadi Ta Askatasuna – em português, “Pátria Basca e Liberdade”) anunciou publicamente o final da sua trajetória. Em um comunicado publicado em meios jornalísticos bascos, transformado em um registro de áudio curto e sucinto, o grupo informou que considerava concluídas suas atividades políticas e que a defesa de um País Basco reunificado, independente, socialista e não patriarcal dali em diante se daria por outros meios. Tratava-se, segundo o texto lido em espanhol por um de seus dirigentes, “de uma nova fase histórica” para a antiga luta pela independência daquela região europeia, que ocupa largas porções tanto do norte da Espanha como do sudoeste da França.
Quase sete anos antes, em outubro de 2011, o grupo separatista já havia anunciado seu desarme definitivo e o fim das suas atividades militares. Naquela ocasião, o comunicado foi feito valendo-se de uma cuidadosa estética cenográfica, com três de seus dirigentes vestidos com uniformes, luvas e a txapela (espécie de boina) na cor preta, capuzes brancos com furos apenas nos olhos, sentados um ao lado do outro atrás de uma mesa coberta com toalha branca. Três bandeiras complementavam a cena: à esquerda, a Ikurriña, bandeira oficial do País Basco; à direita estavam juntas a bandeira com o estandarte de Navarra e a bandeira com a arrano beltza, a águia negra usada como selo real no século XII e atualizada contemporaneamente por grupos nacionalistas navarros. Na parede logo atrás dos dirigentes, um cartaz com o emblema do ETA completava o cenário: uma serpente envolvendo um machado com o lema ETA bietan jarrai, que indica as duas frentes de luta assumidas pelo grupo, a política e a armada.
Mas o que foi exatamente o ETA? Quais foram as suas “fases” e quais foram os seus objetivos políticos? Como e por que a sua longa, violenta e traumática história produziu efeitos que perduram com força ainda hoje no espaço público espanhol?
ETA: uma breve história
Embora o nacionalismo basco remonte pelo menos ao século XIX, o ETA é um produto do século XX. Ele nasce na Espanha, no final dos anos 1950, em plena ditadura franquista, como um grupo político separatista.1 Seu principal objetivo era tornar a região basca (que corresponde ao norte da Espanha e ao sudoeste da França) um Estado independente. Essa região tinha (e ainda tem) língua, símbolos e cultura muito particulares. Por isso, sempre tentou preservar sua autonomia. Tais pretensões, contudo, foram sistematicamente tolhidas pelo Estado espanhol, que temia perder sua unidade territorial.
A radicalização do grupo se tornou mais perceptível quando ocorreram as primeiras mortes atribuídas ao ETA em 1968. Uma das mais impactantes ocorreu dois anos antes da morte de Franco, em 1975, quando o ETA foi responsável pelo assassinato do então Presidente do Governo, Luis Carrero Blanco. Em 1987, uma explosão realizada no supermercado Hipercor, de Barcelona, deixou 21 mortos e dezenas de feridos.
No saldo trágico da violência, sabe-se, no entanto, que a imensa maioria das mortes (95%) foram cometidas após a ditadura franquista, ou seja, durante os períodos de transição e já em plena vigência democrática após a aprovação da Constituição de 1978. No ano seguinte, uma lei aprovou o estatuto de comunidade autonômica para o País Basco, encarada como “expressão da sua nacionalidade, e para aceder ao seu autogoverno”.
A partir dos anos 1980, os resultados eleitorais confirmaram a hegemonia política dos partidos ligados à defesa do nacionalismo basco. Contudo, como os números sugerem, a democracia parece ter sido antes um combustível para a violência etarra, não um mecanismo para sua contenção – vários atentados foram cometidos até a década de 1990.
No final da década de 1990, após o sequestro e assassinato do político Miguel Ángel Blanco em 97, milhões de pessoas saíram às ruas espanholas para se manifestar contra a violência etarra, considerado uma das mais importantes manifestações populares de caráter nacional contra as formas de atuação do grupo.
Nos anos 2000, como vimos, o grupo anunciou o fim das ações terroristas, convertendo-se em um grupo político, e, ano passado, o grupo anunciou o seu completo fim.
De 1975, ano da morte de Franco, até a dissolução do ETA, os números oficiais contabilizam 854 mortes entre execuções sumárias e atentados terroristas de larga escala.
Violência e sociedade
É importante sublinhar como o signo da violência conectou diferentes experiências históricas na Espanha recente. Se o ETA nasceu como uma tentativa de resposta a uma violência considerada anterior, marcada pela dita “conquista espanhola” do País Basco e sua continuidade durante a ditadura de Franco, ao longo de suas atividades terroristas outras formas de violência se espalharam pela sociedade espanhola, criando um estado de permanente tensão e de exceção institucional durante a própria democracia.
Embora em número bem menor do que as vítimas mortais do terrorismo cometido pelo ETA, é reconhecido hoje o caso de prisões, torturas e execuções de nacionalistas bascos pelas forças de segurança espanholas, inclusive por organizações paramilitares, como os Grupos Antiterroristas de Liberación (GAL), e grupos de extrema-direita, como o Batallón Vasco-Español (BVE), responsáveis por atentados tanto contra militantes etarras como contra vítimas civis sem relação direta com o ETA.
Some-se a isso a política de dispersão estabelecida pelo governo da Espanha para manter distantes do País Basco, e por consequência de suas próprias famílias, os presos acusados de envolvimento com o grupo nacionalista. Criada no final da década de 1980 sob a alegação de permitir o rompimento de tais indivíduos com a militância e assim facilitar sua reinserção social, o fato é que tal política serviu para intensificar o ressentimento de parte da sociedade basca em relação ao Estado espanhol, inserindo mais um elemento complicador e um nó de difícil desate no extenso emaranhado de fios que definem o chamado “problema basco”.
Memória e democracia
A memória do ETA tem sido extremamente instrumentalizada no âmbito dos debates políticos, mobilizando recordações e os esquecimentos ligados a essa parte da história recente da Espanha. Vincular, por exemplo, o desejo autonomista catalão ou as reinvindicações feministas como expressões que remeteriam à violência etarra é uma das atitudes dentro dessa estratégia política de uso do passado e coloca como questão primordial a de saber qual seu efeito na definição democrática de uma sociedade.
No atual ambiente político espanhol, marcado ainda pelos resquícios da crise econômica de 2008, pela instabilidade política que domina o parlamento há vários meses e pela emergência preocupante de posições ultraconservadoras na vida pública local, com manifestação de peregrinos pró-franquistas no Valle de los Caídos, onde encontram-se os restos mortais de Francisco Franco, e a ascensão do Vox, agremiação partidária de extrema-direita, como força política nacional, a mobilização deste passado sensível envolvendo o ETA é mais um dos elementos atuantes neste complexo contexto social.
Embora seja uma referência usada há muito mais tempo e em situações distintas, é significativo o fato de que recentemente os três líderes dos principais partidos de direita da Espanha tenham feito menções públicas que dizem respeito à memória do passado relacionada à atuação do grupo terrorista basco. Em 2017, Albert Rivera, líder do Ciudadanos (partido de matriz predominante neoliberal), definiu o ataque a um ônibus de turismo em Barcelona feito por radicais independentistas catalães como uma kale borroka.
Em fevereiro de 2019, Pablo Casado, do Partido Popular (direita tradicionalista e conservadora, com raízes franquistas) usou a mesma expressão para também se referir ao movimento que pleiteia a independência da Catalunha. Um mês antes, Santiago Abascal, líder do Vox (uma extrema-direita similar ao bolsonarismo brasileiro, a ponto do neologismo “voxsonaro” ter já encontrado espaço nas discussões políticas espanholas), também se valeu do termo para se referir às manifestações feministas que se concentraram do parlamento andaluz como protesto contra as posições machistas de membros do seu partido.
Kale borroka em euskara significa algo como “luta de rua”, expressão usada para representar as formas de confronto urbano, sobretudo com atuação de jovens nacionalistas bascos da chamada esquerda abertzale, marcadas por violência e pela tática do confronto direto com as forças policiais, e consideradas pela polícia como atos terroristas. O termo ganhou ampla repercussão midiática com o aumento de tais manifestações nos anos 1990, notadamente após a detenção do núcleo dirigente na França, em 1992.
Prenunciando o desarme definitivo do ETA, as manifestações passaram a ser cada vez menores no final da primeira década do século XXI, com manifestações residuais até o final da atuação do grupo. A menção hoje deste fenômeno para significar outras situações bastante distintas daquelas ocorridas no contexto de atuação do ETA não deixa de ser um elemento importante para se perceber como certas experiências passadas ainda socialmente sensíveis são mobilizadas politicamente.
Um caminho interessante para entender estas modalidades de uso do passado segue pelas várias formas de nacionalismo que encontram espaço na Espanha ao longo de sua história. Se hoje o tema do nacionalismo catalão e seu desejo independentista ocupa um lugar central nas discussões políticas, é porque, além da sua ampla repercussão midiática, ele entra em choque direto com a defesa da unidade nacional espanhola.
A menção ao passado etarra para se referir a este presente catalão complexifica a situação, já que insere outra dimensão nacionalista no jogo político. Assim, em uma síntese excessivamente resumida, neste jogo atuam várias ideias de nação, desde formas mais centralizadoras que unificam a Espanha, algumas alimentadas por uma evidente nostalgia franquista, até outras formas regionalizadas, conforme determinadas culturas locais e suas demandas políticas em favor da autonomia e da instauração de outras modalidades de governo (como a República Catalã, por exemplo).
De todo modo, seja para se referir a situações como o independentismo republicano catalão, seja para estabelecer uma analogia grosseira com movimentos sociais contra-hegemônicos, o recurso à memória das violências cometidas especificamente pelo ETA ou de forma mais difusa pelo radicalismo nacionalista basco em geral não deixa de ser também um uso político do trauma, uma forma estratégica de se valer daqueles passados dolorosos que ainda assombram o presente, transformando as demandas políticas atuais em questões cuja espessura temporal atravessa vários contextos históricos distintos. O que parece ser uma questão candente na Espanha contemporânea é o diagnóstico a respeito dessa delicada situação envolvendo o passado presente etarra: o que fazer com ele?
Gestão da memória
O que se percebe, enfim, em toda essa complexa situação envolvendo um passado recente de difícil resolução é o fato de que, para a existência plena de uma sociedade democrática, torna-se imprescindível encontrar formas socialmente construídas e institucionalmente elaboradas de trabalho de gestão da memória, por meio do qual o jogo entre a recordação e o esquecimento não implique a omissão do presente e sua desresponsabilização em relação a passados que ainda produzem efeitos profundamente sensíveis, seja pelo trauma produzidos em suas vítimas, seja em razão dos usos contemporâneos que deles são feitos como instrumentos das disputas políticas atuais. A segunda parte deste texto será voltada para a reflexão sobre algumas formas assumidas por este trabalho, tanto no campo da literatura quanto no da historiografia.
Notas
[1] Mesmo que todo um imaginário étnico articulado desde o século XIX opusesse uma monarquia espanhola aos povos bascos, considerados como povos conquistados, imaginário este ressignificado a partir da Guerra Civil e de seus efeitos posteriores (quando símbolos bascos foram proibidos e a língua euskara marginalizada), seu contexto de surgimento vincula-se diretamente ao ambiente social e econômico de meados do século XX, contexto de crescente industrialização do País Basco, de emergência de movimentos proletários e de apropriação de perspectivas teóricas ligadas ao marxismo e a outros movimentos independentistas, como o irlandês encabeçado pelo IRA. Em tal contexto, a defesa da identidade basca se justapunha à luta de resistência contra a ditadura franquista.
Referências Bibliográficas
LEONISIO, Rafael; MOLINA, Fernando; MURO, Diego (ed.). ETA’s Terrorist Campaign. From violence to politics, 1968-2015. New York: Routledge, 2017.
PORTELA, Edurne. El eco de los disparos. Cultura y memora de la violencia. Barcelona: Galaxia Gutemberg, 2016.
RIVERA, Antonio (ed.). Naturaleza muerta. Usos del pasado en Euskadi después del terrorismo. Zaragoza: Prensas de la Universidad de Zaragoza, 2018.
Como citar este artigo
NICOLLAZI, Fernando. Democracia, violência e sociedade: o grupo terrorista ETA e os usos de seu passado na Espanha (Artigo). In: Café História – História feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/grupo-terrorista-eta-usos-do-passado/. Publicado em: 15 jul. 2019.