Um novo olhar sobre Georges Duby: muito além do medievalista

8 de janeiro de 2018
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Entrevista com Felipe Brandi, historiador carioca que defendeu, na França, uma original e elogiada tese de doutorado sobre Georges Duby.

Entrevista por Bruno Leal

Em junho deste ano, uma das defesas de doutorado mais elogiadas na École des hautes études en sciences sociales (EHESS) intitula-se “Georges Duby: Penser l’histoire. La construction d’un modèle d’histoire sociale en France (1950-1980)”, em português, “Georges Duby: pensar a história. A construção de um modelo de História Social na França (1950-1980)”. A tese tem sido mencionada por alguns historiadores como a primeira grande análise de Georges Duby (1919-1996), o famoso medievalista francês e um dos grandes nomes do movimento da “Escola” dos Annales. Isso por si só já seria suficiente para despertar a atenção dos historiadores brasileiros. Mas há um outro dado importante aí: a tese foi escrita por um carioca, o historiador Felipe Brandi.

Em entrevista exclusiva ao Café História, Brandi conta como surgiu a ideia do projeto, explica sua reflexão, que perguntas ele tenta responder no decorrer do trabalho e suas principais conclusões. O centro de sua problemática é tão interessante quanto original: “a minha tentativa consistiu em ler a obra de Georges Duby não pelo que ela dizia da Idade Média, pelas suas teses e posições de medievalista”, sublinha Brandi, e completa: “mas ao contrário, pelo uso que ela fazia do instrumental teórico disponível na França da segunda metade do séc. XX, pela sua forma de interagir com o trabalho de outros historiadores, de flertar com o pensamento de outros cientistas sociais”.

Bruno Leal: Felipe, muito obrigado por conversar com o Café História. Você defendeu recentemente na École des hautes études en sciences sociales (EHESS), de Paris, a sua tese de doutorado, que discute a importância de Georges Duby na construção de um modelo de História Social na França. Você pode dar um panorama geral da sua tese para o nosso leitor? Que pergunta você tenta responder no trabalho?

Felipe Brandi: A minha tese procura entender como se formou e como, ao longo de 30 anos, foi pouco a pouco se transformando um projeto pessoal de História Social que, a meu ver, atravessa de ponta à ponta a obra de Georges Duby, lhe conferindo unidade e uma coerência impecável. Este projeto de História Social próprio a Georges Duby pode ser apresentado, em linhas (muito) gerais, como uma tentativa de se traçar uma via especificamente historiadora de compreensão de algumas das grandes questões que atormentavam as ciências sociais francesas de meados do século XX, por exemplo: a formação das relações de dominação entre grupos sociais, o poder de violência simbólica das ideologias, os fatores diversos que podem levar à vitória de modelos desiguais de sociedade, etc. Por “via especificamente historiadora”, eu entendo, em particular, um desejo por parte do Duby de encontrar, para cada uma dessas grandes questões, uma resposta que aparecesse como própria e exclusiva à História – i.e., como fundada exclusivamente nos instrumentos tradicionais da prática do historiador (cronologia, datas, observação temporal através de cortes longitudinais, atenção à ação dos acontecimentos, perfil empírico de pesquisa, crítica das fontes e dos testemunhos, transformações semânticas, entre outros). Ou seja, o seu objetivo sendo o de propor a estas questões mais vastas, a estes desafios coletivos, uma solução que pudesse servir de modelo a ser adotado pelos especialistas de outras áreas, o que é uma forma de tentar legitimar o papel da História como “ciência piloto” frente às disciplinas vizinhas.

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Felipe Brandi, tese de doutorado sobre Duby. Foto: acervo pessoal do entrevistado.

Qual pergunta eu tento responder? Há, na realidade, um feixe de perguntas que me servem de ponto de partida e que me acompanham ao longo de toda a demonstração: ao contrário daquilo que se costuma muitas vezes dizer, penso que as perguntas que nos servem de ponto de partida para uma tese não persistem tais quais ao longo de todo o texto, mas não param de evoluir e de se transformar, à medida que se precisam, ora se fracionando e se subdividindo, ora ao contrário se amalgamando, ora enfim se metamorfoseando e passando de a para b, de b para c e assim por diante. Num texto mais extenso e denso como o de uma tese de doutorado, é muito comum as perguntas iniciais serem a meio caminho respondidas, mas apenas para dar lugar a novas perguntas que, por sua vez, serão pouco a pouco parcialmente respondidas e cujas respostas engendrarão inevitavelmente novas dúvidas e novas interrogações. Em certa medida, pode-se dizer que a ambição de uma tese é menos a de desenrolar uma longa resposta frente ao seu leitor do que a de lhe expor o desdobramento de um conjunto de interrogações insistentes.

Dito isto, e para não esquivar a sua pergunta, eu penso que o problema que eu procurei enfrentar foi o de tentar saber onde este projeto “exclusivamente historiador” do Duby iria desembocar, o de entender em que medida ele permitiria (ou não) rejuvenescer a abordagem destes grandes temas, e quais desafios este programa do Duby acaba maliciosamente por lançar às demais Ciências Humanas. Em torno disso, procurei compreender como o Duby brigou para que as suas propostas fossem reconhecidas, como uma conjuntura intelectual movediça o obrigou a reajustar continuamente o seu programa e, enfim, como este seu projeto acabou por se converter num processo contra a chamada História das Mentalidades (setor que o próprio Duby, 20 anos antes, havia ajudado a promover).

Bruno Leal: Concordo bastante com você quanto a essas metamorfoses que as nossas perguntas vão sofrendo no decorrer da pesquisa e da própria escrita. Bom, e por falar em perguntas, aqui vai outra, igualmente difícil de responder, eu suponho: qual teria sido a sua principal conclusão na tese? 

Esta é uma questão particularmente difícil. Idealmente, eu espero que diferentes leitores possam extrair diferentes conclusões da conclusão final de minha tese, onde retomo um conjunto de problemas que foram levantados nos capítulos precedentes. Mas talvez eu possa assinalar que a conclusão da minha tese chama a atenção para o fato de que este projeto de História Social do Duby acaba culminando – talvez a contragosto – no processo de esgotamento dos grandes paradigmas (seja o estruturalismo, seja o marxismo, seja a ambição de uma História total) que afeta a História e as Ciências Sociais francesas a partir da virada da década de 1980.

Bruno Leal: Como surgiu esse tema de pesquisa? Que fontes você usou?

A origem do meu interesse pela obra de Georges Duby remonta a uma data distante, ainda nos anos 1990. Este tema surgiu, mais propriamente, do meu fascínio pelos trabalhos do Duby e de uma vontade de melhor conhecer o que estava por detrás dos seus textos, de identificar aquilo que, a meu ver, tornava o seu pensamento e a sua leitura da sociedade medieval tão originais. A minha proposta foi, então, a de partir em busca do seu “quadro teórico”, por assim dizer: as principais referências que definiam a sua grade interpretativa, os modelos historiográficos disponíveis e em voga na sua época, a sua maneira pessoal de trabalhar e de conceber o ofício do historiador, etc.

De certo modo, a minha tentativa consistiu em ler a obra de Georges Duby não pelo que ela dizia da Idade Média, pelas suas teses e posições de medievalista, mas ao contrário, pelo uso que ela fazia do instrumental teórico disponível na França da segunda metade do séc. XX, pela sua forma de interagir com o trabalho de outros historiadores, de flertar com o pensamento de outros cientistas sociais. É preciso lembrar que não havia então qualquer estudo (ou proposta de estudo) da obra de Duby que fosse nessa direção. É certo, o seu trabalho era amplamente comentado, mas sempre em função de questões empíricas relativas ao conhecimento da sociedade dos séculos XI e XII. Desejando propor uma leitura da sua obra como uma contribuição ao pensamento das Ciências Sociais francesas, a minha impressão inicial era a de que teria de começar quase do zero. Precisando, assim, partir de uma leitura intensiva de seus escritos, e me apoiando nas suas numerosas entrevistas, nas quais Duby deixou transparecer muito da sua visão acerca do trabalho do historiador, visão que ele preferia justamente não explicitar em suas publicações.

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Georges Duby (1919-1996). Foto: Posfácio (blog)

Isso me leva diretamente à sua segunda pergunta, acerca das fontes. Não dispondo de um debate consolidado em torno da obra de Duby frente ao qual eu poderia me posicionar – comumente, são estes debates já constituídos que acabam definindo, desde fora, o campo e a problemática de uma pesquisa –, fui num primeiro momento obrigado a construir inteiramente o meu questionário sobre a leitura cruzada dos textos do Duby e de outros intelectuais de sua época. A consulta dos arquivos privados se deu num momento mais avançado da pesquisa e foi levada a cabo de maneira a preservar, tanto quanto possível, o quadro problemático do qual eu havia partido. Trabalhei de perto com os arquivos do acervo pessoal de Georges Duby, atualmente conservados pelo Institut Mémoires de l’Édition Contemporain (IMEC), na abadia de Ardennes, nos arredores de Caen. Utilizei as fontes as mais diversas: notas de curso, manuscritos, correspondência profissional e cartas a diversos destinatários, fichas de leitura, documentação relativa ao seu seminário, entre outras. Este trabalho foi, em seguida, complementado com uma pesquisa na biblioteca pessoal de Duby, que se encontra hoje na Maison Méditerranéenne des Sciences de l’Honme, em Aix-en-Provence, e enfim com a consulta de outros acervos privados, como os arquivos pessoais de Fernand Braudel, na Academia Francesa, e os de Robert Mandrou, nos Arquivos Nacionais em Paris. Gostaria de acrescentar aqui o quanto sou grato ao apoio, ao incentivo e ao encorajamento da Senhora Andrée Duby, assim como da Senhora Paule Braudel e da Senhora Christiane Mandrou, que confiaram em mim e me deram autorização para trabalhar, com plena liberdade, nestes arquivos.

Bruno Leal. Seu orientador foi o historiador François Hartog, certo? Quem mais estava na sua banca de defesa?

Exato. A minha tese foi orientada pelo professor François Hartog. Faziam ainda parte da banca Yann Potin (Arquivos Nacionais de Paris) e os professores Jacques Revel (EHESS) e Patrick Boucheron (Collège de France).

Bruno: Nossa conversa foi tão bacana, que eu já estou querendo saber o que você está fazendo no momento. Quais são suas perspectivas e planos?

A tese foi defendida recentemente e estou atualmente à procura de novas possibilidades para desenvolver o meu trabalho de pesquisa. Os meus planos são o de transformar a minha tese em publicações e o de estender os resultados que obtive à reflexão de outros representantes da escola histórica francesa.


Felipe de Souza Dias Brandi – Possui graduação em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1998), mestrado em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2001) e doutorado em Histoire et Civilisation pela Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales (2017). Tem experiência na área de História, com ênfase em Historiografia, atuando principalmente nos seguintes temas: Georges Duby, histoire de l’historiographie, historiografia, Monteiro Lobato e historiografia francesa.

Bruno Leal Pastor de Carvalho – Professor Substituto de Teoria da História no Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor do Instituto de História pelo programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD), vinculado ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É doutor em História Social pela UFRJ (2015), mestre em Memória Social pela UNIRIO (2009) e especialista em História Contemporânea pela PUCRS (2010). Graduado em História pela UERJ (2006) e em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo pela UFRJ (2006). É fundador e editor do portal Café História, além de cocoordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos e Árabes da UFRJ (NIEJ). É membro da Rede Brasileira de História Pública e da Associação das Humanidades Digitais. Seu campo de interesses inclui: holocausto, crimes de guerra, história pública digital e divulgação de história.


Como citar essa entrevista

BRANDI, Felipe de Souza Dias. Um novo olhar sobre Georges Duby: muito além do medievalista (Entrevista). Entrevista concedida a Bruno Leal Pastor de Carvalho. In: Café História – história feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/georges-duby-e-historia-social/. Publicado em: 8 jan. 2017. Acesso: [informar data].

Bruno Leal

Fundador e editor do Café História. É professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em História Social. Tem pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisa História Pública, História Digital e Divulgação Científica. Também desenvolve pesquisas sobre crimes nazistas e justiça no pós-guerra.

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