Não é de hoje que futebol e política se misturam. Desde a popularização do esporte, na década de 1930, governos nacionalistas e fascistas logo perceberam o grande potencial de exploração que o futebol oferecia. Assim, seleções nacionais e alguns times foram usados como vitrine ou distração por diversos governos, principalmente em períodos ditatoriais. No entanto, as manifestações políticas também podem ser vinculadas por meio de símbolos, como os uniformes, e por ações dentro do campo.
Os recentes eventos envolvendo o então presidente da CBF, Rogério Caboclo, em junho de 2021, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, e a insistência para a realização da edição da Copa América 2021 em território brasileiro lembram episódios dos tempos da Ditadura Militar Brasileira. Um deles começa com a pífia campanha da seleção brasileira em 1966, eliminada ainda na fase inicial do torneio, o que determinou o início da intervenção dos militares na CBD (antecessora da CBF) ainda no governo Castello Branco.
As interferências se intensificaram depois que o General Médici assumiu a presidência do país. Médici sempre foi reconhecido como um apaixonado por futebol. Ele era frequentemente era visto acompanhando os jogos do rubro-negro no Maracanã com seu radinho de pilha. A principal mudança ocorrida durante a sua gestão se deu meses antes da copa do mundo de 1970. A versão oficial nunca foi confirmada, mas é fato que o João Saldanha, então técnico da seleção, e o general Médici não concordavam em diversos aspectos políticos e esportivos. O técnico chegou a confrontar o presidente durante uma entrevista, respondendo às críticas de Médici sobre a convocação de Dadá Maravilha para a seleção. Após os diversos choques com o governo, Saldanha foi afastado do comando. Zagallo acabou assumindo a comissão técnica da Canarinho.
O Brasil sagrou-se tricampeão mundial em 1970 com uma delegação recheada de militares, do chefe da delegação aos preparadores físicos. A campanha brasileira foi um sucesso político e social, e, claro, desportivo. A copa do México foi a primeira a ser transmitida ao vivo pela televisão no Brasil e foi amplamente mostrada como o efeito da modernização e da inovação tecnológica que o governo trouxe ao país. A euforia da conquista também serviu de distração das diversas denúncias de desaparecimentos, torturas e pouca liberdade de expressão que ocorriam no país.
A resposta aos militares viria na década seguinte, no que, provavelmente, foi o maior exemplo nacional de mistura de futebol e política na história brasileira. Em meio ao desgaste da ditadura militar e o processo de reabertura do país, o Corinthians começou a instaurar um ambiente extremamente democrático dentro do clube.
O Movimento da “Democracia Corinthiana”, nome criado pelo publicitário Washington Olivetto, tinha como principais líderes os jogadores Sócrates, Casagrande, Zenon e Wladmir. Entre os anos 1982 e 1984, todas as mais importantes decisões no Corinthians foram tomadas em conjunto. Presidente, diretores, comissão técnica e jogadores conversavam e votavam questões envolvendo horário de treino, contratações, demissões etc. A inusitada organização interna rendeu bons frutos ao “Timão”, que, com o grupo unido, conquistou dois campeonatos paulista e, assim, conseguiu diminuir a dívida do clube.
Dentro dos gramados, o movimento teve ainda mais impacto. Em 1982, o Brasil teria sua primeira eleição direta desde 1960, para eleger os governadores dos Estados. Os jogadores corintianos, então, vestiram camisas com frases apoiando o movimento “Diretas Já” e incentivando a população a votar, ações estas que foram amplamente registradas pelos principais meios de comunicação da época.
Futebol e política na Espanha
Não foi apenas no Brasil que um governo ditatorial utilizou o futebol como ferramenta para melhorar ou garantir sua popularidade. Na Espanha, como pontua Daniel Gómez, o General Franco implementou o chamado nacionalfutbolismo, política que significava criar e fortalecer o nacionalismo espanhol a partir do futebol. Assim, o esporte virou questão de Estado. Segundo explica Eduardo Calleja, o futebol se tornou peça-chave da propaganda ideológica franquista, com objetivo de cativar, principalmente, os jovens.
O time escolhido para esse projeto foi o Real Madrid, em grande parte devido à fama construída no exterior, graças às excursões que o time fazia na Europa e nas Américas durante a década de 1920, no período da ditadura de Primo de Rivera.
Enquanto os Merengues ganhavam notoriedade dentro e fora da Espanha, os demais times sofriam com a perseguição e o aparelhamento do governo franquista. O Barcelona, por exemplo, teve o presidente e os membros administrativos presos (e alguns executados) durante o governo franquista. Os catalães eram substituídos por cartolas ou militares ligados ao Franco e comandavam o time “Blaugrana”.
Os “anos dourados” do Real Madrid (1955-66) aconteceram justamente na reabertura internacional da Espanha, após o término do período de exclusão do país ibérico determinado pelos Aliados no pós-guerra. Segundo Calleja, foi a oportunidade perfeita para relançar os “Blancos” no cenário internacional e mostrar o poderio do futebol espanhol.
As principais evidências que corroboram a tese de que o Real Madrid foi ajudado pelo governo Franco ocorreram ainda no começo da ditadura. Em junho de 1943, Real Madrid e Barcelona protagonizaram uma das maiores goleadas do El Clásico. Era a partida de volta das semifinais da Copa del Generalíssimo (hoje chamada Copa del Rey). No primeiro jogo, dentro dos domínios barceloneses, os catalães ganharam de 3×0. Entretanto, em Chamartín, primeiro estádio do Real Madrid, a situação foi bem diferente. Os Merengues ganharam de 11×1, em uma partida repleta de erros de arbitragem e os relatos de jogadores do Barcelona de que membros da polícia franquista entraram no vestiário e os ameaçaram com mandado de prisão caso não voltassem para o segundo tempo.
Em 1953, aconteceu uma outra polêmica envolvendo os dois rivais. O Barcelona contratou o argentino Alfredo Di Stéfano, porém, poucos dias depois o Real Madrid anunciou a contratação do mesmo atleta. Os catalães trataram diretamente com o River Plate, dono dos direitos de Di Stéfano, enquanto os madrilenhos negociaram com o Millionários da Colômbia, equipe onde a “Seta Rubia” jogava por empréstimo. O Conselho Nacional de Desportes teve que interferir na situação e propôs que o argentino jogaria uma temporada por clube, de forma alternada. O Barcelona não aceitou o trato por sentir-se lesado e foi obrigado a abrir mão do futuro craque.
Outras experiências
Há ainda os casos onde a manifestação política parte da federação de futebol do próprio país. Recentemente, a Associação Ucraniana de Futebol (UAF) divulgou o uniforme que a seleção usará durante a Eurocopa 2020 (jogada em 2021). A camisa traz dois temas polêmicos que refletem bem a política externa e a história contemporânea do país. O primeiro detalhe que aparece é o contorno do território ucraniano estampado no meio da camisa. A questão é que o desenho abrange a península da Crimeia, ocupada por tropas russas desde 2014 e anexada ao território russo desde 2019. Apesar do controle do governo Putin, a comunidade internacional considera que a Crimeia ainda é uma região autônoma da Ucrânia. A região é centro de disputa entre Moscou e Kiev desde a dissolução da antiga União Soviética. Além das questões étnicas e nacionalistas, controlar a Crimeia significa ter acesso ao Mar Negro, o que, por sua vez, garante navegação em águas que não congelam no inverno e que facilitam o comércio.
A outra polêmica está nas frases escritas no verso do manto ucraniano: “Glória à Ucrânia! Glória aos heróis!”. O primeiro grito tem raízes no final do século XIX e início do XX durante as guerras de independência da Ucrânia, porém se tornou popular entre as décadas de 1940 e 1950. O primeiro e o segundo cânticos foram combinados e adotados como slogan da Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN) e do Exército Insurgente Ucraniano (UPA). Essa última era uma milícia fascista e nacionalista responsável pelo massacre étnico de poloneses na região da Volínia e Galiza Oriental. A UPA também lutou contra o exército soviético durante a Segunda Guerra Mundial. Os dizeres passaram a ser considerados como saudação oficial do país após a “Revolução Ucraniana de 2014” e a chegada de Petro Poroshenko ao poder.
O Kremlin considerou que tanto o mapa contendo a região da Crimeia, quanto as frases nacionalistas são uma provocação de Kiev pelos conflitos na península anexada. A Rússia entrou com pedido na UEFA para que a Ucrânia seja impedida de usar a camisa em campo. O choque político pode ganhar contextos ainda mais dramáticos, uma vez que a seleção comandada por Andreiy Shevchenko pode jogar em São Petersburgo, na Rússia, a depender da sua posição na classificação em seu grupo na competição europeia.
A frase “Glória à Ucrânia” também foi assunto durante a Copa do Mundo da Rússia. Ela foi dita pelo zagueiro croata Domagoj Vida após sua seleção eliminar os anfitriões nas quartas de final da Copa do Mundo em 2018. Vida, à época jogador do Dynamo de Kiev, apareceu em um vídeo no vestiário após a classificação gritando a saudação. Torcedores e autoridades russos classificaram o ato como uma provocação e o croata foi multado pela FIFA.
Como tudo que é criado pelo homem e faz parte do dia a dia da humanidade, o futebol também acaba por se misturar ao contexto político e social do meio em que vive. As quatro histórias contadas nesse artigo são apenas alguns dos diversos exemplos existentes em décadas do esporte mais popular do planeta.
Seja em comemorações, camisas, bandeiras, faixas, dentro ou fora de campo, a política sempre estará presente em uma partida de futebol. Por vezes de forma positiva, em defesa da democracia, à exemplo do que vimos com a “Democracia Corintiana”, por vezes de forma negativa, como expressão de persistentes fascismos. Seja como for, torcer é, e sempre será, um ato político. E os governos, líderes políticos e ideológicos já perceberam isso há décadas. “A seleção é a pátria de chuteiras”.
Referências bibliográficas
PIRES, Breiller; A seleção que presentou a ditadura com uma taça. El País Brasil. São Paulo, 07 de junho de 2020. Disponível aqui. (Acesso em 12/06/21 às 18:30);
Democracia Corinthiana, disponível aqui (Acesso em 14/06/21 às 20:10)
GÓMEZ, Daniel; La Pátria del Gol; Alberdania, 2007;
CALLEJA, Eduardo González; “El Real Madrid, ¿”equipo de españa”? Fútbol e identidades durante el franquismo”. Política y Sociedad, Vol 51, Núm. 2: 275-296, 2014;
World Cup 2018 Gets Political: The Nazi and anti-Russian Roots of ‘Glory to Ukraine’, disponível aqui. (Acesso em 14/06/21 às 21:41)
Como citar este artigo
FLORES, Theo. Futebol e política se misturam? A história diz que sim. (Artigo). In: Café História. Publicado em 21 junho de 2021. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/futebol-e-politica-na-historia/ ISSN: 2674-5917.
Como grande fã de futebol e especialmente do SCCP, digo com grande propriedade que a tal “Democracia Corinthiana” nem era democracia, na verdade era um movimento autoritário de uns 4 ou 5 gato pingado que tinha influência no clube e que só se notabilizou por conta de que já havia uma mobilidade nacional contra o regime militar e que o Olivetto aproveitou (na época ele trabalhava no marketing do Corinthians) e lançou, nada contra a ideia, foi muito legal por sinal. Mas o movimento em si, foi muito mais falácia do que realidade, onde já se viu que se os caras decidiam não treinar, ninguém mais podia treinar? Peraí, cadê a democracia nisso, uma coisa boba. Sempre os mesmos que decidiam o que deveria ser feito, se alguém era contra então tava “rachando o grupo”, vide o Émerson Leão dentre outros menos conhecidos q,ue ao contrário dele, tinham era medo de se posicionar contra o que o grupinho “democrático” determinasse. Três exemplos disso foi o afastamento e posterior expulsão (perdoe o exagero, mas é o que parece) de três jogadores que se não se posicionavam contra também não eram a favor da tal democracia: o Goleiro Rafael (que seria campeão brasileiro em 1985 com o Coritiba), PC Caju e em 1983, o próprio Leão. Eu concordo muito com o que o Lugano disse que a “democracia” corinthiana foi romantizada e foi mesmo.
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