O problema do “derradeiro” certamente habita o imaginário do mundo cristão, as narrativas dos historiadores, o pensamento dos filósofos e dos mais diversos povos, produzindo efeitos de curta, média e longa duração no modo como as pessoas se relacionam com o seu próprio fim, ou, para o que nos importa neste momento, com a “ideia do fim do mundo”.
A história mostra que em momentos de crise aguda, de fome, pestes ou guerras, o medo do fim se torna mais latente e se manifesta de diversas maneiras. Elementos como a desesperança e a crença demasiada, a fuga e o apelo aos discursos religiosos dogmáticos que dão contornos ao problema, tornam o fim do mundo um momento negativo e aterrador.
Neste artigo, meu objetivo é explorar como a ideia de fim do mundo e do medo do fim costumam assumir diferentes formas. Para isso, faço uma ponte entre a Idade Média [1] e o nosso tempo presente, evidenciando que a História, muito mais do que a mera descrição de fatos passados, nos permite tomar o passado como uma forma de problematizar o presente.
O medo é um acontecimento que ultrapassa os marcos e limites temporais que criamos para ordenar o caos e dar sentido aos fatos. E ele talvez nunca tenha estado tão vivo quanto agora.
A escatologia medieval e seus medos
Se para certas narrativas históricas, o futuro é um lugar positivo, um momento de libertação e de prosperidade sem fim, e, por isso, todo sofrimento no presente e no passado pode parecer justificável, para a leitura medieval do livro do Apocalipse, o futuro é negativo e penoso: trata-se do fim do mundo como o conhecemos, a chegada do Anticristo e do Juízo final, o momento de responder pelos atos do passado e quando Cristo vai separar os bons dos ruins para julgá-los. Essa ideia do fim é o que a tradição cristã chama de escatologia, do grego eschata, que quer dizer “as últimas [coisas]” [2]. Trata-se, portanto, das ideias que concernem ao fim do mundo, que são também consubstanciadas no milenarismo, nome que é dado a crença de que depois de mil anos haverá sobre a terra mais mil anos de prosperidade sob o governo de Jesus.
Ora, esse imaginário bíblico [3] tem criado ao longo da história uma sensação generalizada de medo no mundo Ocidental e uma enorme curiosidade pelo que “vem depois” do fim, isso é, o “além”. Esse misterioso lugar religioso descrito pela arte, pelos intelectuais da Igreja Católica ou pela literatura, medieval ou outras, pode ser o céu, o inferno ou até mesmo o purgatório, este último, pelo menos, desde o século XII, quando foi inventado pelo discurso católico.
Dois momentos do medievo são particularmente marcantes para se pensar o fim do mundo e o medo que ele produz: a passagem do ano mil e a crise da peste do século XIV.
A passagem do ano mil
Em 1967, o historiador medievalista francês Georges Duby lançou um pequeno, mas magistral livro, intitulado O ano mil. Nele, Duby mostra que, não só às vésperas do ano mil, mas em grande parte do medievo, o medo do fim do mundo e o discurso apocalíptico e milenarista faziam parte do cotidiano das pessoas, podendo ser intensificado por fatores ou momentos específicos. Duby, em outra obra sobre o mesmo tema, a Ano 1000, ano 2000: na pista de nossos medos, lembra ainda que, ao final do ano mil, os homens e mulheres medievais estavam em uma “inquieta” e “permanente” espera pelo fim do mundo.
O imaginário medieval era habitado pela ideia de fim do mundo e, na leitura de Duby, este medo era elemento chave para manter e reproduzir os laços hierárquicos da sociedade feudal, sobretudo a ideia de uma sociedade tripartida entre os que rezavam, os que guerreavam e os que trabalhavam. O discurso milenarista se baseava na noção de que o Apocalipse mostrava que, depois de mil anos, desde a morte de Cristo, o Anticristo viria para atormentar o “mundo dos homens”. Duby explica: “todo o mundo acreditava nisso e aguardava o dia da cólera que provocaria, evidentemente, o tumulto e a destruição de todas as coisas visíveis” [4]. Em outras palavras, o medo do fim do mundo era um dos pilares deste mundo.
A peste bubônica
A peste bubônica do século XIV parece ter sido outro signo muito forte do fim do mundo a atormentar homens e mulheres do medievo. “A peste negra”, como ainda é conhecida no senso comum, a despeito do enorme preconceito que este nome emana, foi a maior tragédia que o período medieval conheceu. Estudos calculam que a bactéria Yersinia pestis, presente em pulgas infectadas e causadora da “peste”, mataram cerca de 50 milhões de pessoas na Europa, o que, na época, corresponderia a algo entre 25 e 60% da população do continente.
Todo o imaginário do fim do mundo apocalíptico se transfigurou no século XIV em um medo real e imediato da morte, muito mais palpável do que acontecera na virada do milênio. A vinda do Anticristo consiste exatamente no estímulo à ideia de que aquele mundo teria ocorrências apocalípticas, catástrofes naturais ou pestes e mortes.
Se aos arredores do ano mil não se tem notícia de uma peste tão devastadora, nos anos 1300, parece que um dos cavaleiros do Apocalipse descritos na Bíblia descia na Terra e estava a preparar o começo do fim. A peste foi uma espécie de corporificação dos medos do imaginário. Ela parecia mostrar a ira divina com os pecados do mundo e, ao mesmo tempo, a chegada tempestuosa do Anticristo. O historiador Jean Delumeau, que dedicou boa parte de sua carreira a escrever uma “história do medo”, argumenta que a peste é, por vezes, vista “como um dos cavaleiros do Apocalipse, como um novo ‘dilúvio’, como um ‘inimigo formidável'”. [5]
Se os padres da Igreja se esforçavam por afastar o juízo final para um tempo longínquo e distante, a peste trazia ao seio das famílias e das comunidades o momento exato do derradeiro, do juízo e do ajuste de contas com o divino. Desse modo, o imaginário do fim aliado às condições concretas e históricas da morte, trazidas pela peste, fez acender e reanimar inimigos comuns ao mundo medieval, como os verdadeiros responsáveis pela ira divina e pelas mazelas da peste. Trata-se de um verdadeiro paradoxo medieval: a peste representava sim a ira divina, mas, ao mesmo tempo, a vinda do Anticristo – logo, era também uma obra do demônio. Assim, as explicações dadas ao fenômeno eram diversas. Delumeau descreve que há relatos medievais que afirmavam ser a peste tanto resultado do desapontamento de Deus em função dos pecados do mundo, uma espécie de punição divina, quanto obra de hereges ou povos que sempre tiveram como objetivo destruir a civilização cristã, como os judeus.
A peste produziu uma realidade devastadora tanto nas emoções das pessoas, quanto em seus corpos físicos. Mas, é preciso ter em conta que a vida dos medievais era, em todos os aspectos, vivida desde a ideia de pecado. A história era pensada como antes e depois da queda do paraíso, antes e depois do Juízo final ou antes e depois da vinda do Anticristo. Além do mais, a vida cotidiana das pessoas as fazia lembrar do pecado o tempo todo e isso se dava através de uma série de rituais como o batismo, as confissões, os jejuns, as penitências, as orações, as peregrinações e até mesmo o autoflagelo [6]. Observe-se que na época da peste do século XIV surgiu o movimento dos flagelantes, que usavam o autoflagelo, isto é, a prática penitente de impingir dor e sofrimento ao próprio corpo, como um modo de aplacar a ira divina, em função do medo de um fim que se aproximava.
Os nossos medos, hoje
O medo medieval do fim do mundo se atualiza entre nós. Isso acontece na tradição cristã em geral, nos discursos apocalípticos de determinadas religiões e crenças, e até num imaginário, ainda presente, na literatura, na televisão e no cinema. O derradeiro não deixou de ser um problema. Há bem pouco tempo o próprio campo historiográfico teve medo do fim da história, quando a teleologia[7] que serviu, por muito tempo, para afirmar o dia em que chegaríamos alegres e felizes numa sociedade igualitária e comunista, deu lugar a um fim bem pouco generoso e bem pouco poético, o capitalismo liberal seria a última porta, antes do além.
Mas a História se serve da diferença do passado para pensar o presente e para problematizar nossas urgências e, neste caso específico, os nossos medos: do fim, do derradeiro, da morte.
A pandemia do novo coronavírus tem se mostrado um problema de proporções gigantescas para governos e para as relações cotidianas das pessoas. São, a esta altura, mais de 3,5 milhões de casos confirmados e mais 200 mil mortos em todo o mundo. As imagens de corpos depositados nas calçadas, no Equador, aguardando dias para serem retirados; as imagens de caminhões do Exército transportando corpos da cidade de Bérgamo, na Itália, para serem cremados em outro lugar ou mesmo a foto de um cemitério paulista com inúmeras covas abertas, a espera de pessoas pobres mortas pela doença, constituem um imaginário da morte e do fim que parecia jamais ser partilhado no que a nossa contagem do tempo chama de século XXI.
Antes, estudar o ano mil ou a Peste do século XIV parecia um exercício necessário de empatia com as pessoas, quando a morte e o medo invadia sua casa e sua mente, num passado distante; hoje, não se trata, obviamente, de saber exatamente como se sentiam os medievais, mas trata-se, sim, de imaginar os medos do outro, exercício que ultrapassa os limites da própria empatia, para poder supor como eles enfrentaram os problemas atinentes à peste e aos sentimento de medo do fim. Pensar historicamente o medo não significa sentir o mesmo que o outro, mas simpatizar com as problemáticas que os atinem, a fim de criar possibilidades de resolução, entender o modo como esses outros se relacionaram com seus medos, para ampliar o repertório do que se pode pensar sobre como enfrentar os nossos medos.
Eis uma razão bem plausível para estudarmos e aprendermos história. Quando o domínio do medo nos levar a tomar decisões irracionais e perigosas (no sentido, por exemplo de atribuir o mal ao outro), o conhecimento histórico pode bem permitir a compreensão e a possibilidade de se ter uma “ideia adequada”, a fim de não sucumbir à negatividade das “paixões tristes”.
Se a Idade Média é diferença em relação ao que somos hoje, essa diferença se expressa tanto nas residualidades [8] medievais que são atualizadas no mundo atual, quanto em medos muito singulares, típicos e atinentes: medo do estrangeiro, medo do imigrante, medo da vacina, medo do comunismo, medo do antipatriótico, medo do isolamento social, dentre outros medos que fazem parte de um mundo onde a desigualdade estrutura nossas relações, as políticas governamentais e a distribuição dos benefícios.
Nesse sentido, se lá na Idade Média o pecado e o medo do fim do mundo estava intimamente ligado à manutenção da estrutura social daquele mundo, baseada numa ideia de que a sociedade deveria ser estática, estamental e imutável (os que trabalhavam, os que oravam e os que guerreavam), hoje, no capitalismo neoliberal, que assiste atônito o avanço da doença, os medos dos mais pobres tem a ver com a possibilidade de ter ou não o que comer no dia seguinte. Alcool gel, água corrente e sabonete, isolamento social e, consequentemente, o pânico que causa a proximidade do fim, se tornou um privilégio.
Diferentemente do que se pudesse pensar, o medo do fim não é um imaginário, hoje, compartilhado pelos mais pobres. O derradeiro, a morte e a desesperança é um medo partilhado por muitos outros que, em diversas gradações, possuem o privilégio de poder ter medo.
Notas
[1] Isso não quer dizer, contudo, que o medo ou mesmos as pestes constituem fenômeno exclusivo do mundo medieval.
[2]LE GOFF, Jacques & SCHIMITT, Jean-Claude.chimitt. Dicionário temático do Ocidente Medieval. Tradução de Hilário Franco Junior. Bauru, SP: EDUSC: São Paulo, SP, 2002.
[3] A vinda do Anticristo e o fim do mundo é referido em livros diferentes da Bíblia, entretanto, é o livro do Apocalipse que, na Idade Média (no século XI) se tornou muito popular, sobretudo, a partir dos comentários de Remídio de Auxerre. Uma série de outros pensadores e de outras pensadoras medievais irão descrever o fim e a vinda do Anticristo. Destaca-se, por exemplo, as visões de Hildegarda de Bingen, no século XII.
[4] DUBY, 1998, p. 20.
[5] DELUMEAU, 1989, p. 112.
[6] LE GOFF, 2002.
[7] Visão do mundo e da vida que se baseia num ponto futuro, que explica e dá sentido aos eventos do passado e, principalmente, do presente.
[8] Muitos pesquisadores têm se dedicado aos estudos sobre residualidades medievais. Trata-se de pensar, no presente, elementos culturais, imaginários, sociais do medievo, que sobrevivem como resíduos no tempo presente, no Brasil, atualizados e ressignificados. Um exemplo é o GERAM – Grupo de Estudos em Residualidade Antigo-Medieval. https://geram-uva.wixsite.com/geram.
Referências Bibliográficas
DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente: 1300-1800. Uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
DUBY, G. Ano 1000, ano 2000: na pista de nossos medos. Tradução de Eugênio Michel da Silva, Maria Regina Lucena Borges-Osório. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1998, p. 20.
DUBY, G. O ano Mil. 2ª Edição. Lisboa/Portugal: Edições 70, 1993.
FOLLADOR, Kellen Jacobsen. A relação entre a peste negra e os judeus. Revista Vértices. No. 20, 2016.
LE GOFF, Jacques & SCHIMITT, Jean-Claude.chimitt. Dicionário temático do Ocidente Medieval. Tradução de Hilário Franco Junior. Bauru, SP: EDUSC: São Paulo, SP, 2002.
Como citar este artigo
PEREIRA, Nilton Mullet. A ideia de “fim do mundo”: paralelos entre os medos do mundo medieval e o medo do novo coronavírus (Artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/fim-do-mundo-dos-medos-medievais-ao-novo-coronavirus/.Publicado em: 4 mai. 2020. ISSN: 2674-5917. Acesso: [informar a data].