Filosofia no Café

22 de dezembro de 2011
Entrevista com Eduardo Jardim (PUC-Rio)

O Café História também abre suas portas aos filósofos. Confira a entrevista que fizemos com Eduardo Jardim, professor do departamento de filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Ele é uma referência obrigatória no Brasil em Hannah Arendt, Martin Heidegger e no modernismo brasileiro, com especial ênfase no modernismo de Mário de Andrade. Jardim falou sobre seu novo livro, “Hannah Arendt: pensadora da crise e de um novo início, pela editora Civilização Brasileira; mas não ache que o papo acaba por aí. Ele também falou sobre as transformações políticas que testemunhou nas últimas décadas. Um olhar tão cativante quanto qualquer boa obra filosófica. Confira!

Eduardo Jardim
Eduardo Jardim é professor aposentado da PUC-Rio. Foto: acervo pessoal do entrevistado.

Bruno Leal: Professor, muito obrigado por conversar com o Café História. É um prazer enorme receber um filósofo tão importante em nossa rede. Começamos nosso papo falando, então, de Filosofia, a sua especialidade. Desde a sua entrada no curso de graduação na PUC-Rio, em 1969, já são mais de 40 anos dedicados à área. Como o senhor avalia essa trajetória? O senhor sempre se interessou pelos mesmos objetos ou eles mudaram com o passar do tempo?

Eduardo Jardim: Obrigado pela oportunidade dessa conversa com vocês. Estive sempre em contato com historiadores, tanto no ensino quanto na pesquisa. Fui professor colaborador do programa de pós-graduação em História Social da Cultura, na PUC-Rio, em um momento muito especial de parceria. Ainda este ano, Marcelo Jasmin e eu oferecemos um curso de Filosofia da História para alunos dos departamentos de Filosofia e de História. Em meu próprio trabalho como investigador, recorro sempre aos estudos históricos, e acho que, no caso da minha pesquisa sobre o modernismo no Brasil, faço um exame desse movimento de ideias, do ponto de vista de uma História filosófica. Meus estudos de Filosofia começaram antes mesmo do curso de graduação no IFCS, em 1969. Durante um período de dois anos que passei na Bélgica, de 1966 a 1968, convivi com pós-graduandos em Filosofia que se tornaram meus amigos e com quem conversava. Nessa época, quem mais me estimulou a fazer Filosofia foi Roberto Machado. Com ele comecei a estudar os grandes textos da tradição filosófica e ele me apresentou ao debate filosófico da época. Voltei para o Brasil em 1968 – um ano decisivo nas esferas política e cultural. A ditadura tinha se tornado mais repressiva e o ambiente na universidade era extremamente tenso. Ao mesmo tempo, o país vivia a efervescência cultural do tropicalismo, das experimentações no teatro e no cinema. Isto tudo me interessava muito e quis ter uma aproximação mais analítica dessas tendências novas. Foi esse contato muito próximo com as discussões sobre cultura e arte do final dos anos sessenta que me levou a iniciar minhas pesquisas sobre o modernismo. Hoje avalio que aquele foi o último momento de um ciclo cultural da História Intelectual brasileira, que tem aproximadamente cem anos, pois começa no final do século XIX e termina nos anos setenta do século XX. Minha dissertação de mestrado e minha tese de doutorado foram sobre o tema da brasilidade modernista e o papel de destaque de Mário de Andrade na orientação do modernismo. Fiz algumas descobertas que lançaram nova luz sobre o movimento, como o relevo dado à figura de Graça Aranha para a definição da doutrina modernista. Também estabeleci uma nova cronologia do movimento e propus uma divisão do modernismo em duas vertentes – a analítica e a intuitiva. O livro A brasilidade modernista – sua dimensão filosófica, que trata desses assuntos, vai ter nos próximos meses uma nova versão pela editora Móbile, com notas do crítico Eduardo Coelho. No final dos anos oitenta, o mundo mudou inteiramente. Já nos anos anteriores, ocorriam alterações na ordem mundial. Quando estive em Berlim Oriental, em 1987, com Manoel Salgado Guimarães, notamos que visitávamos um mundo que tinha se acabado. Aos episódios do final dos anos oitenta, seguiu-se uma época de muita perplexidade. Já não se contava com os recursos interpretativos tradicionais, em geral comprometidos com o marxismo, e era difícil pensar por conta própria. A vida do espírito. A amizade com Alberto Schprejer, então começando a editora Relume Dumará, permitiu que houvesse uma intensa colaboração. Traduções foram feitas, livros publicados, resenhas divulgavam os lançamentos, eventos foram organizados. O registro deste trabalho encontra-se também nas teses orientadas e nos cursos em que discutíamos os textos de Hannah Arendt. Finalmente, foi organizado um seminário para lembrar os vinte e cinco anos da morte da pensadora, em 2000, na PUC-Rio, com a parceria da UFMG. Investigávamos a obra de Hannah Arendt em duas direções: sua visão da política, que está contida especialmente em A condição humana, e a pesquisa sobre as atividades espirituais, o pensar e o julgar, presente em A vida do espírito. Porém, estas duas direções têm por referência o diagnóstico da crise do mundo contemporâneo que, por sua vez, depende de uma avaliação do curso da História Moderna. Neste ponto, a investigação sobre a obra de Hannah Arendt, que apresenta um exame dos impasses da era moderna, convergiu com minha pesquisa sobre o modernismo. Nos dois livros seguintes sobre Mário de Andrade – Limites do moderno (1999) e A morte do poeta (2005) – descrevi a trajetória do principal autor do nosso modernismo e chamei atenção para os aspectos problemáticos de seu pensamento e para o modo como ele próprio os tratou. As muitas dificuldades que encontrei na discussão do modernismo, em sentido amplo, me obrigaram a um tratamento mais detalhado do aspecto conceitual. Foi o que procurei fazer em A duas vozes, um ensaio sobre Hannah Arendt e Octavio Paz. O diálogo mostrou que, vindos de contextos diferentes, dois grandes pensadores do século XX, se aproximaram no diagnóstico dos impasses da situação contemporânea e fizeram uma aposta em um novo início. Hannah Arendt – pensadora da crise e de um novo início contém uma apresentação do conjunto da obra da autora e o aprofundamento da discussão do livro anterior. Hoje, sinto que chegou a hora de voltar ao contexto brasileiro. Meu projeto atual parte dos resultados da pesquisa sobre Mário de Andrade e pretende chegar à conceituação do movimento modernista, no Brasil, como um amplo movimento de ideias, com aproximadamente cem anos. Como se pode notar, meu percurso de trabalho apresenta um ir e vir entre uma investigação da História Cultural brasileira e um tratamento conceitual de temas de Filosofia da História e da Política.

Bruno Leal: O francês Luc Ferry, 60 anos, se tornou recentemente uma celebridade internacional. Seu livro “Aprender a viver: Filosofia para os novos tempos”, lançado em 2006, se tornou um verdadeiro best seller. Foram vendidos quase um milhão de exemplares no mundo, mais de 40.000 deles no Brasil. Professor, na sua opinião, esse fenômeno editorial é um fenômeno isolado ou estamos diante de um interesse popular generalizado por Filosofia? E mais: a Filosofia está hoje mais próxima ou mais distante do grande público do que aquele quando o senhor começou sua carreira?

Eduardo Jardim: Não estou entre os 40.000 leitores do livro no Brasil! Por este motivo, minha resposta vai ser muito genérica. Nem sei se o autor é culpado por este título que lembra mais o de um manual de auto-ajuda do que de um livro de Filosofia. Sim, é normal que em momentos de crise e de insegurança, como os que vivemos hoje, as pessoas busquem uma orientação e recorram a alguma coisa como um arrimo, até mesmo de uma doutrina filosófica. Mas isso não tem nada a ver com Filosofia. Muito mais eficientes neste sentido foram os movimentos totalitários que representaram para as massas de habitantes das cidades europeias do primeiro pós-guerra uma saída para suas frustrações. Quem busca uma solução ou quer aprender a viver não vai encontrar nada na Filosofia. A Filosofia não fornece respostas. Ela é exercício do pensamento, e este tem um caráter muito mais crítico do que construtivo. A Filosofia não fornece um código de comportamento, não tem utilidade, sequer produz um conhecimento, como fazem as ciências. Sua força reside nisso – no fato de valer por si mesma, sem depender de nada mais. Heidegger lembrou que uma das imagens de Platão para se referir ao pensamento é a do vento, que é invisível, mas tira tudo do lugar. Por outro lado, é verdade que a vida faz muito mais sentido quando é acompanhada do pensamento. Pensar, além de poder ser a paixão de uma vida, pode intensificar todas as outras paixões.

Bruno Leal: Historiadores e filósofos dividem os corredores nas universidades, mas muitas vezes acabam dialogando e trocando menos do que poderiam. Em sua opinião, quais são as principais “zonas de aproximação” entre as duas áreas?

Eduardo Jardim: Prefiro responder a esta pergunta sem me deter muito nas complexas relações entre Filosofia e História desde a Antiguidade. Como se sabe, foram relações marcadas por preconceitos da parte dos filósofos. Os filósofos antigos não consideravam a História como matéria digna de atenção, já que o que interessava à Filosofia era o Ser e não o mundo do devir, no qual se desdobra o curso da História. Quando, no final do século XVIII, a Filosofia voltou-se para a História, foi para impor-lhe uma ordenação filosófica, não para acolhê-la de verdade. Claro que no século XX tudo isso mudou, junto com todo o panorama intelectual, e o tempo, que é o elemento da vida histórica, passou a constituir um assunto filosófico da maior importância. Esta aproximação no âmbito conceitual não se refletiu na vida das instituições de ensino e pesquisa. Nossas universidades são um agregado de faculdades isoladas que buscam a formação específica do estudante de cada área, sem mesmo se dar conta de que a ideia de universidade supõe o contato entre as diversas disciplinas. Claro que esta organização reflete o modo de ser da civilização técnica, na qual o que importa é o rendimento das atividades para a produção de bens determinados. Este cenário tem mudado aos poucos nos últimos anos, inclusive porque hoje são claros os limites desta ótica tecnicista. Sinais dessa mudança já podem ser notados em várias iniciativas. Cursos que acolhem estudantes de História e Filosofia são oferecidos, que constituem uma oportunidade para uma troca em pé de igualdade. O historiador tem muito que aproveitar do modo de pensar do filósofo e este tem a atenção despertada para o mundo no contato com os estudos históricos. Uma investigação sobre o tempo e o modo como foi pensado ao longo da tradição deveria envolver as duas disciplinas. Deveria ser o assunto mais importante de um diálogo de historiadores e filósofos.

Bruno Leal: Professor, o senhor é conhecido principalmente pelos seus trabalhos e estudos sobre Martin Heidegger e Hannah Arendt. Como começou esse duplo interesse?

Eduardo Jardim: Meu acesso ao pensamento de Heidegger se deu pelo estudo de Hannah Arendt. Isso não aconteceu apenas comigo, mas também com meus colegas que descobriram a filósofa naquela época. Este contexto condicionou certamente nossa visão da obra de Hannah Arendt e também nossa compreensão de Heidegger. Nem sempre os leitores de Hannah Arendt, sobretudo os que vieram da teoria política, levam em conta a importância de Heidegger na formulação das suas teses. No entanto, A condição humana é um livro que responde a Heidegger. O esforço de situar a experiência política no centro da vida humana reage à desvalorização de toda a esfera pública, tantas vezes expressa na obra de Heidegger, inclusive em Ser e tempo. Hannah Arendt deixou clara sua dívida com Heidegger em uma carta endereçada a ele, na qual declarou ter tido a intenção de dedicar-lhe A condição humana. Afirmou que o livro devia-lhe quase tudo, em todos os aspectos. Também a investigação sobre o pensamento, em A vida do espírito, inspira-se nos textos tardios de Heidegger, especialmente seus escritos sobre Nietzsche. Isso para não mencionar o tom geral da obra, muito próximo daquele de Heidegger em sua visão do mundo contemporâneo. Pelo fato de minha leitura de Heidegger ter sido motivada pelo estudo de Hannah Arendt, chamou sempre minha atenção a potência crítica do pensamento do filósofo para uma abordagem do cenário atual: sua definição da natureza da técnica hoje, o cenário das sociedades de massa e o empobrecimento da experiência de pensar que foi transformada em cálculo. Existem vários textos importantes que aproximam ou contrastam os pensamentos de Heidegger e Hannah Arendt. Lembro do livro de Danna Villa, um autor americano, e, no Brasil, dos vários trabalhos de André Duarte.

Bruno Leal: Em 1988, o filósofo chileno Victor Farías provocou polêmica no meio acadêmico e intelectual com o livro Heidegger e o Nazismo, no qual denunciava o envolvimento de Heidegger com o Terceiro Reich. Quase 20 anos depois, em 2005, foi a vez do filósofo francês Emmanuel Faye reacender este debate, com o livro Heidegger, l’introduction du nazismo dans la philosophie, onde defende a tese de que o comprometimento com o nazismo permeia o pensamento do filósofo alemão. O que o senhor pensa a respeito desses dois livros? Eles contribuem para a compreensão de Heidegger (e a sua Filosofia) ou acabam dificultando esta compreensão?

Eduardo Jardim: A polêmica suscitada pela adesão de Heidegger ao nazismo em 1933 é bem antiga. Data do pós-guerra e da condenação do filósofo por um tribunal de ocupação. Ela gira em torno de dois pontos: a adesão de Heidegger ao nacional-socialismo, em 1933, e o comprometimento da sua Filosofia com as posições nazistas. Este último ponto é difícil de ser sustentado. Hannah Arendt comentou a questão no texto comemorativo dos oitenta anos do filósofo, “Heidegger faz oitenta anos”, publicado na edição brasileira de Homens em tempos sombrios. Ela ficava intrigada com o fato de grandes pensadores, como Platão e Heidegger, quando se ocuparam de política e se inseriram nos afazeres humanos, recorreram a soluções tirânicas. As tiranias modernas foram sempre marcadas por um acentuado voluntarismo. O tema do triunfo da vontade é frequente nos ideólogos do nazismo. Ora, a vontade exerce uma força em sentido contrário ao pensamento, pois este tem por característica o acolhimento ou a aquiescência. Ao longo dos anos trinta, em seu estudo da obra de Nietzsche, Heidegger empreendeu a mais radical elucidação do tema da vontade. Para Hannah Arendt, a raiz desta investigação foi a necessidade de rever sua adesão ao nazismo e, a partir disso, de examinar criticamente, em termos filosóficos, as suas bases. Deste modo, a trajetória do filósofo, em sua maturidade, mostraria um distanciamento das posições filosóficas e políticas adotadas anteriormente. Ao mesmo tempo, como crítica da vontade, ela manifesta o reencontro do filósofo com sua morada – a do pensamento. O alarde que acompanha a publicação de muitos textos sobre “Heidegger e a política” impede a discussão de questões teóricas e políticas, como as que Hannah Arendt levantou em seu texto.

Bruno Leal: Professor, o senhor acaba de lançar Hannah Arendt: pensadora da crise e de um novo início, pela “Civilização Brasileira”. Conte um mais sobre esse livro? Como surgiu a ideia e qual a sua principal proposta nele?

Eduardo Jardim: Hannah Arendt pensadora da crise e de um novo início pretende reconstituir o caminho do pensamento da filósofa desde os anos quarenta, período da elaboração de Origens do totalitarismo até seus últimos esforços de elaborar uma teoria do juízo. O livro aborda três momentos deste itinerário. O primeiro descreve o movimento que vai das pesquisas sobre o totalitarismo, que resultaram no livro de 1951, até a consideração da situação de crise geral da modernidade, de que uma das manifestações é o surgimento dos movimentos totalitários, no século XX. Ao contrário do que pensavam os analistas da época, Hannah Arendt mostrou que o totalitarismo não é a exacerbação de alguma forma de autoritarismo, mas um movimento oportunista que só podia vingar com a quebra das instituições políticas tradicionais. Nos anos 1950, a autora expandiu sua visão da crise contemporânea, que teria resultado de uma série de rupturas que começaram no início do século XVII. Seu diagnóstico do mundo contemporâneo, sob este aspecto, é pessimista. O século XX é chamado de “os tempos sombrios”. Os ensaios reunidos em Entre o passado e o futuro (1961) dão conta deste cenário, em seus vários aspectos. Em seguida, o livro aborda a compreensão de política de Hannah Arendt. Existem vários modos de ter acesso ao pensamento político da autora. Preferi seguir sua sugestão de partir da visão habitual que se tem da política e, por meio do questionamento dos preconceitos que estão contidos nela, chegar a uma concepção positiva do assunto. Destaquei duas direções do pensamento político da filósofa. Inicialmente, considerei o exame do conceito de ação, presente em A condição humana, que destaca esta atividade como distinta de todas as outras – o fazer e o laborar. Este esforço era indispensável para pensar o tema da dignidade da política, já que a ação é a matéria de que é feita a vida política. Em seguida, abordei a noção de liberdade presente em várias passagens da obra da autora, como o ensaio “Que é liberdade?”, de Entre o passado e o futuro. Para Hannah Arendt, a liberdade é a razão de ser da política. Por este motivo, ele precisou sublinhar sua dimensão política, em um movimento na contramão de uma longa tradição que remonta a Agostinho, que associava a liberdade à vontade individual. Por último, o livro trata dos assuntos que interessaram Hannah Arendt nos últimos dez anos de vida – as atividades espirituais do homem. Dei importância, em especial, à abordagem das atividades de pensar e de julgar. Procurei indicar que existe uma relação de complementaridade entre estas duas atividades. O pensamento prepara o caminho para o juízo. Ele tem um caráter destrutivo, ao por em questão os preconceitos e hábitos mentais. Nesta medida, ele é fator de instabilidade do nosso estar no mundo e elimina nossas certezas e referências. O juízo vem em seguida. Ele expressa um movimento de aproximação das coisas, ao percorrer um caminho aberto pelo pensamento. Neste momento, o mundo aparece em sua integridade, não mais visto pelo viés de nossos interesses. Claro que expus, aqui, de forma muito esquemática a trajetória do pensamento de Hannah Arendt. Espero que a leitura do livro convide a considerar toda a sua complexidade.

Bruno Leal: O subtítulo “pensadora da crise e de um novo início” é bastante curioso e instigante. Qual seria esta “crise” e qual seria “este novo início”. São dois conceitos que se relacionam?

Eduardo Jardim: Certamente, são conceitos que se relacionam. Já mencionei que Hannah Arendt iniciou sua obra com o exame do totalitarismo, o qual a conduziu ao diagnóstico amplo da situação contemporânea. Esta é atravessada por uma crise profunda da própria civilização do Ocidente. De algum modo, outros autores já tinham notado esta situação, a começar por Nietzsche, que, no final do século XIX, situou no centro de sua Filosofia o tema da morte de Deus. A morte de Deus anunciada por ele não é apenas a do deus cristão, mas significa a falência de todos os valores cultivados na História do Ocidente. Outros pensadores próximos de Hannah Arendt, como Heidegger e Walter Benjamin, pensavam coisas muito parecidas. Estes autores, ao mesmo tempo em que viram nos tempos atuais as marcas da crise, imaginaram que, ao fim deste percurso, anunciava-se, também, uma nova aurora – para usar mais uma expressão de Nietzsche. O ocaso da tradição, a seu ver, tem também um aspecto libertador, não apenas no sentido de que hoje seria possível pensar de forma livre e desimpedida todas as questões, mas de que novas e surpreendentes formas de experiência seriam exploradas. Ao longo de sua obra, Hannah Arendt pesquisou estas possibilidades. Em meu livro, procurei acompanhá-la nesta busca, nem sempre bem sucedida. Pode-se reconhecer com ela o fato de que não estamos mais presos aos preconceitos tradicionais e, por este motivo, temos acesso de forma mais livre à realidade, ao menos pelo pensamento. Mas teremos que perguntar se, no âmbito político, já somos capazes de vivenciar a radical liberdade na qual apostou Hannah Arendt e que seria a razão mesma da política. Quanto a isso, temos muitos sinais negativos. Sobre a revolução, que narra a História das revoluções modernas, livro de importância central para todos e não apenas para o especialista, expressa a suspeita de que talvez tenhamos perdido o ”tesouro das revoluções”. Perdemos com isso, também, nossa capacidade de agir e de iniciar processos? Este é um assunto a ser explorado a partir das sugestões de Hannah Arendt.

Bruno Leal: Neste seu novo livro, o senhor afirma que as obras dos grandes pensadores não devem ser compreendidas sem que se considere o contexto em que surgiram. Seria este um dos principais pontos de contato entre História e Filosofia que há pouco comentamos?

Eduardo Jardim: Com certeza. Esta é uma tese com um sentido geral que Hannah Arendt, sem dúvida, endossaria. Assim, ela mostrou que a motivação do pensamento político de Platão – a primeira Filosofia política que se conhece – consiste no fato de ele ter sabido do julgamento e da morte de seu mestre Sócrates, condenado pelas leis da cidade. Platão reagiu a isso com a proposta de uma concepção extremamente autoritária da política, na qual idealiza a existência de um estado que tem por governante o filósofo. Esta tese é também importante para se avaliar a própria Filosofia de Hannah Arendt. Para ela, começa-se a pensar a partir de situações específicas, para se enfrentar, no plano da vida do espírito, desafios concretos. O pensamento responde ao que ocorre conosco no mundo. Diversas vezes Hannah Arendt mencionou a dimensão de reconciliação presente na atividade de pensar. O pensamento permite superar a estranheza que sentimos no mundo e nos sentir nele como em uma morada. Não é difícil imaginar as bases biográficas dessa tese. O choque provocado pelo conhecimento dos campos de concentração explica a elaboração de Origens do totalitarismo. Hannah Arendt dizia, secundando uma autora que ela admirava – Karen Blixen – que todas as mágoas são suportáveis quando contamos uma história a seu respeito. Este não é o propósito do pensamento, já que não se trata de uma atividade com um objetivo definido. Mas, mas pode ser como seu efeito secundário, de suma importância. O pensamento parte da experiência concreta e afasta-se dela no mundo do espírito. A imaginação permite reapresentar a realidade em uma dimensão ideal. Em seguida, o juízo reconduz a atenção de novo para os fenômenos singulares e podemos alcançar sua compreensão. Esta descrição, ainda simplista, serve para chamar a atenção para o fato de que as atividades do espírito não correspondem, mas respondem às nossas experiências, e de que são elas que permitem dotar de significado nosso estar no mundo.

Bruno Leal: Professor, é sempre muito difícil definir o pensamento de Hannah Arendt, sobretudo em categorias limitadas e ultrapassadas, como “esquerda” e “direita”. Essa impossibilidade de “etiquetação” política/intelectual de Arendt pode ser vista como a origem de muitas críticas feitas aos trabalhos da filosofa?

Eduardo Jardim: Pode-se tomar a concepção de Hannah Arendt de liberdade para ilustrar sua distância tanto das posições liberais quanto do ponto de vista da esquerda. Nos anos cinquenta, período em que a filósofa elaborou a parte mais importante de sua obra sobre política, a perspectiva predominante no ambiente em que vivia era a do liberalismo. Isto se explica pelo fato de que o totalitarismo ainda estava presente, (o bloco soviético era coeso), e era visto como uma ameaça pelos governos ocidentais. O totalitarismo era identificado com a inflação do estado, que se expandia e ameaçava todas as formas de liberdade. Como reação a esta ameaça, o ponto de vista liberal, com sua concepção de liberdade negativa, ganhou grande importância. Qual era esse conceito? O liberalismo afirmava que era preciso defender o livre exercício das atividades privadas da intromissão do estado. Para o liberal, liberdade significava ausência de constrangimentos, tal como já pensava Hobbes. Nesta medida, trata-se de uma concepção negativa de liberdade. No outro lado do espectro político, a esquerda defendia uma concepção positiva. A liberdade se realizaria como uma conquista efetivada no curso da História. E essa conquista pode ser tanto a supressão das diferenças de classes, como o bem estar da humanidade, ou qualquer outra finalidade histórica. Hannah Arendt não se identificava com nenhuma das duas posições e, por este motivo, foi criticada pelos dois lados. Não se identificava com o ponto de vista liberal, pois sempre defendeu que a liberdade tem conteúdo, a própria vida política, que precisa a cada passo ser exercitada. Também não se identificava com a esquerda, pois acreditava que a vida política, por ser livre, não pode ser condicionada por nenhuma meta. As cobranças atualmente vêm muito mais dos setores de esquerda, que denunciam a ausência de preocupação com o social na definição, por Hannah Arendt, do conceito de liberdade. Ela certamente manteria sua tese da irredutibilidade da dimensão política ao social. A questão social, por mais premente, não pode se impor como critério da vida política, com o risco de perder-se seu estatuto próprio. Esta foi, aliás, a lição tirada por Hannah Arendt do exame da Revolução francesa, em Sobre a revolução.

Bruno Leal: Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal foi, talvez, um dos livros de Hannah Arendt que mais teve impacto no mundo do pós-guerra. Ele pode ter inaugurado uma nova forma de olhar para o Holocausto e para os criminosos de guerra. O senhor concorda com isso?

Eduardo Jardim: Hannah Arendt foi envolvida em enorme polêmica com a publicação de Eichmann em Jerusalém, em 1963. Isto se deveu às interpretações do subtítulo do livro: Um relato sobre a banalidade do mal. Muitos entenderam que a autora estaria afirmando que os crimes cometidos pelo nazista eram banais. Porém, a leitura do livro indica que os atos de Eichmann não eram profundos, não se baseavam em uma ideologia ou no ódio aos judeus. Ele apenas executava as ordens que recebia, sem ser capaz de questioná-las. Hannah Arendt ficou intrigada ao notar que o oficial nazista era incapaz de refletir e, portanto, de julgar as ordens recebidas. Ela levantou, então, uma hipótese a respeito da existência de um vínculo entre a incapacidade de pensar e cometer o mal. Indagou: haverá na própria atividade de pensar alguma coisa que previne de fazer o mal? A novidade da interpretação de Hannah Arendt consistiu em mostrar que, no contexto totalitário, o terror pode não resultar de uma decisão consciente, tomada com base numa motivação ideológica, mas consistir apenas na reprodução automática do sistema. Isto fez com que Hannah Arendt tivesse que rever teses centrais de Origens do totalitarismo, e a considerar uma nova forma de violência, presente nos totalitarismos, que não apresenta uma dimensão instrumental. O terror totalitário “não serve” para nada, ele apenas acelera a reprodução do sistema.

Bruno Leal: Professor, foi um enorme prazer realizar esta entrevista. Muito obrigado pela gentileza de conversar com o Café História. Esta é nossa última entrevista em 2011. Que mensagem o senhor poderia de enviar para os mais de 40 mil participantes da rede?

Eduardo Jardim: Seria preciso comentar ainda muitos pontos da obra de Hannah Arendt e considerar sua pertinência para se refletir sobre a realidade atual. Uma coisa é certa: a mais importante lição da leitura de seus livros é que eles nos ensinam a pensar. Hannah Arendt dizia que era importante pensar “sem corrimão”, sem as amarras que prendem às concepções já desgastadas. Ela gostava de citar o comentário crítico de Nietzsche de que é da alçada do desenvolvimento da ciência dissolver o “conhecido” no desconhecido, mas que geralmente os cientistas fazem justo o oposto e reduzem o desconhecido a algo que já é conhecido. É preciso estar atento a esta lição!


Eduardo Jardim possui graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1972), mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1976) e doutorado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1983). Foi professor do Departamento de Filosofia e do Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, até 2012. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em História da Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: Filosofia contemporânea, Filosofia política, estética, pensamento brasileiro.

Ana Paula Tavares

Subeditora do Café História. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais da Fundação Getúlio Vargas (PPHPBC/FGV) , bolsista CNPq. Possui graduação em Comunicação Social – habilitação jornalismo pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ (2006). É formada em teatro pela Casa de Artes de Laranjeiras – CAL (2010). Estuda História Intelectual, Imprensa, Mediação Cultural na trajetória da jornalista Yvonne Jean.

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