Seis obras para iniciar os estudos sobre o pensamento feminista negro

Bibliografia comentada com indicação de algumas das obras fundamentais para quem deseja um encontro com reflexões de mulheres negras que questionam a história tradicional.
28 de junho de 2021
Seis obras para iniciar os estudos sobre o pensamento feminista negro 1
Angela Davis. Foto: Oregon State University.

O pensamento feminista negro tem ganhado cada vez mais visibilidade, tanto no espaço acadêmico, quanto na grande mídia. Vale lembrar que, desde o período colonial brasileiro, foram muitas as mulheres negras que não aceitaram de forma passiva a condição de escravizadas. As experiências dessas mulheres somadas às de tantas outras abriram caminhos para que fosse possível tratar teórica e metodologicamente dessas questões no tempo presente. Ainda assim, por estarmos imersos no contexto do racismo estrutural, sabemos que ainda há muito a ser conquistado.

As bases teóricas do pensamento feminista negro existem há bastante tempo, mas elas intensificaram-se ao longo das décadas de 1970 e 1980, no Brasil. Intelectuais negras que não se desarticularam do Movimento Negro, organizado por homens e mulheres, dedicaram-se ao estudo da situação socioeconômica de mulheres negras no Brasil. Além disso, buscaram, por meio de fontes escritas e orais, recontar histórias de luta e de conquistas do povo negro, desde o período colonial. As intelectuais feministas negras estadunidenses também intensificaram suas produções a partir das décadas de 1970 e 1980 e são importantes referências nesses estudos.

Nessa bibliografia comentada, trazemos indicações de autoras consideradas precursoras do pensamento feminista negro, como Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Angela Davis e bell hooks. Destacamos também duas produções mais recentes que dialogam com as clássicas, na medida em que ampliam as reflexões sobre a temática. Visto que houve a necessidade de realizar um recorte, elencamos algumas outras obras que não entraram nessa bibliografia comentada, porém são igualmente essenciais, dentre elas: “Transfeminismos: teorias e práticas”, organizado por Jaqueline Gomes de Jesus; “Você pode substituir mulheres negras como objeto de estudo por mulheres negras contando a própria história”, de Giovana Xavier; “Irmã Outsider”, de Audre Lorde; “Pensamento feminista negro”, de Patricia Hill Collins. Tem alguma indicação que não apareceu na lista? Compartilha com a gente nos comentários.   

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“Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa…”, Coletânea organizada e editada pela UCPA (União dos Coletivos Pan-Africanistas), Diáspora Africana, 2018.

O Movimento Negro brasileiro tem contado com a produção intelectual de influentes mulheres negras desde sua formação, dentre elas Lélia Gonzalez (1935-1994). A historiadora (também geógrafa e filósofa) publicou diversos artigos e concedeu entrevistas ao longo das décadas de 1970 e 1980. Com objetivo de difundir o trabalho da pesquisadora, a União dos Coletivos Pan-Africanistas reuniu neste livro algumas de suas publicações. Na maioria dos artigos, a autora se dedica ao estudo das contribuições de mulheres negras para a formação do Brasil, desde o período colonial.

Gonzalez discute, por exemplo, a importância das mucamas, mulheres escravizadas trabalhadoras da casa grande. Elas eram responsáveis por perpetuar memórias ancestrais do continente africano por meio da contação de histórias às crianças das elites. Nesse sentido, Gonzalez destaca o valor atribuído pela população negra à oralidade e à memória como forma de resistir aos processos de silenciamento. Outra análise realizada pela historiadora diz respeito às condições socioeconômicas das mulheres negras na década de 1980. Gonzalez comparou dados institucionais e constatou que as mulheres negras eram as que recebiam menores salários ao realizarem as mesmas atividades que homens e mulheres brancas. As pesquisas realizadas por Gonzalez são importante ponto de partida às/aos estudiosas/os que desejam encontrar uma alternativa às produções da história oficial. E, principalmente, para que de uma vez por todas se compreenda que não é possível contar a história do Brasil sem uma perspectiva afro-brasileira.

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“Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento”, de Alex Ratts, Instituto Kuanza e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.

Nesse trabalho, o antropólogo Alex Ratts realiza um diálogo com o pensamento da historiadora Beatriz Nascimento (1942-1995). O livro está organizado em duas partes. Na primeira delas, “Quantos caminhos percorro”, o autor desenvolve reflexões acerca dos escritos de Beatriz Nascimento com análises, diálogos e contraposições. Já a segunda parte, “É tempo de falarmos de nós mesmos”, é composta pela reunião de artigos escritos por Beatriz Nascimento e publicados em jornais e revistas. Dentre os conceitos discutidos pela intelectual, destaco o de quilombo.

Nascimento enfrentou desafios estabelecidos por historiadores influentes nas décadas de 1970 e 1980 ao romper com a ideia do quilombo como um elemento do passado. A historiadora, junto de outros intelectuais, como Abdias Nascimento, defendia a tese de que os quilombos não se encerraram em experiências comparáveis a Palmares. Ao exemplificar organizações territoriais, como as favelas e as terras resididas por descendentes de ex-escravizados, a autora demonstra que a luta pelo direito à liberdade e à moradia permaneciam vivas ainda no século 20. Dessa forma, as bases filosóficas, assim como os próprios quilombos, continuavam presentes.

Essas reflexões podem parecer distantes do feminismo negro especificamente. Mas estão alinhadas às demandas dessa corrente de pensamento pelo resgate de histórias e memórias da população negra. Ou seja, tratar dos quilombos é, em certa medida, tratar de feminismo negro. Por outro lado, essa temática específica é abordada no livro por meio de discussões sobre a situação socioeconômica das mulheres negras no Brasil, por exemplo.

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“Mulheres, raça e classe”, de Angela Davis, Boitempo, 2016.

Embora esse texto de Angela Davis, publicado pela primeira vez em 1981, não tenha o registro do termo feminismo negro, essa obra é um clássico e merece destaque nos estudos sobre mulheres negras nas ciências sociais. No primeiro capítulo do livro, a intelectual chama atenção para o fato de que os historiadores, até então, pouco se dedicaram a tratar com seriedade das questões da mulher negra escravizada nos Estados Unidos. Com raras exceções, o que se produzia nos cânones norte-americanos, como destaca Davis, eram equívocos interpretativos e simplificações do papel da mulher negra durante o período escravista. A autora destaca o protagonismo dessas mulheres escravizadas na luta contra a violência do escravismo, fosse insultando um capataz, fosse tentando se defender da violência sexual, ou ainda fugindo das propriedades rurais. Davis destaca que, apesar dos castigos severos, essas mulheres não aceitaram passivamente a situação de escravizadas.

Nesse estudo, a autora parte do período escravista em direção à década de 1970. Dedica-se ao debate sobre atividades econômicas exercidas por mulheres negras, bem como suas demandas específicas na luta pela libertação do machismo e do racismo. Em “Mulheres, raça e classe”, a intelectual realiza uma análise marxista embasada na proposição de que os grupos oprimidos, dentre eles mulheres brancas, homens e mulheres negros, se unissem na luta contra o sistema capitalista. Para Davis, a construção do socialismo seria o melhor caminho para a conquista da liberdade.

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 “E eu não sou uma mulher?: Mulheres negras e feminismo”, de bell hooks, Rosa dos Tempos, 2019.

Nesse texto, cuja primeira publicação ocorreu em 1981, bell hooks destaca alguns dos fundamentos do feminismo. A autora decide por realizar um panorama das ações de mulheres negras contra a violência do sexismo e do racismo ao longo dos anos. Nesse percurso, a intelectual tem como ponto de partida o período escravista, passa pela luta pelos direitos civis, até chegar à década de 1970. A pergunta que intitula o livro foi retirada do consagrado discurso da feminista negra Sojourner Truth, durante a Segunda Conferência anual do movimento de direitos de mulheres, ocorrida em Ohio, EUA, no ano de 1852. Na ocasião, a militante expressou que a luta das mulheres negras possuía especificidades, pois, diferente das mulheres brancas da classe média, as mulheres negras que experimentaram a escravidão trabalharam nas plantações, sofreram castigos e torturas, assim como seus companheiros negros.

A necessidade da pergunta de Sojourner Truth: “E não sou eu uma mulher?” demonstra que sua luta primeira era por ser reconhecida enquanto ser-humano. Nessa obra, bell hooks destaca que mulheres negras não foram contempladas pelas demandas das feministas brancas, desde o século 19, bem como sofreram sexismo, tanto de homens brancos, quanto de seus companheiros negros, mesmo após o fim da escravidão. A autora aponta também a problemática que envolve a articulação das opressões que define como sexistas-racistas. Nesse contexto, afirma-se enquanto mulher negra feminista e posiciona a importância de demais mulheres negras aliarem-se nesse compromisso pela libertação das violências estruturais (re)produzidas na sociedade estadunidense.        

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“Interseccionalidade”, de Carla Akotirene, Pólen Livros, 2019.

Esse livro faz parte da “Coleção Feminismos Plurais”, coordenada pela filósofa e feminista negra, Djamila Ribeiro. É uma importante referência para quem está iniciando os estudos sobre a temática do feminismo negro, pois o objetivo principal da coleção é abordá-lo de forma didática e acessível (todos os livros custam até R$24,90). Nessa obra, Carla Akotirene, que é assistente social, mestre e doutoranda em estudos feministas pela UFBA, explora o conceito de interseccionalidade em diferentes camadas, teóricas e práticas. Como destaca a autora, a interseccionalidade refere-se ao fato de mulheres negras sofrerem opressões de raça, classe e gênero de forma articulada. Soma-se a isso, o fato de não possuírem suas demandas específicas amplamente contempladas nem pelo movimento feminista liderado por mulheres brancas, nem pelo Movimento Negro. Por outro lado, a abordagem interseccional reivindica um olhar não apenas às demandas, mas também às contribuições de mulheres negras nos processos históricos de luta pela libertação. Com linguagem repleta de metáforas, analogias e rigor científico, Carla Akotirene apresenta o seu posicionamento favorável ao conceito de intersscionalidade, sem deixar de dialogar com as críticas produzidas por intelectuais africanas e Angela Davis acerca dessa abordagem.     

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“Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano”, de Grada Kilomba, Editora Cobogó, 2019.

Essa obra é fruto da tese de doutoramento da psicóloga Grada Kilomba, contemplada com a summa cum laude . Na carta à edição brasileira, que abre o livro, a autora afirma: “Este livro é muito pessoal; escrevi-o para entender quem eu sou.” À primeira vista, um texto da área da psicologia pode gerar estranhamento aos interessados no conhecimento histórico, por sua dimensão mais voltada para o indivíduo. No entanto, Grada Kilomba faz emergir questões estruturais, de cunho social, que afetam a comunidade negra não apenas na dimensão individual, mas também no trauma coletivo promovido pelo tráfico transatlântico, pelo colonialismo e pela perpetuação do racismo.

No primeiro capítulo do livro, “A máscara”, Kilomba indica a razão pela qual sujeitos escravizados eram impedidos de usar a boca como forma de castigo, demonstrando, assim, o papel da palavra na luta pela liberdade.  No capítulo 4, a autora apresenta os objetivos do feminismo negro e nos capítulos que se seguem, dedica-se às histórias de vida de duas mulheres negras que residiam em Berlim, cidade onde realizou seu doutorado. Kilomba promove um constante diálogo entre o particular e o grupal, ao destacar aspectos coletivos dessas trajetórias de vida. Ao se utilizar de referências clássicas como Franz Fanon e De Bouis, em articulação com teorias mais recentes, como bell hooks e Audre Lorde, além das suas próprias, Grada Kilomba realiza uma ampliação tanto do vocabulário antirracista quanto do pensamento feminista negro.

Como citar esta Bibliografia Comentada

MARQUES, Thaís Pio. Seis obras para iniciar os estudos sobre o pensamento feminista negro (Bibliografia Comentada). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/feminismo-negro-bibliografia-comentada/. Publicado em: 28 jun. 2021. ISSN: 2674-5917.

Thaís Pio Marques

Faz parte da equipe do Café História, onde realiza estágio voluntário. Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Durante a graduação fez parte do Grupo PET Conexões de Saberes – Licenciaturas, voltado para a elaboração e desenvolvimento de Projetos pedagógicos interdisciplinares. Atualmente, organiza o perfil de Instagram “Poesia e oralidade”, onde compartilha textos breves sobre competições de poesia (slams) e seus participantes. O trabalho na rede social é
articulado aos estudos sobre História Oral e História Pública.

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