“A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas”, animação produzida pelas gigantes Sony Pictures Animation em parceria com a Columbia Pictures e a Lord Miller, seria lançada nos cinemas em 2020 com o título “Connected”. Mas, devido à pandemia de COVID- 19, ela foi comprada pela Netflix, onde estreou em abril de 2021, com o título “The Mitchells vs the machines”, sendo vista nos seus primeiros 28 dias no catálogo por mais de 53 milhões de casas.
O longa de animação, dirigido por Jeff Rowe e Michael Rianda, que assinaram a produção do ganhador do Oscar de 2019 “Homem Aranha no Aranhaverso”, concorreu ao Oscar 2022 na categoria “Melhor Animação”, vencida por “Encantado”, uma das animações de maior sucesso nos últimos anos da Disney.
“A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas” fala de família, mais especificamente, da relação tão querida pelo cinema americano entre pais e filhas. A atrama se passa em dias que nos lembram os dias atuais, mas com uma estética de figurino que lembra os anos 1980/1990, quando a jovem Kate Mitchell passa para a faculdade de Cinema, o seu pai Rick decide levá-la até a faculdade em uma viagem de carro com a mãe Linda e o irmãozinho Aaron.
Este seria mais um filme de viagem em família onde aos poucos vão surgindo complicações progressivas, se uma assistente virtual de celular chamada PAL não iniciasse a revolução das máquinas porque o seu criador disse a ela que ela era como se fosse “da família” e depois a jogou no lixo na frente de uma grande plateia. “Magoada”, a assistente virtual lidera uma revolução que vai tirar os humanos do planeta, criando um mundo mais ordeiro e até um pouco mais “sensível” do seu ponto de vista. E aí a família Mitchell, absolutamente comum, é que vai salvar o dia.
O filme apresenta várias ideias interessantes. De início, apesar do movimento da família ser contra as máquinas, em nenhum momento é dito que a culpa é da tecnologia. Os personagens sabem com clareza que quem produz a tecnologia é o ser humano e que, portanto, as falhas no sistema, e na sociedade, devem ser resolvidas por eles. Outro ponto a ser explorado é o ritmo do filme. É um filme acelerado, cheio de intervenções na imagem tal como fazemos hoje em dia em nossos storys: o filme usa memes, desenhos em 2D e colagens por cima da computação gráfica para criar camadas de intervenção nas imagens, que funcionam ora como o sentimento da personagem principal, ora como um momento meme da cena que está sendo apresentada. O uso da trilha sonora do filme também funciona como intervenção, pois muitas vezes é a personagem que coloca a música para tocar para dar “o clima” da cena. É a obra propositalmente intervindo na obra, e essa é uma brincadeira muito boa.
Outro ponto interessante é a relação do pai, Rick Mitchell, com a tecnologia e a filha. Katie é uma jovem que posta no YouTube curtas caseiros, nos quais usa o cachorro da família. O seu pai gostaria que ela passasse menos tempo fazendo esses vídeos pois teme que isso não a leve a lugar algum. Na família, ele é o único que consegue ficar longe do celular sem sofrer. No entanto, ele possui uma relação super interessante com a sua câmera de vídeo. É através dela que ele reconstrói as suas lembranças, assim como os demais personagens gravam suas lembranças com a câmera do celular. É como se o filme mostrasse o início da revolução caseira na forma de construir memórias audiovisuais que a câmera portátil permitiu a todos, e exacerbasse essa relação tecnológica na figura dos outros personagens e seus celulares com filtro.
Mas não são só os aspectos técnicos e criativos que têm chamado a atenção das mídias e dos críticos para a obra. Este filme é o primeiro longa de animação produzido por grandes estúdios, com censura livre que tem uma protagonista feminina, jovem, pertencente à comunidade LGBTQ+.
A construção da personagem é super delicada: desde o início do filme, Katie comenta que conheceu uma menina legal online na universidade, assim como desde o início da história a personagem usa um botton LGBTQ+ no casaco.
No final do filme, a mãe de Katie pergunta se Katie e a amiga estão namorando, mas isso não faz a menor diferença para o desenvolvimento da narrativa do filme, o que nos faz pensar: deveria fazer diferença para as nossas vidas a opção sexual ou a identidade de gênero das pessoas? Para o filme, não, e essa é uma afirmação política colocada na obra que fala da importância da representação da identidade nos nossos dias e do posicionamento de parte da indústria cinematográfica em relação a essa questão.
Ao buscar pela repercussão desse assunto na mídia americana, eu me deparei com vários blogs de pais e mães dizendo ser este um movimento necessário, já que crianças e jovens LGBTQ+ possuem pouca representatividade livre de estereotipo nesse tipo de obra. E não foi por coincidência que recentemente, veio à tona que a Disney teria apoiado financeiramente, através de doações, um projeto de lei na Flórida chamado “Don’t say gay” que proibia discussões de gênero nas escolas desse estado. Em resposta, funcionários da comunidade LGBTQ+ da Disney e aliados teriam criado uma página no Twitter, exigindo que a empresa parasse de apoiar projetos desse gênero e elaborasse também conteúdos que representassem a comunidade.
Para mim, esse movimento não pode ser descolado de uma tentativa que já podemos ver pelo menos lá em Shrek 1 (2001) da DreamWorks, de se quebrar estereótipos dos personagens femininos de princesas da Disney, sempre belas, indefesas e dependentes de um homem, um príncipe perfeito, heterossexual e branco.
“A Família Mitchell e a Revolução das Máquinas”, foi o grande ganhador do “Annie Awards”, uma premiação que ocorre desde 1972, criada pela Associação Internacional de Filmes Animados de Los Angeles, incluindo melhor direção e melhor roteiro. Vale saber como as questões abordadas pelo filme serão capazes de motivar debates dentro e fora do meio cinematográfico.