Na noite de 13 de dezembro de 1939, nas águas do Atlântico Sul, britânicos e alemães protagonizaram uma das primeiras batalhas da Segunda Guerra Mundial, a chamada “Batalha do Rio da Prata”. Após horas de confronto contra três navios ingleses, o Exeter, Achilles e Aya, o encouraçado alemão “Almirante Graf Spee” procurou refúgio no porto de Montevidéu, no Uruguai. Na ocasião, o ministro alemão na cidade, Otto Langmann, solicitou ao governo uruguaio a autorização de 15 dias para a manutenção do Graf Spee.
Havia motivos de sobras para o pedido do diplomata alemão. Os danos materiais sofridos pelo Graf Spee eram imensos e urgentes. O casco da embarcação, por exemplo, estava bastante avariado,efaltava-lhe combustível. Além disso,os danos humanos também impressionavam: o combate deixara cerca de 60 tripulantes feridos e 36 mortos.
Qual seria a posição das autoridades uruguaias? Autorizariam elas a realização do conserto da embarcação alemã? Como os governos dos principais países sul-americanos, entre os quais o Brasil, acompanharam aquela situação? Eis o que vamos tentar responder.
Desconfiança no ar
O ministro britânico em Montevidéu, Eugen Millington-Drake, baseado na Convenção de Havana, ratificada por Uruguai e demais países americanos, insistiu que o barco alemão fosse aprisionado junto com a sua tripulação até o final da guerra. Mas não foi o que aconteceu. Após uma análise dos danos causados ao Graf Spee, uma comissão técnica uruguaia estimou o prazo de 72 horas para as reparações do encouraçado. Essa mesma comissão destacou (talvez para acalmar os ânimos de todos) que, apesar da sua navegabilidade parecer intacta, seu poderio bélico estava fortemente reduzido, senão aniquilado.
No dia 16 de dezembro, o chanceler brasileiro, Oswaldo Aranha, seguindo a declaração preliminar dos EUA, numa ação continental sobre a violação da zona marítima continental, na forma da Declaração do Panamá, oficializou o apoio ao governo uruguaio. Neste documento, Aranha destacava que, por ser uma zona marítima de interesse do Brasil, da Argentina e do Uruguai, os governos brasileiro e argentino apoiariam as decisões do Uruguai. Aranha tinha proposto à Argentina uma ação combinada política e militarmente no sentido de cooperar com o Uruguai caso os alemães desrespeitassem a soberania uruguaia.
Contando com a solidariedade continental, Alberto Guani, o chanceler uruguaio, reafirmou as decisões do governo uruguaio ao comandante alemão, que ameaçava não obedecer ao tempo estabelecido pelas autoridades uruguaias para as devidas manutenções do Graf Spee. Segundo um diplomata belga em Montevidéu, o encouraçado alemão tinha a bordo 60 tripulantes ingleses, dos quais seis eram capitães da marinha mercante dos 9 navios afundados. Todos acabaram liberados em Montevidéu.
Empresas se recusam a fazer o reparo
As tensões naqueles dias não se restringiram ao meio diplomático. Várias empresas de manutenção navais do Uruguai se recusaram a prestar serviços aos nazistas alemães. Não se sabe o motivo exatamente, mas vale a pena destacar que muitas dessas firmas tinham estreitas relações com industriais e comerciantes ingleses. Os alemães tiveram certeza de que a recusa tinha a ver com as “inteligentes atividades pessoais” de Millington-Drake.
O jeito foi fazer o serviço todo por contra própria. Segundo o primeiro oficial de bordo da embarcação alemã, o capitão de corveta Rasenack, a tripulação do Graf Spee trabalhou “febrilmente para reparar os danos causados pela batalha. Os estaleiros locais não proporcionaram um único homem, um único parafuso, pois deviam obedecer às instruções de Millington-Drake, visto pertencerem a capitais britânicos”.
No quarto e último dia no porto de Montevidéu, em 17 de dezembro, Rasenack descreve que após o fracasso dos esforços empreendidos pelo comandante do Graf Spee, Hans Langsdorff, o governo alemão comunicou a “ordem mais terrível” para os tripulantes: a de destruir o Graf Spee. Isso porque a principal função dos marinheiros era zelar pelo cuidado dos equipamentos e, agora, para impedir que os conhecimentos técnicos alemães caíssem em mãos inimigas, era preciso destruir metodicamente todos os aparelhos de controle de tiro, que tinha feito a glória alemã durante a batalha na embocadura do Rio da Prata.
Ordem dada, ordem cumprida. Com o término do prazo de 72 horas, o encouraçado alemão abandonou o porto de Montevidéu. Fora das águas territoriais uruguaias, o Graf Spee fora autodestruído pelo seu próprio comandante, quem “hizo volar el barco”. Conforme Rasenack, aquela cena assemelhava-se a um vulcão. Dizia que era um espetáculo grandioso, porém imensamente triste. O encouraçado alemão estava envolto em labaredas.
“Fizemos voar as instalações automáticas de controle de tiro com granadas de mão, destruímos os quadrantes dos delicados controles e suas partes eletrônicas a marteladas e assim peça por peça. Transportamos as peças e as culatras dos canhões para as torres grandes. Aí faremos voar tudo ao mesmo tempo. Acabamos nosso trabalho cerca de meio-dia. É terrível o que vemos em torno de nós. Este é o dia mais triste da minha vida”, escreveu o comandante alemão em seu diário.
Depois da explosão, o suicídio e as tensões diplomáticas
Após a explosão, a tripulação alemã partiu rumo à Buenos Aires em embarcações enviadas pela embaixada da Alemanha na Argentina. Segundo a embaixada alemã em Montevidéu, Hans Langsdorff, o comandante do Admiral Graf Spee, teria explodido seu navio de guerra por pressão inglesa, mas também devido ao curto prazo oferecido pelo governo uruguaio.
Após terminar essa missão, Hans Langsdorff escreveu cartas para familiares e tomou uma decisão surpreendente: suicidou-se em um quarto de hotel, em Buenos Aires, ainda em dezembro de 1939. Antes, todavia, deixou em declaração escrita, dirigida ao embaixador alemão, Edmond von Thermann, a afirmativa de que, desde o início, desejara ter afundado junto do navio que comandava, agora no fundo das águas uruguaias. O afundamento do encouraçado alemão deixou em todos a impressão de que os alemães desejaram sepultar os segredos de sua construção, da montagem de sua artilharia e das suas máquinas.
O incidente gerou uma série de correspondências entre os países americanos, que desejavam uma atitude conjunta para protestar contra a violação da zona de neutralidade, imposta na Conferência do Panamá. Por fim, o governo panamenho enviou um telegrama de protesto aos países beligerantes (Alemanha e Inglaterra), com a aprovação de todas as Repúblicas Americanas.
Preocupado com a situação na região, o embaixador brasileiro no Uruguai, o diplomata João Batista Lusardo, reuniu os representantes diplomáticos dos países americanos, na embaixada brasileira em Montevidéu, para discutirem aquela situação a nível continental. Roberto Levillier, embaixador argentino, não participou da reunião, pois estava em Buenos Aires na ocasião. No entanto, após ter falado com Lusardo no telefone, num voo rápido de avião, Levillier conseguiu chegar para participar dos últimos momentos daquela reunião. De toda forma, ficou claro que era o diplomata brasileiro quem liderava aquele grupo de diplomatas que prestavam solidariedade à chancelaria uruguaia.
Lusardo avaliou o impacto da Batalha do Rio da Prata da seguinte maneira:
“Ficam desse drama intensamente vivido na capital uruguaia, com repercussão em todos os países do continente, ameaçados de que o mesmo se repetia em qualquer deles e a qualquer momento, ensinamentos preciosos que, para serem bem aproveitados, necessitariam que suas conclusões fossem desde logo observadas e seguidas. Quanto ao Brasil, permita-me Vossa Excelência dizer de modo ostensivo, a primeira conclusão prática é a de que, para fazer com que predomine a sua força moral, para manter o prestígio da sua tradicional diplomacia, para fixar a orientação superior e defensiva do seu Governo, necessita à custa de qualquer sacrifício e por qualquer preço de reconstituir as suas forças navais, adquirir material suficiente para a defesa da sua soberania e, se necessário, ajuda à manutenção da soberania dos Estados vizinhos e amigos que a solicitem.”
Não por acaso que, em reunião secreta dos parlamentares uruguaios com o Ministro da Defesa Nacional e Ministro das Relações Exteriores, cogitou-se a aquisição de dois navios de guerra e a remodelação completa das forças aéreas e compra de aviões e hidroaviões. Aquele projeto de modernização de suas Forças Armadas tão desejado pelos militares uruguaios ganhava força após o ocorrido nas águas platinas.
Novo cenário geopolítico na região
Após o combate naval, as patrulhas se intensificaram no Prata. Os países americanos perceberam que cedo ou tarde precisariam tomar uma posição mais assertiva perante o conflito mundial. Nesse cenário, os EUA buscavam espaço na região e cogitaram até a instalação de bases navais no Uruguai. Em contraste com a rivalidade argentina, Brasil e Uruguai seguiram as posições norte-americanas nos fóruns pan-americanos.
Por outro lado, havia preocupação do governo argentino da instalação de base norte-americana na margem esquerda do Rio da Prata, por crer que poderia facilitar aos EUA converter-se no árbitro dos assuntos da região e, nela, ampliar sua influência. Ademais, essa presença militar norte-americana fortaleceria a posição do Uruguai que poderia, eventualmente com o apoio do Brasil, arrancar da Argentina concessões quanto à soberania das águas do Rio da Prata. Para conquistar o país platino, os EUA cederam empréstimos ao governo uruguaio. Em dezembro de 1940, o Uruguai obteve um empréstimo no valor de 7.500.000 dólares do Eximbank dos EUA.
Nesse contexto, os Estados Unidos assumiram o lugar de “escudo protetor”, tanto do governo brasileiro quanto do governo uruguaio. A ideia era uma forma de se contrapor à neutralidade intransigente da Argentina e para contrabalancear as suas relações controversas e desconfiantes com a Argentina, o Uruguai e o Brasil se aproximaram dos EUA. Em outras palavras, esse cenário geopolítico, regional e mundial contribuiu significativamente para a intensificação das relações com o Brasil. O governo uruguaio comprou armas no Brasil, negociou assistência técnica militar e acordos, dos quais, quase sempre, havia uma espécie de tutoria norte-americana amparando e servindo à sua estratégia de “domesticar” a Argentina, declaradamente fora da órbita dos EUA.
O episódio do Graf Spee mostra que a Segunda Guerra Mundial, direta e indiretamente, redefiniu a vida política da região platina. Tal como o Brasil, as relações entre Uruguai e Argentina foram marcadas por desconfianças mútuas. De maneira oposta, as relações do Uruguai com o Brasil foram definidas por convergências e solidariedades no plano internacional, como demonstrou-se com os acontecimentos da Batalha do Rio da Prata.
O conflito foi muito importante ainda para remodelar o papel do Uruguai no Rio da Prata, integrando-o ao circuito de influência norte-americano. Embora o mais importante aliado dos EUA fosse o Brasil, sua localização geográfica, história e política o ressignificaram na nova realidade internacional e no equilíbrio de poder da região. Nessa conjuntura, o abastecimento militar dos Estados Unidos, a padronização das Forças Armadas do Uruguai, em consonância com as do Brasil e EUA, o controle das comunicações, o acesso a informações e o apoio na construção de infraestrutura defensiva marcaram a instalação geoestratégica do Uruguai na órbita militar dos Aliados.
Fontes / Acervos
Archivo Histórico-Diplomático del Ministerio de Relaciones Exteriores del Uruguay (Montevidéu, Uruguai);
Archivo Histórico de la Cancillería Argentina (Ministerio de Relaciones Exteriores, Comercio Internacional y Culto; Buenos Aires, Argentina).
Biblioteca del Instituto Artigas del Servicio Exterior (Montevidéu, Uruguai);
Arquivo Histórico do Itamaraty (Rio de Janeiro, Brasil);
Referências
CAETANO, Gerardo. (Coordinador). Uruguay. El “país modelo” y sus crisis.Tomo III- 1930-2010. Madrid: Fundación Mapfre; Montevideo: Editorial Planeta; 2016.
DE LOS SANTOS, Clarel. El péndulo magnetizado: las relaciones de Uruguay con Brasil durante la II Guerra Mundial. Avances de Investigación, Montevideo, Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación, 2011.
GOMES, Rafael Nascimento. As relações diplomáticas entre Brasil e Uruguai (1931-1938). O Brasil de Getúlio Vargas visto pelo Uruguai de Gabriel Terra. Jundiaí: Paco Editorial, 2017.
MILLINGTON-DRAKE, E. A Batalha do Rio da Prata – O Drama do Couraçado “Graf Spee”. São Paulo: Flamboyant, 1968.
ODDONE, Juan Antonio. El Uruguay entre la depresión y la guerra. 1929-1945. Montevideo, FCU/FHCE, 1990.
Como citar este artigo
GOMES, Rafael Nascimento. Explosões, suicídio e diplomacia: o encouraçado nazis-ta “Almirante Graf Spee” (Artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/explosoes-suicidio-diplomacia-o-graf-spee-no-uruguai/. Publicado em: 17 out. 2022. ISSN: 2674-5917.