Já na primeira frase desse texto preciso deixar algo claro: não sou uma fã de Celine Dion. Para falar a verdade mal conheço sua obra, nunca acompanhei sua carreira e de suas músicas a única que lembrava, espontaneamente, era “My Heart Will Go On”, parte da trilha sonora do filme Titanic (1997), um blockbuster que, assim como Dion, monopolizou atenções e premiações no final dos anos 90. Depois nisso nunca mais soube absolutamente nada de sua trajetória artística. No máximo passei meus olhos por revistas de fofocas que repetidamente falavam de seu casamento com o empresário e produtor René Angélil, que a descobriu com apenas 12 anos e com quem Celine iniciou um relacionamento aos 18 anos. A diferença de idade de quase 30 anos entre os dois deixava um gosto amargo de um possível grooming de Celine iniciado por René já em sua pré-adolescência.
A diretora, editora e produtora Irene Taylor (Leave No Trace – 2022), começou, ainda durante os anos pandêmicos, a acompanhar Celine com uma câmera. A ideia era fazer um documentário sobre a nova residência de Dion em Las Vegas. Um mega espetáculo que já estava às portas de ser estreado e com milhares de fãs da cantora já de ingressos comprados. Inesperadamente – e registrado em imagens – Celine Dion recebe o diagnóstico de SPS (Stiff Person Syndrome), uma doença neurológica rara que atinge no máximo duas pessoas a cada milhão e, predominantemente, mulheres. A SPS – em português Paralisia Supranuclear Progressiva – causa uma rigidez muscular, problemas de movimentação e lentidão, que resultam em uma paralisia muscular espasmódica quase que total durante uma crise. Segundo sua definição, a SPS é mais incapacitante do que a doença de Parkinson.
O choque que a notícia causa em Celine está registrado em imagens, e, por determinação da cantora, precisava fazer parte do documentário. Taylor então precisou reinventar a obra – o que antes seria um eye candy para os fãs com figurinos luxuosos e apresentações extravagantes com pequenos insights dos bastidores da produção, acabou se tornando um retrato cru de uma mulher passando por um dos momentos mais difíceis de sua vida.
Celine resolveu ir fundo. Taylor e seu time a acompanharam em sessões de tratamento de imunoterapia, fisioterapia, exercícios vocais e em sua vida doméstica. Vemos Celine descabelada, com o rosto inchado pelas repetidas crises de choro, em meio a crises de dor, sem maquiagem, sem glamour, confinada em sua mansão em Las Vegas onde vive com seus filhos gêmeos Nelson e Eddy, e com a cadela Bear. Uma imagem claustrofóbica de puro desespero, tristeza e perda, mesmo que em uma gaiola dourada onde o mordomo serve milkshakes aos seus filhos, e os ambientes são repletos de obras de arte e objetos de grande valor. Nada disso importa para Celine. Sua vida é sua voz e, em suas palavras, a voz e a música é que sempre definiram o rumo de sua vida. E naquele momento, o incrível instrumento da Mezzo-soprano, que tem em Maria Callas sua maior referência, se recusa a funcionar.
Taylor busca o contraponto entre luzes e sombras com diversos flashbacks de Celine no palco, com uma visita no imenso deposito onde a diva guarda todos seus figurinos, e onde cada um deles carrega uma história a ser contada entusiasmadamente. Nesses momentos Celine é incrivelmente envolvente, carismática, e mostra um humor que desarma até os seus maiores críticos. Mas logo cortamos para uma confissão comovente onde Dion em lagrimas assume que os sintomas da doença já a acompanhavam há 17 anos, que iniciaram com esporádicos espasmos vocais, os quais foram progredindo ao decorrer dos anos. Ela admite que inúmeras vezes precisou “enganar” seu público para disfarçar a falência de sua voz no palco. Uma confissão que ela faz com uma dor quase tão grande quanto a que o enrijecimento muscular lhe causa.
O resultado desse contraste de realidades é, ao mesmo tempo, mesmerizante e emocionante para qualquer ser humano que ainda possui um coração batendo no peito. Confesso que fui às lágrimas com Celine em diversos momentos do documentário, de tão palpável que é seu sofrimento. Sim, estamos diante de uma pessoa milionária, com uma rede de apoio imensa com o melhor tratamento que o dinheiro pode comprar. Mas é a partir daí que a amarga ironia da vida entra em ação – apesar de todos os esforços humanamente possíveis, o corpo de Celine lhe nega o que ela mais ama, lhe tira sua voz. O que fazer quando perdemos o que sempre nos deu o rumo? E essa é a pergunta central do documentário que assombra tanto a cantora quanto seus espectadores.
Se antes de assistir “I Am: Celine Dion” eu pouco me importava com a trajetória da cantora, hoje acordei ávida para escrever, e para rever seu triunfo sobre a dor em sua apresentação, do alto da torre Eiffel, na Abertura dos Jogos Olímpico de 2024 em Paris. A vitória da vontade sobre a resignação. E isso, por mais superficial que pareça, é simbólico, inspirador e arrecada novos admiradores onde antes havia apenas indiferença.
I Am: Celine Dion é uma produção dos estúdios MGM e está disponível através da plataforma de streaming Amazon Prime Video.