Especial “Passados presentes da Espanha”
Em 2016 veio a público, pelo selo editorial Tusquets, o livro Patria, do escritor basco Fernando Aramburu. A obra rapidamente se tornou um fenômeno comercial de amplas proporções, traduzida para várias línguas, e tem previsão de se tornar uma série televisiva pelo canal HBO. Dois anos mais tarde, mas sem o mesmo alarde publicitário ou sucesso mercadológico, a editora da Universidade de Zaragoza publicou a coletânea Naturaleza muerta. Usos del pasado en Euskadi después del terrorismo, organizado pelo historiador Antonio Rivera. Cada qual a sua maneira, os dois livros indicam formas distintas e complexas pelas quais a memória do ETA circula hoje no espaço público espanhol.
O propósito deste artigo é discutir o lugar da literatura e da historiografia como formas de compreensão dos traumas sociais e da memória sobre o grupo terrorista espanhol ETA (leia mais sobre o grupo em outro artigo publicado aqui no Café História)
Fim do silêncio
A profusão de discursos a respeito da atuação do ETA, sua história e seus efeitos no presente apenas se tornou possível depois do anúncio do fim das suas atividades militares e a entrega de seu arsenal bélico em outubro de 2011. Até aquele momento, a simples existência do grupo armado, mesmo que suas atividades violentas já tivessem sido reduzidas à quase insignificância, era razão suficiente para que pairasse no ar um denso silêncio. Afinal, eram conhecidas na Espanha as consequências que poderiam sofrer aqueles que tentassem enfrentar, seja pela lei, pelas armas ou pelas páginas de algum livro ou jornal, a violência que o ETA lançava contra a sociedade espanhola.
No entanto, era também algo mais: havia uma espécie de indiferença consentida em relação às vítimas daquela violência difusa que atravessou a sociedade espanhola nas primeiras décadas de redemocratização após a ditadura de Franco.
O enredo de Patria, por exemplo, inicia no dia em que o fim do terrorismo é anunciado pelo grupo, com o retorno ao seu pueblo de origem de uma das vítimas que teve a família destroçada após a execução do seu marido por um militante etarra. A quarta capa da obra historiográfica coordenada por Rivera, a coletânea Naturaleza muerta, por sua vez, a situa no mesmo contexto, indicando as perguntas que surgiram após o anúncio daquele tão aguardado fim: “como abordar o passado traumático, isto é, como contá-lo, como torná-lo presente, como evitar sua repetição ou como assumir responsabilidades”
Literatura e historiografia, portanto, seguem cada uma com suas pernas próprias um mesmo caminho ligado à memória da violência recente e à difícil necessidade de criar um processo de paz como garantia para a democracia. Uma memória cujo ponto de origem se situa certamente no lugar vítimas.
As vítimas como vetores de memória
Como em todas as demais situações envolvendo o extremo da violência, a definição do que é ser vítima e de quem pode, por direito ou por delegação, ocupar tal lugar é uma questão de imensa complexidade. Em geral, quando falamos de “vítimas”, falamos de uma coletividade. Porém, sabemos que uma mesma vítima pode assumir em distintas ocasiões feições bastante diferentes entre si. Logo, se é possível sugerir que diante do terrorismo todos acabam se tornando vítimas, projetando a experiência do sofrimento como fenômeno coletivo, a diluição no todo de cada uma das vítimas em particular traz o risco sempre presente de subestimar ou mesmo de desconsiderar os sofrimentos experimentados de forma individual e muitas vezes solitária.
No que diz respeito à história de atuação do ETA, a noção de vítima se torna tanto mais complexa na medida em que as reivindicações para ocupar seu lugar vêm dos mais diferentes lugares: são vítimas certamente aqueles que padeceram em função das ações terroristas do grupo, seu familiares que sobreviveram a elas, a sociedade que foi submetida a um cultivo do ódio e a um pacto de medo; mas também pretendem ocupar tal posição aqueles que defendiam a atuação do grupo armado, militantes vitimados pela violência institucional do Estado e por aquela cometida por grupos atuando à margem das vias institucionais, as famílias dos etarras presos, condenadas a viver à distância em função da política de dispersão realizada pela justiça espanhola.
A estratégia de equiparação das vítimas e de diluição das profundas diferenças dos atos de que foram vitimadas encontra-se em primeiro plano nos debates em torno deste passado presente espanhol. A Guerra Civil na Espanha (1936-1939) e o regime franquista (1936-1975) ocupam aqui um papel fundamental, usando do passado e por vezes abusando da memória que ele possibilita. Não são poucos os autores que destacam a estratégia assumida pelo nacionalismo basco radical de justapor processos históricos bastante distintos como ponto em comum para a definição do estatuto das vítimas.
Assim, o bombardeio de Guernica, a ditadura de Franco e o terrorismo do ETA acabam tendo em comum este fato: todos produziram vítimas que devem ser igualmente lembradas como uma espécie de reparação do mal pelo dever de memória. Segundo o entendimento do historiador Luis Castells Arteche, catedrático de história contemporânea na Universidade del País Vasco, essa estratégia de indistinção das vítimas e de descontextualização da história acabou por se tornar a política de memória da própria administração basca, estabelecida a partir do marco geral das violações dos direitos humanos, onde costumam ser situadas as políticas reparadoras de memória.
Em 2013, motivada pelo fim das atividades armadas do ETA, foi instituída pelo governo da Comunidade Autônoma do País Basco uma Secretaria Geral para a Paz e a Convivência (atualmente definida como Secretaria Geral de Direitos Humanos, Convivência e Cooperação), voltada oficialmente para a tarefa de “fechar as feridas sobre o passado, resolver problemas pendentes no presente e consolidar uma cultura de convivência democrática para o futuro”. Trata-se do principal órgão administrativo do governo basco ocupado com a definição de uma política de memória pensada para atuar em relação às vivências traumáticas do passado “de guerra, ditadura, terrorismo, violência e vulneração de direitos humanos”.
Na página de internet da Secretaria, o visitante pode fazer consultas a respeito das vítimas legalmente reconhecidas pelo governo, filtrando a busca por três categorias principais: vítimas causadas pelo ETA, vítimas causadas por grupos de extrema-direita que combatiam o ETA, vítimas da repressão ilícita cometida pelo Estado espanhol entre 1960-1978. No organograma do órgão consta ainda uma subdivisão chamada Direção de Vítimas e Direitos Humanos e dois anos após ter sido criada, a Secretaria publicou uma pesquisa realizada por profissionais ligados, sobretudo, à área do direito criminal, intitulada “O direito à memória das vítimas do terrorismo”.
O que se percebe, portanto, é o fato de que, mesmo com uma compreensão difusa e imprecisa do que é e de quem são as vítimas do terrorismo, elas ocupam um papel decisivo como vetores da memória deste passado traumático espanhol, justapondo passados e memórias distintos. Encaradas como sujeitos jurídicos de um direito à memória, mas também como sujeitos morais deste mesmo direito, as vítimas encontram-se igualmente nos caminhos percorridos pela literatura e pela historiografia.
A literatura entre a conciliação e o conflito
“A empatia com as vítimas foi crescendo”, assim justificou o escritor Iban Zaldua seu interesse em escrever sobre as experiências em torno da violência do ETA no País Basco. Zaldua, assim como Fernando Aramburu e Antonio Rivera, se dedica a escrever sobre o passado traumático da Espanha contemporânea. Além de se ocupar com literatura, Zaldua é historiador de formação e professor de história econômica. Em 2018 foi publicada pela primeira vez na língua espanhola, na coletânea Como si todo hubiera pasado. Veinte años de relatos sobre el conflicto vasco, que reune contos de ficção de sua autoria que até então circulavam apenas em euskara, o idioma ancestral dos bascos.
A amplitude dos temas tratados nos diferentes contos impede que se diga que há na obra uma linha de força que ofereça uma interpretação homogênea para a questão da violência no País Basco, chamada pelo autor de “La Cosa”. Em entrevista ao periódico El Diario, em novembro do mesmo ano, Zaldua sugeriu que “talvez o que há em todos eles é uma visão sobre o sem-sentido que tinha tudo aquilo”.
Aliás, comentando o lugar ocupado hoje pela novela de Fernando Aramburu como uma espécie de definidor do relato sobre o ETA, Zaldua se mostra desconfiado em relação às consequências de se fechar uma leitura unívoca a respeito dos fatos: “a literatura é o espaço onde se podem explorar os matizes e os cinzas e onde a diversidade deveria imperar. Uma obra com um afã de se converter na grande novela sobre La Cosa me parece um perigo”.
Posição semelhante é compartilhada pela escritora Edurne Portela, que assina o prólogo da coletânea de Zaldua. Portela também tem formação em história e é autora de duas importantes obras a respeito da violência do ETA, a novela Mejor la ausencia, de 2017, e o livro que mistura ensaio interpretativo e registros literários El eco de los disparos. Cultura y memoria de la violencia, publicado no ano anterior. O tema da memória sobre a violência atravessa ambos os livros, tratado de forma que, assim como colocado por Zaldua, a complexidade da experiência não ceda lugar a um relato hegemônico e falsamente conciliatório, como parece ser a aposta literária contida no Patria. Instada a comparar a sua própria novela com a de Aramburu, Portela foi direta ao afirmar na edição de 5 de setembro de 2017 do jornal El Español: “é muito mais obscura que Patria”.
As obras de Aramburo, Zaldua e Portela mostram algumas das direções tomadas pela literatura e pelo ensaio crítico como formas de trabalhar uma memória que ainda está quente no contexto espanhol, particularmente no País Basco.
Zaldua e Portela enfatizam a dimensão conflitiva e difícil deste trabalho, mostrando as muitas camadas de significados que se escondem por trás de uma experiência tão complexa (“não se pode escrever uma novela sore o ETA com sangue frio. Não! Não quis fazer uma novela equidistante”, respondeu Edurne Portela em uma entrevista). Não por acaso, a escolha de ambos recai em narradores que são sempre partícipes dos fatos, explorando a voz em primeira pessoa e um olhar que não se distancia daquilo que é narrado e que, por isso mesmo, tem dificuldade de apreender o todo em sua volta.
Aramburu, por sua vez, escolheu fazer um uso predominante do narrador em terceira pessoa, que fornece um olhar distanciado e uma perspectiva mais abrangente ao leitor, ainda que outras vozes surjam no relato. Seu intuito parece ser o de garantir não apenas uma explicação para as décadas em que a violência do ETA ocupava um lugar central no País Basco, mas também, e talvez sobretudo, indicar as formas pelas quais a conciliação é possível, apontando o caminho da convivência para a paz. Não é à toa que seu livro traz ao final um texto explicativo de como ele foi escrito, sob quais condições e a partir de que interesses.
Há uma nítida e confessada pretensão de realismo em sua novela, pensada por ele como um “testemunho literário”. Por isso, dota a obra e aquele que a elaborou de certo caráter heroico: “digo, com o coração na mão, que gostaria de não ter que escrever um livro como Patria; mas a história de meu país natal não me permitiu outra opção”.
A questão que fica aos leitores é saber quais as consequências desse tipo de relato sobre fatos tão complexos e recentes para a memória contemporânea daquela experiência.
Um passado quente para a historiografia
Em certa medida, essa preocupação com a memória manifestada pela literatura recente habita também parte das discussões com as quais estão envolvidos os historiadores bascos, encarada não apenas como uma simples questão de caráter metodológico, mas, sobretudo, como um tema de importância política. Como salienta Antonio Rivera no texto de abertura do livro Naturaleza muerta, “há por isso um tanto de cidadania como de profissão nas páginas que seguem”. Em outras palavras, este passado recente da realidade basca e espanhola é um chamado à intervenção pública por parte dos historiadores.
Uma pesquisa realizada em 2015 apontou que 44% dos bascos preferem virar a página e realizar uma espécie de esquecimento coletivo consentido diante da violência realizada pelo ETA, enquanto que 36% acreditam que preservar e trabalhar esta memória é uma condição para a convivência no presente. Assim, no entendimento de diversos historiadores, a administração basca vem realizando uma política memorial cujos efeitos é diluir a singularidade da violência terrorista no âmbito de outros muitos fenômenos históricos (como a “conquista espanhola”, a guerra civil, a ditadura franquista).
Em razão disso, para eles o problema que se apresenta situa-se no limiar entre a interpretação dos fatos e seu respaldo empírico. Em outras palavras, num confronto entre narrativas históricas variadas sobre um passado em disputa, o risco é não apenas o do conhecimento histórico sucumbir aos apelos da memória, mas inclusive o da negação dos fatos ocorridos.
A narrativa que insiste em situar o chamado “conflito basco” no âmbito de uma longa e secular história de conquista e autoritarismo do Estado espanhol, transformando a população basca numa espécie de vítima homogênea da história, é criticada no livro organizado por Rivera por constituir um relato inverossímil que desconsidera dados importantes, como o fato de que o maior número de vítimas mortais do ETA se deu já no contexto onde prevalecia a democracia e com o estatuto de autonomia da comunidade basca assegurado constitucionalmente.
A disputa em muitos casos assume a forma de um embate entre historiadores não universitários, vinculados a instituições de memória, como a Euskal Memoria Fundazioa, e historiadores ligados às universidades, que também realizaram trabalhos importantes a partir de demandas políticas do governo, como o Informe Foronda, realizado pelo Instituto de Historia Social Valentín de Foronda, ligado à Universidade do País Basco (Euskal Herriko Unibertsitatea).
Toda essa discussão envolvendo o tema das vítimas, a abordagem literária e o papel da historiografia mostram com essas questões transcendem a simples oposição entre memória e história, como se fosse uma mera disputa entre um plano considerado normalmente como ligado às emoções e outro voltado para a ciência e o conhecimento. Ela diz respeito às formas pelas quais as sociedades lidam com contextos de violência extrema em passados recentes cujos efeitos ainda são bastante visíveis e sensíveis no próprio presente. Mais do que isso, mostra em que medida a articulação entre políticas públicas e formas de expressão cultural (como a literatura e a historiografia, por exemplo) são fundamentais para que as sociedades encontrem os caminhos propícios para a convivência democrática.
Bibliografia recomendada
ARABURU, Fernando. Patria. Barcelona: Tusquets, 2016.
PORTELA, Edurne. El eco de los disparos. Cultura y memora de la violencia. Barcelona: Galaxia Gutemberg, 2016.
PORTELA, Edurne. Mejor la ausencia. Barcelona: Galaxia Gutemberg, 2017.
RIVERA, Antonio (ed.). Naturaleza muerta. Usos del pasado en Euskadi después del terrorismo. Zaragoza: Prensas de la Universidad de Zaragoza, 2018.
ZALDUA, Iban. Como si todo hubiera pasado. Veinte años de relatos sobre el conflicto vasco. Barcelona: Galaxia Gutemberg, 2018.
Como citar este artigo
NICOLLAZI, Fernando. Literatura e a historiografia como formas de compreensão dos traumas sociais e da memória sobre o grupo terrorista espanhol ETA (Artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/eta-trauma-literatura-historiografia. Publicado em: 5 ago. 2019. Acesso: