No último dia 16 de abril, a tese “A circulação e aplicação da psicocirurgia no Hospital Psiquiátrico do Juquery, São Paulo: uma questão de gênero (1936-1956)”, de Eliza Toledo, recebeu o 7º Prêmio de Teses da Anpuh (Associação Nacional de História), um dos mais importantes na área de história. Toledo é graduada e mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais e doutora em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC-Fiocruz). Atualmente, desenvolve pós-doutorado na mesma instituição.
“Foi extremamente gratificante. Sinto que após quatro anos de muita dedicação à pesquisa, da ajuda preciosa de minhas orientadoras e de colegas tão queridas/queridos, este prêmio representa mais do que a valorização do trabalho feito. Ele representa também a valorização de temáticas extremamente importantes para a história do Brasil, como aquelas do campo gênero e de outros marcadores sociais das diferenças, de sua relação com a prática psiquiátrica no país, da importância em se pensar saúde, doença, ciência e medicina como construtos sociais, influenciados pela cultura e política de sua época”, disse a pesquisadora ao Café História.
Psicocirugia
Eliza Toledo estudou da prática da psicocirugia, popularmente conhecida como lobotomia. Esse antigo procedimento, muito praticado na primeira metade do século XX, engloba um conjunto de intervenções cirúrgicas no cérebro de pacientes diagnosticados com complicações psiquiátricas específicas. No período estudado pela pesquisadora, essa prática era vista com entusiasmo por parte de renomados psiquiatras brasileiros, bem como no cenário internacional. No entanto, essas intervenções cirúrgicas, segundo os estudos da pesquisadora, poderiam provocar complicações graves e irreversíveis à saúde de quem era submetido a elas. Apesar de reconhecer que os psiquiatras almejavam a melhora do quadro das pacientes, Toledo nos convida à reflexão sobre a maneira como o corpo e a autonomia feminina têm sido colocados em segundo plano nas práticas médicas.
As mulheres foram mais submetidas à psicocirurgia
Ao realizar a análise de diversos registros do hospital, como prontuários médicos e documentação clínica, a pesquisadora constatou que apesar de pacientes homens serem maioria no Hospital Psiquiátrico do Juquery, as psicocirurgias foram mais aplicadas em mulheres entre as décadas de 1930 e 1950. De acordo com a historiadora, esta prática está associada à violência de gênero. Os ditos “comportamentos desviantes”, isto é, comportamentos que fugiam dos padrões estabelecidos pela sociedade, eram quase sempre classificados como distúrbios psiquiátricos.
“O olhar atento às fontes clínicas que abordavam o uso da psicocirurgia naquele hospital nos permitiram elaborar um perfil de pacientes que foram submetidos à terapêutica e especificidades de seu uso a partir de elementos quantificáveis, como diagnóstico, idade, ‘cor’ e sexo. Em relação a este último, os números demonstraram uma discrepância no uso em pacientes do sexo masculino e feminino, com grande prevalência sobre as mulheres. Por detrás das estatísticas, pudemos ver que essa diferenciação não foi apenas de ordem quantitativa, mas também qualitativa”, pontuou Toledo.
A pesquisadora ressalta ainda como a questão do “controle comportamental” estava intimamente ligada ao tratamento da psicocirurgia:
“Tais noções de gênero estiveram presentes na forma como os médicos enxergavam a patologia mental que deveria ser tratada pela psicocirurgia, perpassada por noções como a ‘instabilidade feminina’. O diagnóstico de personalidade psicopática, muitas vezes atribuído em relação ao seu caráter ‘amoral’, foi importante na indicação da cirurgia em mulheres classificadas pelos médicos como brancas, amarelas, negras e pardas, mas especialmente nestes dois últimos grupos, demonstrando uma tendência racialista em relação à percepção da patologia e de seu tratamento.”
Psicocirurgia em contexto
Para Toledo, não é possível realizar um estudo sobre a utilização da psicocirurgia sem associá-lo ao contexto histórico em que a prática esteve inserida. “A psicocirurgia foi coordenada por aspectos socioculturais daquele contexto, em nível internacional, nacional e local. Nesse sentido, ela se mostrou um objeto privilegiado de investigação histórica da prática médica como prática social”, afirma a historiadora.
Questões econômicas e culturais dos pacientes também devem ser levadas em consideração nessa análise contextual, acrescenta Toledo. “Os fracassos terapêuticos eram, de maneira recorrente, atribuídos ao ‘péssimo material’ humano utilizado, constituído de casos crônicos, já submetidos a outros tratamentos psiquiátricos, além ‘de nível mental baixo e cultural nulo’, o que tornaria ‘dificílima uma reeducação, elemento indispensável na psicocirurgia’, nas palavras dos psiquiatras.”
Havia consenso sobre essas práticas cirúrgicas?
De acordo com a pesquisadora, apesar dos riscos, a psicocirurgia não era uma prática marginalizada na medicina. Inclusive, o seu criador, o português Egas Moniz, venceu o prêmio Nobel de Fisiologia/Medicina, em 1949. Por outro lado, a autora destaca que os debates travados no Brasil acerca da ética médica e direitos humanos a partir da década de 1940 levaram à progressiva diminuição das psicocirurgias no Hospital Psiquiátrico do Juquery, tido como referência nacional em psiquiatria:
“Destaco também discursos contrários à terapêutica já naquele contexto, que colocavam em questão a vulnerabilidade de pacientes submetidos à psicocirurgia e seus efeitos. Além disso, as fontes demonstraram como antes das cirurgias essas pessoas vivenciaram formas de violência em suas vidas e mostraram resistências desses indivíduos às suas condições de vida e, em alguns casos, à própria terapêutica.”
A tese da pesquisadora é uma reflexão sobre os tratamentos dedicados ao que se considerava loucura entre as décadas de 1930 e 1950. Mas é também, como afirma a autora, um convite à reflexão de como práticas sociais violentas podem produzir o adoecimento de grupos minorizados ainda no tempo presente.