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Estado de exceção: dez obras para entender o tema

O “estado de exceção” é uma medida prevista em lei em muitos países, inclusive em países democráticos. Um Estado pode decretar um “estado de exceção” quando entender, por exemplo, que a sua soberania ou a ordem pública estão sob ameaça. Isso significa que determinadas leis e direitos fundamentais podem ser suspensos, passando o Estado a concentrar ainda mais poderes. Esse estado das coisas, porém, deve ser temporário – uma medida utilizada apenas em situações de emergência.

São inúmeras as experiências históricas de exceção no mundo, inclusive na Antiguidade: a formulação da noção de exceção costuma ser atribuída aos romanos. Sua aplicação, contudo, transformou-se bastante ao longo tempo, incorporando situações mais recentes, tais como declarações de estado de emergência, de guerra, de sítio, lei marcial e intervenções federais. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 não fala de “estado de exceção”, mas os os artigos 136 e 137 tratam do problema usando outra expressão mais ou menos equivalente, “estado de defesa”:

Polícia Holandesa em ação. Foto: Ben Koorengevel, Unplash.

“Art. 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza. Art. 137. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio […]”.

Vários pesquisadores, no Brasil e no mundo, têm se dedicado ao estudo do estado de exceção, sobretudo nas ciências jurídicas. Mas sua abordagem não é e não pode se resumir unicamente a uma noção técnica jurídica de avaliação das normas, carecendo de pesquisas que reflitam mais e melhor sobre sua adoção, sua justificação e sua estruturação, bem como revelando seus usos e seus abusos (um Estado democrático pode se tornar um Estado autoritário se recorrer frequentemente e sem justificativa plausível ao estado de exceção).

Em função da recorrência de casos de abusos desse expediente jurídico na história da América do Sul, vários de nossos vizinhos sul-americanos já se encontram bastante avançados em pesquisas que envolvem aspectos políticos, sociais e culturais da exceção. O Brasil, muito embora tenha recorrido largamente às práticas de exceção em sua história, ainda conhece muito pouco sobre os crimes cometidos, por exemplo, em períodos democráticos resguardados por um estado de exceção. De tal maneira, esta bibliografia comentada visa apresentar obras fundamentais para se compreender a extensão da temática e alertar para um urgente campo de pesquisa ainda pouco explorado sob aspectos mais amplos nas Ciências Humanas e Sociais no Brasil.

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2007.

Além de ser um dos filósofos mais instigantes da atualidade, Giorgio Agamben é uma referência obrigatória acerca da temática estado de exceção. Agamben classifica o estado de exceção como “a forma legal daquilo que não pode ter forma legal” ao analisar a contradição dos momentos extraordinários para suprimir as legalidades. Para isso, o filósofo italiano destrincha o pensamento do alemão Carl Schmitt1 e de seus estudos sobre ditaduras e noções de direito que teriam levado à instituição do estado de exceção como paradigma. Como obra fundamental para se entender o Estado e a política contemporânea, Agamben faz uma exposição das áreas mais obscuras do direito e da democracia, legitimando a violência e a arbitrariedade.

Ao ampliar o leque da exceção incluindo elementos como toques de recolher, pacotes econômicos, decretos e medidas provisórias e guerras preventivas, por exemplo, Agamben argumenta que o poder de regulamentação e controle não é mais excepcional, mas o padrão dos Estados nacionais modernos. A repercussão de sua obra o estabeleceu como fundamental referência contemporânea, mas também recuperou autores e análises de décadas e séculos anteriores para se entender melhor sobre a extensão do assunto.

SAINT-BONNET, François. L’État d’Exception. Paris: PUF, 2001.

Antes de Giorgio Agamben, todavia, o jurista francês François Saint-Bonnet já havia escrito uma obra extensa e necessária acerca do estado de exceção. Seu ponto de partida era compreender porque a questão do estado de exceção é repleta de problemas conceituais e políticos desde a Revolução Francesa, uma vez que era admitido sem dificuldades na época da República Romana. Por meio de um estudo histórico e teórico, Saint-Bonnet tenta dissipar as sombras do abuso de poder em torno do direito público da crise. Ainda sem tradução para o português, o jurista recupera as implicações da noção de exceção em Roma, na Idade Média e na Era Moderna, culminando na Revolução Francesa, quando o estado de exceção aparece nos domínios do Direito Constitucional, do Direito Administrativo e da Legislação de Exceção.

LAZAR, Nomi Claire. States of Emergency in Liberal Democracies. New York: Cambridge University Press, 2009.

Professora da Yale-NUS College, Nomi Lazar estimula o leitor a discutir e avaliar as emergências e o uso dos poderes emergenciais nos momentos anterior e posterior ao fato gerador. Isso porque esses poderes emergenciais estão presentes nas democracias liberais, ainda que sua natureza e justificativa sejam pobremente conhecidas. Sua obra procura mostrar como se pode evitar os perigos e as confusões inerentes à dualidade norma/exceção que domina o debate histórico e contemporâneo. Lazar sustenta que os valores liberais não precisam ser suspensos, mesmo em momentos de crise. O livro, também sem tradução para o português, é importante por destacar que o estado de exceção está presente nas democracias liberais, a espera de sua utilização.

GREENE, Alan. Permanent States of Emergency and the Rule of Law: constitutions in an age of crisis. Oxford: Hart, 2018.

Com uma das obras mais recentes desta lista, Alan Greene explora o impacto da noção de estado de emergência permanente na validade e na efetividade das normas constitucionais. O autor desafia a ideia de que muitas ordens constitucionais estão encarando estados de emergência permanentes por conta da natureza objetiva de ameaça aos Estados atuais, argumentando que a ameaça depende da subjetividade dos tomadores de decisão. De tal maneira, Greene busca refutar o desafio constitucional posto por Carl Schmitt de que todo o poder do Estado não pode ser coagido pela lei. A curiosa capa do livro é uma referência ao que denomina de “Buracos Negros Legais” (Legal Black Holes) e sua relação com os possíveis estados de exceção.

GARCÍA, Helena Alviar & FRANKENBERG, Günter. Authoritarian Constitutionalism: comparative analysis and critique. Northampton: Edward Elgar, 2019.

A única coletânea da lista é uma contribuição para a análise e crítica do constitucionalismo autoritário como um importante fenômeno não afastado do constitucionalismo liberal. O livro reúne 14 estudos que cobrem uma variedade de regimes autoritários passando por Hungria, África do Sul, China, Venezuela, Síria e Argentina, por exemplo, além de discutir o renascimento de agendas e movimentos autoritários, como o populismo, o trumpismo, o nacionalismo e a xenofobia. Partindo de diferentes perspectivas teóricas e com autores que também figuram nesta relação bibliográfica, a obra busca elucidar como o poder autoritário é constituído, exercido e transferido nas diferentes configurações da participação popular, nos imperativos econômicos e nas comunidades imaginárias.

LOVEMAN, Brian. The Constitution of Tyranny: regimen of exception in Spanish America. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 1993.

Autor da mais antiga obra desta relação, Brian Loveman, Professor emérito da San Diego University State, produziu um importante estudo sobre os regimes de exceção na América Espanhola traçando as origens e a função desse mecanismo institucional de legitimação da repressão política. Loveman argumenta que há uma fundamentação legal para a ditadura na América Latina e que ignorar essa infiltrada tradição seria ingenuidade sobre esse enraizado constrangimento da democracia que facilitaria a participação militar e a limitação das liberdades civis e dos direitos humanos.

Estado de Exceção pode ser utilizado para manter a ordem. Foto: Dawn Armfield, Unplash.

Sem abolir ou limitar severamente os regimes de exceção, conforme o autor, não se alcançará a democracia ou uma ordem constitucional. Para se chegar às ditaduras da segunda metade do século XX na América do Sul, o autor traça as formas legais pelas quais o autoritarismo se estabeleceu na região desde a formação de suas Repúblicas.

JÁCOME, Jorge González. Estados de Excepción y Democracia Liberal en América del Sur: Argentina, Chile y Colombia (1930-1990). Bogotá: Pontifícia Universidad Javeriana, 2015.

Aprofundando em casos específicos da América do Sul, Jorge González Jácome aborda a maneira como as críticas ao liberalismo e à democracia impactaram as ideias teórico-constitucionais sobre os estados de exceção na Argentina, no Chile e na Colômbia entre 1930 e 1990. O livro convida a compreender a história jurídica dos respectivos países a partir da conexão da política com o direito e da construção global e local do direito. De tal modo que os argumentos sobre o estado de exceção se conectaram de diversas formas com as distintas ideologias políticas da região e o pensamento constitucional criou linguagens genéricas globais ao mesmo tempo em que permitiram aos juristas e intelectuais interpretações locais. O livro é uma interpretação específica de como o Direito Constitucional construiu o seu próprio espaço político.

TAVARES, Marcelo Leonardo. Estado de Emergência: o controle do poder em situações de crise. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

Finalmente inserindo um estudo brasileiro na relação, a obra em questão, como ocorre na maioria dos casos, é fruto das ciências jurídicas. Originalmente elaborado como tese de doutoramento, Marcelo Tavares produziu um importante estudo sobre os limites jurídicos das medidas de exceção adotadas pelo Estado de Direito. O autor buscou estabelecer posições de barragem ao arbítrio com base em parâmetros democrático-liberais para a ação executiva de emergência. Ou seja, Tavares não desconsidera permitir ao Estado oportunidades de defesa contra ameaças que coloquem em risco a sua existência. A relevância de sua obra reside na releitura histórica das Constituições brasileiras apontando a evolução das suas respectivas normas para as situações de emergência. É um livro tecnicamente importante e muito bem articulado com fundamentações históricas e filosóficas.

MARQUES, Raphael Peixoto de Paula. Repressão Política e Usos da Constituição no Governo Vargas (1934-1937). Curitiba: Prismas, 2016.

Por fim, o livro de Raphael Marques é uma singular e valiosa contribuição acerca da prática do estado de exceção em um regime democrático no Brasil. Marques, que também possui formação nas ciências jurídicas, se debruçou sobre o conturbado governo de Getúlio Vargas entre 1934 e 1937 para avaliar as complexas relações entre direito e política no período. Com base nos pressupostos constitucionais, Vargas teria se beneficiado das normas para a repressão de seus adversários e para preparar o terreno para a sua escalada para o Estado Novo, recorrendo ao estado de sítio e ao estado de guerra como aplicabilidades do estado de exceção. Trabalhos como esse são urgentes no Brasil, avaliando os usos da exceção e sua extensão na vida política e social brasileira.

GASPARETTO JÚNIOR, Antonio. Atmósfera de Plomo: las declaraciones de estado de sitio en la Primera República brasileña. Valência: Tirant lo Blanch, 2019.

Encerrando com uma notória ousadia, o livro em questão é fruto de uma tese de doutoramento em História que retoma a questão do estado de exceção no decorrer da Primeira República brasileira. Período marcado pela recorrência da utilização do instituto do estado de sítio mais do que em qualquer outro momento da República no Brasil, o assunto ainda não havia recebido qualquer atenção específica acerca de suas implicações políticas e sociais. A obra em questão revela, então, os usos e os abusos da referida norma constitucional que viabilizou o arbítrio na repressão das oposições políticas e de grupos sociais indesejados no Brasil do período. O trabalho conquistou o segundo lugar no Premio de Investigación Doctoral en Historia del Derecho en América Latina.

Notas

[1] Nas décadas de 1920 e de 1930 Carl Schmitt foi um dos mais proeminentes juristas da Alemanha, quando formulou suas teorias a respeito do estado de exceção, das formas da ditadura, da dualidade amigo/inimigo e do papel do soberano. Sua noção de estado de exceção aparece espalhada em várias obras das referidas décadas, sendo uma referência crucial para se entender a questão no período. Schmitt seria vinculado, inclusive, à elaboração de um arcabouço teórico-jurídico de sustentação para a Alemanha nazista.

Como citar esta bibliografia comentada

GASPARETO JÚNIOR, Antonio. Estado de exceção: dez obras para entender o tema. (Bibliografia Comentada). In: Café História – história feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/estado-de-excecao-bibliografia-comentada/. Publicado em: 02 set. 2019.

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