Na escola, você deve lembrar de ter estudado nas aulas de história a chamada “época moderna”, um período de grandes transformações que envolveu a política, a economia e a cultura. Mas você saberia dizer o que foi essa tal “época moderna”? Ou ainda, você saberia dizer quais foram seus principais eventos, questões e acontecimentos? Esses são alguns dos desafios encarados por autores e autoras do livro A época moderna, que acaba de ser publicado pela editora Vozes e organizado por um time de historiadores: André de Melo Araújo, Luis Filipe Silverio Lima, Andrea Dore, Rui Luis Rodrigues e Marilia De Azambuja Ribeiro Ma.
Longe de oferecer uma resposta única, a obra mergulha na multiplicidade de agentes e eventos que definiram o período do século XV ao XVIII, onde o mundo, entrelaçado por contatos e conflitos, viveu muitas modernidades, não apenas uma versão europeia e ocidental. O livro é produto da rede h_moderna, que congrega colegas historiadoras e historiadores brasileiros atuantes no ensino de História Moderna em todo o Brasil.
A proposta inovadora desse manual é abrir caminho para um olhar que acolhe as diferentes vozes e experiências históricas, indo além das narrativas tradicionais. Nele, leitores encontrarão mulheres indígenas da América, sociedades islâmicas em expansão e camponeses europeus lutando por seu espaço, numa trama que revela a riqueza de interações globais que moldaram a Época Moderna. Mesmo ao abordar os conhecidos marcos históricos, como o Renascimento e a Revolução Francesa, o livro amplia o espectro da compreensão para além da visão eurocêntrica habitual.
Para explorar essas perspectivas e desvendar os bastidores desta obra singular, entrevistamos André de Melo Araújo, professor do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB) e um dos organizadores e autores do livro (que já pode ser adquirido aqui). Na conversa, Araújo compartilhou insights sobre as escolhas editoriais, os desafios da pesquisa e a relevância de se repensar a modernidade com um olhar mais inclusivo e global.
Falo no plural, porque essa entrevista é uma produção em conjunto, envolvendo professores e estudantes da Universidade de Brasília (UnB), da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e da Universidade de São Paulo (USP), sob a minha supervisão e a do professor Daniel Gomes de Carvalho (USP).
Como você explicaria o que é a “Época Moderna” para quem não estuda história?
Época Moderna é um termo que designa uma unidade de tempo, um período da história. Por meio de termos como Época Moderna ou Época Contemporânea, historiadoras e historiadores procuram conferir unidade a um conjunto de acontecimentos e, assim, atribuir sentido ao passado. Os problemas associados a esse esforço intelectual chamado de periodização começam quando procuramos explicitar os parâmetros epistemológicos, cronológicos e espaciais em função dos quais um período é definido.
No caso particular do termo Época Moderna, a expressão “história nova” foi utilizada no século XVII, em latim, por um acadêmico europeu chamado Christoph Cellarius para designar os acontecimentos históricos ocorridos nos últimos dois séculos, incluindo, portanto, o tempo presente dele, a época na qual ele vivia. Ao utilizar essa expressão, Cellarius dividiu a história em três momentos: o período dos Antigos, um tempo do meio – ou uma Idade Média – e a história nova. Desse modo, um primeiro parâmetro utilizado por Cellarius é de ordem intelectual, cultural e política, ao responder à necessidade do seu tempo presente de identificar um processo de transformação das sociedades em curso e, sobretudo, de se diferenciar dos tempos passados.
Mas é apenas nos séculos XIX e XX que o termo Época ou Idade Moderna se consolida nas línguas de origem latina para designar o período em que viveu Cellarius, um período que já não mais era considerado como presente. Assim, nos deparamos com o segundo problema: quando exatamente teve lugar a Época Moderna? O debate é caloroso… Em função de diferentes perspectivas de análise, há grupos de historiadores que localizam transformações fundamentais por volta do ano de 1350, enquanto outros preferem datar o início desse período em 1450. O debate fica ainda mais intenso quando se discutem os marcos cronológicos finais dessa época. De uma perspectiva francesa, uma nova época histórica tem início após a Revolução Francesa, deixando a Época Moderna para trás. Esse é um parâmetro frequentemente adotado nos livros didáticos e nos cursos de história no Brasil. Já na Inglaterra, historiadores que estudam a Época Moderna – em inglês designada pelo termo Early Modern Period – encerram esse período um século antes, enquanto mudanças políticas mais significativas na Alemanha empurram o final do mesmo período para o início do século XIX. Com isso, notemos que o debate em torno da cronologia de um período histórico não pode prescindir de referências espaciais e contextos linguísticos e acadêmicos. E ao destacarmos os casos inglês e alemão para compararmos com o nosso, notemos que os termos adotados nessas regiões para designar a Época Moderna surgem modulados por um adjetivo: Early em inglês, e Früh em alemão. Ao ser modulada por um adjetivo, a Época Moderna também é designada em língua portuguesa por meio da expressão “Primeira Modernidade”.
Época Moderna e modernidade seriam, portanto, a mesma coisa?
Não podemos fazer confusão aqui. Vejamos que o termo em inglês Early Modern Period, frequentemente traduzido como “Primeira Modernidade”, pressupõe que esse período histórico designado em língua portuguesa por Época Moderna seja a primeira fase de um período maior. Daí o adjetivo “early”, cedo, primeiro, inaugural, ser o elemento modulador da expressão. E a segunda fase – que dá sequência à primeira – é conhecida pelo termo Época, Idade ou História Contemporânea que, segundo a tradição francesa, tem início após a Revolução Francesa e chega até hoje. Ocorre que foi no início dessa segunda fase que o termo “modernidade” se consolidou.
Como apresentamos na introdução do livro A Época Moderna, pensadores do início do século XIX adicionaram aos termos “moderno” e “modernidade” uma carga teleológica, ou seja: a modernidade designava um caminho único, necessário e desejável do curso histórico das mais diversas sociedades. Mas foi sobretudo após a Segunda Guerra Mundial que a chamada modernidade passou a ser interpretada não mais como um caminho em direção a uma suposta melhor e mais elevada condição de vida, mas sobretudo como a causa de uma crise de ordem global que resultava das ações expansionista e colonialista da política europeia.
A proposta inovadora desse manual é abrir caminho para um olhar que acolhe as diferentes vozes e experiências históricas, indo além das narrativas tradicionais.
– André de Melo Araújo
Tendo isso em mente, os capítulos presentes no livro A Época Moderna foram escritos por 35 historiadoras e historiadores para mostrar como esse foi um período da história durante o qual as mais diversas culturas e, por extensão, as mais diversas formas coletivas de vida entraram em contato e em conflito. E, para compreendermos a dimensão histórica desses contatos e conflitos, temos consciência de que o período histórico deve ser estudado para além da perspectiva europeia e frequentemente eurocêntrica.
O que costuma causar celeuma entre os historiadores da Época Moderna?
O chamado eurocentrismo! Por mais que alguém ainda não tenha se deparado com essa palavra, não é difícil compreender o que ela significa: o centro é a Europa. Essa centralidade é vivenciada por alunas e alunos das escolas do ensino fundamental já ao observarem os chamados mapas-múndi que frequentemente apresentam o continente europeu no centro de uma imagem planificada de uma esfera, de um globo. Ocorre que as formas de representação cartográfica do espaço também têm uma história.
Na Época Moderna, a cartografia respondia, por um lado, às necessidades de orientação impostas pelas crescentes atividades de navegação. Por outro, ela também representava o espaço em função de demandas de ordem religiosa: há mapas que apresentam a cidade de Jerusalém no centro, enquanto outros mais antigos encontravam-se orientados não para o Norte (sendo essa a orientação cartográfica a que atualmente estamos acostumados), mas para o Sul. Nesse último caso, trata-se de mapas anteriores à Época Moderna que foram concebidos tendo em vista a localização de Meca para os muçulmanos que povoavam o norte da Península Arábica. De um ponto de vista cultural, essa população tinha como um “norte” cultural o que se localizava ao sul geográfico da região em que viviam.
Mas do que nos servem aqui essas imagens cartográficas? Elas servem para mostrar que toda forma de comunicação – verbal, corporal ou imagética – apresenta um ponto de vista em função do qual a mensagem foi produzida. Ou seja, cabe às historiadoras e aos historiadores explicitar os pontos de vista em função dos quais os vestígios materiais do passado foram produzidos. De forma análoga, cabe às historiadoras e aos historiadores explicitar os pontos de vista em função dos quais as narrativas sobre os acontecimentos históricos foram igualmente produzidas. Em muitas delas, a perspectiva europeia dos contatos e conflitos que marcaram a Época Moderna é mais frequente. E isso ocorre por uma série de motivos. Em primeiro lugar, por uma questão de força, uma vez que a história dos vencedores frequentemente se sobrepõe à história dos vencidos. Em segundo lugar, por uma questão de ordem cultural e técnica: diversos eram os exemplares que espalhavam relatos de viagem sobre as mais próximas e distantes partes do mundo produzidos nas oficinas de impressores europeus. E uma parte desses documentos encontra-se atualmente preservada. Assim, é preciso compreender que a representação narrativa dos fenômenos históricos, bem como a história da transformação dessas narrativas em documentos históricos frequentemente abrigados em arquivos, não são destituídas de um ponto de vista. O eurocentrismo é um deles. Mas ocorre que a crítica a esse ponto de vista também carrega outro ponto de vista. Daí a celeuma!
Em que aspectos este manual se distingue de outros realizados anteriormente?
O livro A Época Moderna é um produto da rede h_moderna, que congrega colegas historiadoras e historiadores brasileiros atuantes no ensino de História Moderna em todo o Brasil. Ao concebermos essa obra, estabelecemos que todos os capítulos deveriam ser escritos de maneira colaborativa, em coautoria por dois ou mais autores, justamente para abrigar perspectivas complementares sobre os temas particulares de cada capítulo. Nesse aspecto, essa obra já se distingue de boa parte dos outros livros hoje disponíveis no mercado editorial brasileiro e mundial.
Em comparação com os manuais produzidos no chamado Norte Global, o nosso livro traz uma dimensão bastante abrangente da Época Moderna, ao considerar comparativamente com maior ênfase os agentes e os problemas relacionados à história da América, em geral, e do Brasil, em particular. Por exemplo, no capítulo dedicado ao Capitalismo, o público brasileiro irá encontrar diversas referências às formas de organização do trabalho nas Américas. Adicionalmente, questões relacionadas ao gênero e à agência no negócio global de escravizados indígenas encontram-se no centro do capítulo intitulado “Trajetórias indígenas”, que acompanha o destino de pessoas escravizadas. No manual, ainda se discute a atividade da prensa de tipos móveis nas colônias portuguesas e espanholas na América, algo frequentemente negligenciado em outros títulos sobre o tema. Outro diferencial, agora sobretudo frente aos títulos disponíveis em língua portuguesa, é que o livro A Época Moderna traz uma série de capítulos voltados para regiões pouco visitadas pelos estudos brasileiros, como a Península Arábica, da Índia, da China, da Coreia e do Japão.
Mas ao incorporarmos esses espaços na concepção do manual, não abrimos mão de introduzir textos mais atualizados sobre problemas clássicos da historiografia do período, como os capítulos sobre o Renascimento, as Reformas Religiosas e a Revolução Francesa. A introdução do livro, que já circula gratuitamente na internet, ainda apresenta a história do estabelecimento do campo de estudo da História Moderna nas universidades brasileiras. Ao considerarmos o conjunto desses capítulos, podemos dizer que este manual traz uma grande novidade para o mercado editorial brasileiro e mundial.
Por anos, pensou-se Época Moderna no Brasil por meio da Europa e de suas colônias no continente americano. De que modo esse livro consegue repensar a “globalidade” da Época Moderna ao tratar não só da África, mas também das sociedades do Leste Asiático?
É certo que a Época Moderna foi por anos pensada no Brasil a partir do chamado comércio triangular. Essa ideia levava em consideração o comércio de matérias-primas, mercadorias e pessoas entre a Europa, a África e a América. Partindo dessa lógica, a história das populações africanas e indígenas, por exemplo, era frequentemente reduzida a um elemento da engrenagem do sistema de exploração colonial. As perspectivas historiográficas mais recentes apresentadas nos capítulos do nosso manual colocam essa lógica em xeque, ao executar dois movimentos: em primeiro lugar, confere-se maior poder de agenciamento, por exemplo, aos personagens da diáspora africana ou às mulheres indígenas. Em segundo lugar, expande-se a conexão entre os povos em uma escala mais global.
Eu dou alguns exemplos que são mais detidamente explorados nos capítulos do livro. Tendo em vista a população de fé muçulmana distribuída em diversos continentes entre os séculos XV e XVIII, o livro leva o público-leitor a refletir sobre a manifestação de práticas culturais e religiosas em diferentes escalas. Uma vez que as condições de vida de um muçulmano na África, na Ásia, na Europa ou na América eram distintas na Época Moderna – e permanecem distintas até hoje –, até que ponto é possível pensar no exercício homogêneo, de um ponto de vista global, das práticas de uma mesma fé?
O livro também nos convida a pensar como a expansão do Cristianismo na Ásia resultou na produção de dicionários de línguas nativas para auxiliar o processo de evangelização. E para nos voltarmos para o exemplo que surge na sua pergunta, o livro ainda nos leva a conceder maior ênfase à atuação das sociedades do Leste Asiático na constituição de redes de comércio e de trocas que não devem ser compreendidas tendo em vista apenas o contato com as Companhias de Comércio europeias, mas também a força vigorosa do sistema tributário imperial chinês. Ao conferir mais espaço para essas questões, o livro pretende alargar o conjunto de atores e instituições em função dos quais se pode agora pensar a Época Moderna a partir de uma dimensão mais global, no Brasil.
Como os professores do ensino básico podem usar o livro em suas aulas?
O livro pode ser utilizado por professoras e professores para apoiar atividades desenvolvidas em sala de aula de diversas formas, seja no ensino escolar ou no ensino superior. Em primeiro lugar, a obra apresenta tanto um debate mais atualizado de temas clássicos do ensino escolar e universitário, quanto traz capítulos sobre temas sobre os quais há pouca literatura publicada em língua portuguesa, como já dissemos. Ao final de cada capítulo, encontra-se ainda uma lista com indicações bibliográficas adicionais comentada. Mas eu creio que o melhor uso que pode ser feito do manual em sala de aula é tentar instigar entre as alunas e os alunos debates em torno de questões que surgem no cruzamento entre mais de um capítulo.
A partir do que se apresenta nos capítulos do livro, é possível estimular debates em sala de aula sobre o conhecimento transmitido por mulheres indígenas na costa do Brasil e confrontá-lo com distintos mecanismos de registro da informação, tal como um livro de receitas culinárias e médicas compiladas à mão por uma mulher na Inglaterra do século XVII, tal como apresentado em um dos capítulos. Também nessa perspectiva, pode-se estimular debates em sala de aula sobre o desenvolvimento da cartografia lunar, da astronomia e a expansão de calendários que registram as fases da lua e foram comercializados a um preço relativamente baixo, de modo a atender às demandas por informação de uma população predominantemente campesina e iletrada.
Qual a principal diferença que você acredita que exista entre a Época Moderna ensinada nas universidades e a Época Moderna percebida pelo grande público? O manual ajuda, de alguma maneira, a diminuir essa distância, caso ela exista?
Aferir como uma época histórica é percebida hoje não é uma tarefa fácil. Mas eu posso, todavia, apresentar uma premissa de trabalho e um direcionamento do problema a que você faz referência.
A minha premissa de trabalho é a seguinte: a nossa forma particular de percepção dos acontecimentos do passado ou do presente tem uma dimensão que é de ordem coletiva. Ou seja, interpretamos ações e sentimentos a partir da cultura e das instituições a que nos encontramos vinculados. Nesse sentido, pode-se pressupor que a Época Moderna seja ensinada nas universidades e como esse período histórico é percebido pelo grande público é distinta, uma vez que esses dois universos populacionais operam de forma diversa com os problemas do passado. Enquanto o primeiro universo populacional explora os documentos históricos de modo mais profissional e científico, o segundo se volta para o passado tendencialmente em busca de orientação. Agora notem que o primeiro grupo está contido no primeiro. Ou seja, todas as pessoas vinculadas a uma instituição universitária também fazem parte do grande público, mas nem todo o grande público passa pela formação superior ou tem contato com a produção científica sobre temas históricos, daí a importância do nosso manual. Dessa premissa decorre o meu encaminhamento do problema levantado na sua pergunta.
Os leitores universitários encontrarão nos capítulos do manual perspectivas historiográficas distintas, desde uma abordagem da Época Moderna mais vinculada à história política até capítulos que privilegiam a história econômica ou cultural. O que essas pessoas encontram no livro é resultado, portanto, das perguntas que as impulsionam para a leitura. Já o público geral pode ficar fortemente interessado nos capítulos desse livro ao se deparar com uma análise das grandes transformações ocorridas na Época Moderna vinculada, por exemplo, às formas de circulação da informação, com a introdução da prensa de tipos móveis. Assim, o público geral pode identificar, nesse período, transformações semelhantes àquelas a que assistimos contemporaneamente com o surgimento de novas formas de circulação da informação na internet. O mesmo público pode ainda encontrar no livro reflexões sobre o choque epidemiológico responsável pela diminuição radical da população indígena na chamada Nova Espanha, e relacioná-las com a disseminação de doenças causadas por vírus em uma escala global no século XXI. Trata-se de duas perspectivas de leitura igualmente válidas! Ou seja, não é que o manual ajuda, de alguma maneira, a diminuir a distância entre como a Época Moderna é ensinada nas universidades e como ela é percebida pelo grande público. É que a percepção dos acontecimentos históricos é sempre mediada por relações de proximidade e de distância.
Como citar essa entrevista
DE MELO ARAÚJO, André. “A percepção dos acontecimentos históricos é sempre mediada por relações de proximidade e de distância”. Entrevista realizada por Bruno Leal Pastor de Carvalho (UnB), Daniel Gomes de Carvalho (USP), Gino de Castro Pinori (UnB), Jessica Aparecida Rangel de Oliveira (UNESP), João Vitor Araújo (USP), Guilherme Ghefter (USP), Alêtsia Junqueira (USP) e Fernando Cyrillo Jr (USP). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/epoca-moderna-entrevista- andre-de-melo-araujo/. Publicado em 4 nov. de 2024. ISSN: 2674-5917.