A transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, marcou um ponto de inflexão na história do Brasil e do Império Português. Escapando das tropas napoleônicas, a família real portuguesa, liderada pelo príncipe regente Dom João, estabeleceu um novo centro de poder nos trópicos. Este evento transformou o Rio de Janeiro em capital do império, trouxe mudanças institucionais significativas e introduziu novos elementos culturais e administrativos que moldariam o futuro político do Brasil. Mas o Rio de Janeiro foi o único centro de poder dessa nova configuração política e geoespacial do Império Português? O historiador Marcos Aurélio Pereira, da UnB, explica que não.
Em estudo recente, Pereira utiliza o conceito de “policentrismo” para se referir ao exercício do poder após 1808. Ele observa que, com a transferência da corte, “não havia um único centro de poder, outrora Lisboa, mas […] vários centros que compartilhavam a autoridade e a administração do império”. Essa dinâmica criou uma estrutura flexível e adaptável, permitindo que diferentes regiões do império se organizassem de forma semiautônoma. Ao mesmo tempo, o hibridismo político e cultural, alimentado pela presença prolongada da monarquia no Brasil, contribuiu para a consolidação de identidades e práticas únicas, influenciando até mesmo o processo de independência.
A entrevista explora ainda as implicações desse policentrismo e hibridismo na formação do Estado brasileiro. Diferentemente de seus vizinhos latino-americanos, o Brasil optou por uma monarquia centralizada, o que reflete a continuidade de traços políticos herdados de Portugal. Ao mesmo tempo, Pereira destaca que a permanência da corte no Brasil não foi um evento isolado, mas parte de um fenômeno global de deslocamentos de poder. Essa perspectiva comparativa ajuda a situar a experiência brasileira em um maior, evitando interpretações excessivamente excepcionalistas da história nacional.
Marcos Aurélio Pereira é Doutor em História através da Universidade Federal Fluminense e Mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais. Na Universidade de Brasília, onde é professor associado de História Moderna, pesquisa História Moderna, Brasil Colonial e Antigo Regime. Península Ibérica – História política. Pós-doutorado em História junto à Universidad Pablo de Olavide- UPO/Sevilla- Espanha.
Como você explicaria para alguém que não conhece muito bem a história do Brasil o que foi a transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro?
A transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro foi um evento marcante na história do Brasil e de Portugal. Em 1807, diante da ameaça de invasão pelas tropas de Napoleão Bonaparte, a família real portuguesa, liderada pelo príncipe regente Dom João, – futuro D. João VI – decidiu fugir para o Brasil. Essa decisão foi tomada no intuito de assegurar a sobrevivência da soberania portuguesa, a dinastia dos Bragança e manter a independência do reino, já que Portugal se recusou a aderir ao Bloqueio Continental imposto por Napoleão, que visava enfraquecer a Inglaterra. As tropas napoleônicas atravessaram a Espanha com destino a Lisboa na intenção de tomar o trono português.
“Várias faces da Independência do Brasil” foi um dos livros mais vendidos sobre o tema em 2022, durante o bicentenário da Independência. Nele, os maiores especialistas no tema falam sobre os aspectos políticos, militares, culturais e econômicos dos eventos que mudaram para sempre a história brasileira. Indígenas, escravizados, mitologias – está tudo lá, em linguagem acessível, mas sem perder o rigor acadêmico. Confira aqui.
A viagem da corte foi uma operação grandiosa, envolvendo cerca de 15 mil pessoas, incluindo nobres, servos e funcionários. Por medida de segurança, a família real portuguesa fez a viagem em naus separadas. Eles partiram de Lisboa em novembro de 1807 e chegaram ao Brasil em janeiro de 1808, inicialmente desembarcando em Salvador, na Bahia, onde foram recebidos com missas, festas e folguedos, antes de seguirem para o Rio de Janeiro.
A chegada da corte ao Brasil trouxe profundas transformações. O Rio de Janeiro se tornou a capital da Nação Portuguesa e várias instituições importantes, como as que já existiam em Portugal, foram recriadas aqui e outras novas também, como a Biblioteca Real, o Banco do Brasil e a Imprensa Régia. Esse movimento, a qual a historiografia, a partir de análises de Oliveira Viana (que já usara os termos inversão brasileira e hibridismo em sua obra) e depois pelas contribuição de Maria Odila Leite da Silva, que interpretou aquele contexto a interiorização da metrópole, teve, poucas décadas depois, um impacto significativo no processo de independência do Brasil.
Em seu artigo, você fala do “policentrismo do Império híbrido luso-brasileiro”. Você pode explicar o que seria “policentrismo” e, por que “Império híbrido luso-brasileiro”?
O termo que utilizei, policentrismo, refere-se à existência de múltiplos centros de poder ou influência num mesmo sistema. Nesse tipo de sistema, havia regras distintas de negociação em cada um dos territórios, com suas próprias estruturas legais e administrativas. Em cada território existia alguma forma de assembleia – além dos demais aparelhos de Estado – representativa, mas seu papel e interesses eram notavelmente diferentes. Esses termos estão referenciados no artigo nas obras Polycentric Monarchies, editado pelo historiador lusitano Pedro Cardim, dentre outros, e, também, no capítulo escrito por Regina Grafe, Polycentric States, publicado na coletânea Mercantilism reimagined, de Philip J. Stern e Carl Wennerlindo.
Voltando ao contexto no qual emprego a noção de policentrismo, considero que esse foi do império português ultramarino instalado no Brasil e da antiga metrópole. Quero dizer que, no contexto do Império luso-brasileiro, significa que não havia um único centro de poder, outrora Lisboa, mas que, naquele contexto, existiam vários centros que compartilhavam a autoridade e a administração do Império Português. Isso pode incluir diferentes cidades, regiões ou até mesmo instituições que tinham um papel significativo na governança e na tomada de decisões. Muitas medidas corroboram essa análise, o rei estava no Brasil, havia em Portugal os “governadores do Reino” e nas antigas colônias além-mar tornaram-se províncias com governadores indicados e que mantinham frequentemente correspondência com a corte carioca.
A perspectiva de um “Império híbrido luso-brasileiro” é uma expressão criada por mim, com a intensão de destacar a natureza mista e complexa do império durante o período em que a corte portuguesa estava no Brasil. Houve, como alego no artigo, uma dupla inversão. Em primeiro lugar, esse termo “híbrido” reflete a combinação de elementos portugueses e brasileiros na administração, na política, na cultura e naquela sociedade de fins do século XVIII e início do XIX. Ou seja, a mescla, a mistura do edifício administrativo-político português com a adaptação às condições e circunstâncias do jeito de se exercer o poder na América portuguesa já acontecia e isso se acentuou a partir da chegada da família real e seu séquito.
A transferência da corte para o Rio de Janeiro em 1808 e a subsequente permanência da família real no Brasil até 1821 criaram uma situação única em que o Brasil se tornou o principal – embora não único – centro de poder dentro do império português, levando a uma fusão de influências e práticas de ambos os lados do Atlântico. Por outro lado, em termos de uma análise historiográfica, centro e periferia se misturaram e a monarquia sobrevivia aqui e em todo o império.
Portanto, minha leitura é que o hibridismo, sempre apontado como sinônimo de misturas de povos e cultura pela nossa historiografia, pode ser – guardadas as devidas proporções científicas (ou epistemológicas) – pensado como ferramenta de construção do saber histórico sobre o Brasil, ampliando-o também, para as leituras sobre nossas culturas políticas. Assim, em termos de parâmetros analíticos, considera-se que essa combinação de policentrismo e hibridismo ajudou a moldar a identidade e a estrutura do império durante esse período crucial da história luso-brasileira.
Quais são as implicações desse policentrismo para entendermos a transição do Brasil para a independência?
O policentrismo do Império luso-brasileiro teve várias implicações importantes para a transição do Brasil para a independência. Houve uma distribuição de poder que antes estava centralizada, pelo menos de forma oficial, em Portugal. A existência de múltiplos centros de poder permitiu que diferentes regiões do Brasil desenvolvessem uma certa autonomia administrativa e política. Isso facilitou a articulação de movimentos locais de independência, antes mesmo de 1821, que não dependiam exclusivamente de um único centro de poder.
Outro elemento muito importante a se considerar é que havia, naquele contexto, uma diversidade de interesses. Essa diversidade ajudou a criar um ambiente propício para o surgimento de lideranças regionais, tanto aqui como em Portugal – e mesmo na ação de membros da realeza, como o pretendido por Carlota Joaquina – que defendiam a independência, cada uma com suas próprias motivações e objetivos.
Outras consequências a se considerar são a flexibilidade administrativa e a influência cultural e social. O policentrismo permitiu uma maior flexibilidade na administração do império, o que foi crucial durante os períodos de crise. Essa maleabilidade ajudou a manter a coesão do império até que as condições para a independência estivessem maduras.
Quero dizer com isso que as mudanças com a transferência da Corte e posterior elevação do Brasil a Reino Unido de Portugal e Algarves provocaram alterações que não davam mais para ignorar e desfazer. Houve, ao mesmo tempo, maior troca cultural. A corte com seus costumes, regras, etiquetas, protocolos, privilégios, mercês e honrarias se estabeleceu nos trópicos e esses elementos citados foram assimilados pelos “brasileiros” daqui, em especial pela elite detentora de terras e grande número de escravizados.
Enquanto isso, nesse contexto, havia a situação europeia que sofria muitas alterações. A estrutura policêntrica e híbrida, característica desse período permitiu que o Brasil respondesse de maneira mais eficaz às mudanças políticas na Europa, como a Revolução Liberal do Porto em 1820. Tais mudanças culminaram, não de forma direta, mas evidentemente de forma significativa, para o processo de independência, pois as elites brasileiras, aquelas mesmas que se beneficiaram com a presença do monarca no Brasil, começaram a ver a separação de Portugal como uma forma de proteger seus próprios interesses.
Olhar esse evento como algo absolutamente singular pode nos levar a pensar a história do Brasil por um viés de excepcionalismo, como ocorre no caso norte-americano?
É possível interpretar a transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro como um evento absolutamente singular e talvez, em termos comparativos, supor que possa levar a uma visão de excepcionalismo na história do Brasil, semelhante ao que ocorre com a história dos Estados Unidos. No entanto, como não foi essa minha motivação principal, é importante considerar alguns pontos:
A transferência da corte portuguesa foi uma resposta a um contexto global de conflitos e mudanças políticas, especialmente as Guerras Napoleônicas. Isso mostra que a fuga da família real não foi um evento isolado, mas parte de um cenário mais amplo de transformações históricas na geopolítica daquela época. Todavia, em termos de comparações históricas, outros impérios – como o de Espanha – também passaram por processos de deslocamento de centros de poder e reconfiguração política. Por exemplo, as mudanças no trono espanhol, no qual o rei Carlos foi destronado em favor de seu filho Fernando, e a posterior nomeação de José Napoleão como governante da Espanha, o que casou revoltas naquele país.
Junta-se a todo esse movimento a tentativa fuga da família real espanhola no ano de 1808 para o México durante a invasão napoleônica, o que foi impedido num motim na cidade de Aranjuez. Nesse ínterim, as ex-colônias hispano-americanas entraram em convulsão, a princípio contra a invasão francesa, mas buscando posteriormente a própria independência através da luta popular e de muitas revoltas. Isso ajuda a contextualizar a transferência da corte portuguesa como parte de um fenômeno mais amplo de várias transformações.
Por fim, considera-se, como explicado ao longo do artigo, que a história do Brasil, assim como a de qualquer país, pode ser contada de várias maneiras. Enfatizar a singularidade de certos eventos pode contribuir para uma narrativa de excepcionalismo, mas também é importante reconhecer as conexões e influências mútuas com outras nações e culturas. Portanto, enquanto a transferência da corte portuguesa para o Brasil foi um evento significativo e único em muitos aspectos, é crucial situá-lo em um contexto histórico mais amplo para evitar uma visão excessivamente excepcionalista da história brasileira.
Na UnB, você ensina História Moderna. Um dos “temas clássicos” nesta área de estudos é o Estado. O Estado brasileiro vai formar-se no decorrer do século XIX a partir de um regime monárquico, enquanto os demais Estados latino-americanos vão se constituir a partir do regime republicano. Essa é a única diferença entre o Estado brasileiro e os nossos vizinhos? Ou teria mais coisa aí?
Ao pensarmos a formação tanto do Estado brasileiro quanto dos demais estados na América do Sul, há de se considerar que os elementos e órgãos burocráticos que caracterizam e fazem funcionar o Estado já existiam na América. No caso do Brasil, com a transferência da Corte para cá em 1808, toda uma estrutura, com moldes da que existia em Portugal, foi recriada aqui. Herdamos de Portugal as bases para a formação do Estado brasileiro no século XIX a partir de um regime monárquico, o que é, de fato, uma diferença marcante em relação aos demais Estados latino-americanos, que se constituíram como repúblicas.
No entanto, há outras diferenças significativas que também merecem destaque. Nosso processo de independência foi relativamente pacífico, apesar das guerras que houve, pois, quando foi proclamada por Dom Pedro I em 1822, a antiga colônia, outrora Reino Unido, não se desmembrou em múltiplas repúblicas. Isso resultou em uma transição menos disruptiva e na manutenção de muitas estruturas coloniais. Já do ponto de vista social, é importante salientar que o Brasil manteve a escravidão até 1888, indo muito mais tarde do que a maioria dos países latino-americanos. Isso teve um impacto profundo na estrutura social e econômica do país, influenciando a formação do Estado e as relações de poder.
Assim como havia uma monarquia em Portugal, na formação do Estado brasileiro, então independente a partir de 1822, manteve-se na figura do imperador a centralização do poder, um traço típico da dinastia de Bragança e da forma como se exercia a política em Portugal e seus domínios. O Império Brasileiro foi caracterizado por uma forte centralização do poder, com o imperador exercendo grande autoridade. Em contraste, muitos países latino-americanos experimentaram períodos de fragmentação e conflitos internos entre facções regionais.
Além disso, com a presença da corte portuguesa no Brasil por mais de 15 anos, herdamos uma forte influência europeia direta e contínua, que moldou as instituições e a cultura do país de maneira distinta em comparação com outros países da região sul-americana, que tiveram influências mais variadas, incluindo a francesa, britânica e americana. Essas diferenças ajudam a explicar as particularidades do desenvolvimento político, social e econômico do Brasil em comparação com seus vizinhos latino-americanos.
Como citar esta entrevista
PEREIRA, Marcos Aurélio. “Não havia um único dentro de poder”. Entrevista feita por Bruno Leal Pastor de Carvalho e Daniel Gomes de Carvalho. In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/entrevista-policentrismo-imperio-portugues/. Publicado em: 27 de janeiro de 2025.