“A educação antirracista é um conjunto de práticas cotidianas realizadas de maneira incansável” 1
Keilla Villa Flor é mestra em História pela UnB, professora na educação básica e co-idealizadora do Projeto Tem Cor no Ensino. Foto: acervo pessoal da entrevistada.

“A educação antirracista é um conjunto de práticas cotidianas realizadas de maneira incansável”

A professora do ensino básico Keilla Vila Flor, mestre em História pela UnB e voz ativa nas redes sociais, fala sobre os desafios e possibilidades da educação antirracista.
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Keilla Villa Flor, mestra em História pela UnB, professora na educação básica e co-idealizadora do Projeto Tem Cor no Ensino, tem sido voz potente nas redes sociais, onde ela fala sobre magistério e, particularmente, sobre luta antirracista e gênero no ensino de história. Em entrevista ao Café História, Keilla diz que “um dos grandes dilemas das redes é conseguir mostrar partes da nossa vida sem que as pessoas que nos veem tomem essa parte como o todo”.

Seu trabalho, especialmente com estudantes negros, busca reconstruir narrativas históricas, indo além dos contextos de sofrimento e escravidão. Keilla enfatiza a importância de abordar as resistências e conquistas. Para ela, isso seria chave para a luta antirracista no Brasil.

“A construção da autoestima dos estudantes negros acontece no cotidiano quando eles conseguem olhar para o passado e vislumbrar que o futuro é possível”. A professora defende uma educação antirracista prática, que enfrente as violências raciais do cotidiano e evite a banalização do conceito, que muitas vezes é tratado apenas como um slogan vazio.

Em entrevista ao Café História, Keilla falou sobre a luta antirracista, os embates enfrentados ao tratar de temas sensíveis, como religiões de matriz africana, que frequentemente provocam reações preconceituosas de alunos e pais.

Confira como foi o meu papo com ela.

Nunca foi fácil falar sobre a vida de professor. Mas talvez nunca tenha sido tão difícil. Como falar sobre ensino em um país que não valoriza suficientemente o professor?

Com o máximo de sinceridade e delicadeza possível. Um dos grandes dilemas das redes é conseguir mostrar partes da nossa vida sem que as pessoas que nos veem tomem essa parte como o todo.

Então, diante do imediatismo das redes, se o meu nicho é de professores e se eu falo sobre o cotidiano em sala de aula, automaticamente a minha partilha se torna absoluta e a minha experiência, a única possível. Se eu falo sobre os resultados bem sucedidos de uma atividade, alguns colegas de profissão começam a levantar hipóteses absurdas acerca do que não cabe em uma tela. Se eu trago um desabafo, uma gota de desesperança, surgem os que dizem “você já sabia disso quando escolheu a profissão” ou “professor reclama demais”.

Uma mulher negra, Keilla Vila Flor, está posando em um ambiente interno com plantas ao fundo. Ela usa um lenço colorido em tons de vermelho, amarelo, branco e preto, combinando com sua roupa estampada. Seus óculos redondos e brincos dourados complementam o visual. Ela veste um blazer azul-escuro e mantém uma expressão confiante e séria. Sua luta antirracista está nas redes sociais.

No dia seguinte, fui chamada na sala do coordenador, porque uma mãe tinha ligado na escola para dizer que fiz um “gira de macumba” (palavras dela) em sala de aula.

Eu sempre preciso pensar muito antes de postar qualquer coisa. Nenhum dos meus vídeos ou textos é simplesmente um “me deu vontade e eu falei”. Sempre é necessário ponderar em que medida isso expõe a comunidade escolar ao meu redor, como os colegas de profissão que vivem outras realidades vão assimilar o que estou partilhando, como o que eu vou dizer pode ser construtivo para quem me escuta ou lê.

Em seu trabalho na internet, você sempre trabalha muito a questão da autoestima de alunos negros. Como você faz isso?

Trabalhando com narrativas que não tratem só da escravidão, do sofrimento e da dor. Não existe forma de deixar de falar da escravidão, mas essa não é a única experiência na trajetória do povo negro no Brasil. Racializar o debate, atrelando às pessoas negras apenas nesse contexto, é perpetuar a ideia de subalternização. É fundamental falar da resistência, dos levantes, das revoltas, dos quilombos e de todas as movimentações que existiram e existem para a busca por equidade e dignidade. A construção da autoestima dos estudantes negros acontece no cotidiano quando eles conseguem olhar para o passado e vislumbrar que o futuro é possível.

Como você definiria uma educação antirracista?

Acredito que a educação antirracista é um conjunto de práticas cotidianas realizadas de maneira incansável, voltada para a busca por equidade e, sobretudo, para o enfrentamento das violências raciais do cotidiano. Não existe combate ao racismo sem enfrentamento. Algumas pessoas fazem uso da “educação antirracista” apenas como uma expressão, esvaziando por completo o significado de suas práticas. Quando se deparam com práticas que estejam realmente voltadas para a reflexão crítica da realidade da população negra e indígena no Brasil e a busca por ações práticas para se atingir a equidade, tratam como exagero, como extremismo.

Certa vez, durante uma conversa com um amigo professor em escolas públicas do Rio de Janeiro, ele me contou que a história da ditadura não é nem de perto um “passado sensível” para a maioria dos alunos. O passado sensível mais evidente no contexto dele eram as religiões afro-brasileiras. Com muita frequência, o tema leva os pais, evangélicos, a reclamarem com a direção. Isso acontece também no DF?

Sim! Anos atrás, uma das obras do PAS-UnB para a 1ª série EM era o documentário “Rota dos Orixás”. Eu passei o documentário em sala e fui pausando o vídeo para fazer comentários, anotar tópicos no quadro, incitar o debate. Isso durou dois horários de 50 minutos. No dia seguinte, fui chamada na sala do coordenador, porque uma mãe tinha ligado na escola para dizer que fiz um “gira de macumba” (palavras dela) em sala de aula.

Além disso, também é bem corriqueiro que a simples menção ao candomblé ou à umbanda gere reações como alunos fazendo o símbolo da cruz, ou dizendo “misericórdia”, “Deus me defenda”, “Deus é mais”. Infelizmente, falar de religiões de matriz africana ainda é um tema sensível para a sala de aula.

Você defendeu recentemente a sua dissertação na UnB, “História de Mulatinhas – Raça e gênero em dinâmicas de poder no Brasil do final do século XIX”. Qual a pergunta que orienta este trabalho e qual a sua principal conclusão?

O trabalho é sobre a historicidade das hierarquias de raça e gênero acionadas a partir de termos como “mulata” e “mulatinha” em músicas que foram muito populares na literatura e nos jornais. Por meio da pesquisa, foi possível perceber como essas categorias eram utilizadas para o controle das vivências e das narrativas acerca das mulheres negras. Reduzidas a um vocativo, suas experiências, vontades e ações eram tratadas como genéricas, fazendo com que a descrição de uma “mulatinha” se tornasse a expectativa de existência imposta a todas as mulheres negras.

Como citar esta entrevista

FLOR, Keilla Vila. “A educação antirracista é um conjunto de práticas cotidianas realizadas de maneira incansável”. Entrevista realizada por Bruno Leal Pastor de Carvalho. In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/entrevista-keilla-vila-flor-antirracista/. Publicado em: 30 de dezembro de 2024.

Bruno Leal

Fundador e editor do Café História. É professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em História Social. Tem pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisa História Pública, História Digital e Divulgação Científica. Também desenvolve pesquisas sobre crimes nazistas e justiça no pós-guerra.

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