Toda pessoa tem uma história, e essa história, como sabemos, insere-se dentro de outras histórias (do país, da comunidade, uma história que é política, econômica etc.), devendo, desta forma, ser pensada sempre em modo relacional. Mas fica a pergunta: como escrever a história das pessoas comuns? Ou ainda, por que escrever essa história e como ela seria possível?
O historiador André de Lemos Freixo, professor do Departamento de História da Universidade Federal de Outo Preto (UFOP), entrevistou a pesquisadora Katy Ashton, Diretora do Museu de História das Pessoas, o PHM, localizado na cidade de Manchester, no Reino Unido. A conversa aconteceu em fevereiro de 2020, pouco antes da pandemia do novo coronavírus, quando Freixo estava na cidade inglesa realizando sua pesquisa de pós-doutorado.
Katy Ashton trabalha no setor de museus do Reino Unido há 20 anos, tendo passado por museus nacionais, locais e independentes. Seu trabalho tem ênfase em História Social, com destaque para coleções militares, coleções de trabalhadores e trabalhadoras industriais e do transporte ferroviário. Ela é formada em História pela Universidade de York, possui mestrado em “Estudos de Museus” (Museum Studies) pela Universidade de Leicester e é membro da Associação de Museus. Integra o Grupo Diretor da Rede de Mulheres Líderes em Museus, sendo também Secretária e membro do Conselho da Associação Internacional de Museus do Trabalho (Worklab) – organização das instituições europeias de preservação da memória do trabalho e dos(as) trabalhadores(as) –, além de ser curadora do Centro de Artes e Design de Manchester.
Antes de ingressar no Museu de História das Pessoas, em 2010, Katy trabalhou com Ensino, Justiça Social e Cidadania em museus e dirigiu o Centro Nacional de Cidadania e Direito (NCCL) de Nottingham, Reino Unido. Ela tem grande experiência com ensino e engajamento de audiências e considera os museus espaços muito relevantes para debater e lidar com problemas e acontecimentos contemporâneos, uma vez que se relacionam com a vida das pessoas – empoderando-as e permitindo que possam atuar ativamente em sua própria história, patrimônio e comunidades.
O Museu de História das Pessoas é também conhecido como o museu nacional da democracia, pois conta, antes de tudo, a história do desenvolvimento democrático na Grã-Bretanha: passado, presente e futuro. Recentemente, a instituição ganhou o prêmio Crianças em Museus – Museu Apropriado para Famílias e oferece oportunidades para que todas as pessoas aprendam, se inspirem e se envolvam em ideias pelas quais vale a pena lutar: ideias como igualdade, justiça social, cooperação e um mundo justo para todas e todos.
O PHM oferece programações com temas anuais. Em 2018, por exemplo, ele analisou a representação política e comemorou os 100 anos da conquista do direito ao voto por parte das primeiras mulheres e de todos os homens na Grã-Bretanha; em 2019, o foco foi o bicentenário do Massacre de Peterloo (1819), em Manchester. O tema para 2020 é o da imigração e foi considerado o mais ambicioso desde a fundação do museu, ocorrendo durante o ano em que se celebrou o 10º aniversário de sua residência atual, no Centro de Manchester.[1]
O entrevistador agradece ao historiador Benito Schmidt (UFRGS) pelo valioso auxílio na elaboração do roteiro desta entrevista.
Percebo que o PHM têm uma abordagem muito séria de engajamento com o público. Conte-nos um pouco sobre esse direcionamento, os objetivos e planos gerais do museu.
O Museu de História das Pessoas (PHM) explora a evolução da democracia britânica, apresentando as pessoas e as histórias que estão por trás das ideias pelas quais vale a pena lutar, e por isso ele é considerado como o museu nacional da democracia. É o único museu do Reino Unido inteiramente dedicado a compartilhar as histórias dos revolucionários, reformadores, trabalhadores, eleitores e cidadãos que defenderam, ontem e hoje, a mudança, e que reuniram-se por direitos e igualdade.
A visão daqueles que viram a necessidade de contar essas histórias começou na década de 1960, quando o mundo dos museus ainda não era receptivo a essa ideia; mas nossos fundadores ultrapassaram os limites da sua época, e nós, hoje, continuamos a levar esse legado adiante. Como Museu de História das Pessoas, a instituição se tornou um lugar para as pessoas não apenas explorarem essas histórias, mas também para que elas contêm como suas próprias vidas foram moldadas por elas. Fazemos isso trabalhando com e ao lado das comunidades, abrindo nossas portas e coleções para que todos e todas possam realizar suas próprias pesquisas, desenvolver projetos, produzir conteúdos e selecionar artistas. Também procuramos comunidades para reunir e coletar materiais contemporâneos.
PHM é um museu “das pessoas” e um museu “de história” ao mesmo tempo. Eu acho que é uma maneira perspicaz de moldar e compreender o mosaico de identidades acolhidas nas exposições do museu sem enquadrá-las em qualquer rótulo genérico. Como você acha que essa direção em relação às pessoas ajuda a criar um senso maior de solidariedade, ou ainda, uma responsabilidade compartilhada com as comunidades de (diferentes) grupos e interesses que convivem juntas no Reino Unido?
As pessoas fazem história, e são sempre as histórias das pessoas, e o que elas fizeram por outras pessoas, o que sempre foi o nosso foco. Em termos de abordagem, assumimos a liderança do tema ou da questão em que estamos focando e convidamos qualquer pessoa a se juntar a nós nessa exploração. Essa é uma maneira poderosa de conectar as pessoas com a história, abrindo conversas e discussões, permitindo o compartilhamento de diferentes pontos de vista.
Você poderia falar um pouco mais sobre os processos de curadoria das exibições?
Cada tema anual do museu possui um agente de programação totalmente dedicado a ele; essa pessoa é apoiada por um gerente de programação e um chefe de coleções e engajamento. O agente de programação passará 12 meses realizando uma extensa pesquisa e se conectando com as comunidades, indivíduos e organizações, na medida em que descobre como podemos dar vida e explorar melhor o tema daquele ano; sempre tendo um ponto de vista passado, presente e futuro. É nesse período que começamos entender de que forma podemos trabalhar mais de perto com as comunidades e a melhor maneira de isso acontecer.
Nos próximos 12 meses,[2] quando o tema estiver disponível aos nossos visitantes, o agente de programação supervisionará os eventos, as exposições, as sessões de aprendizado, as aquisições, as intervenções artísticas, os eventos da comunidade e qualquer outra forma que o programa adote.
Pela natureza única e individual dos temas, cada ano tomamos uma direção muito diferente, o que torna os resultados fascinantes para aqueles com quem trabalhamos e para nossos visitantes. Em 2020, por exemplo, temos uma equipe de programação comunitária de seis pessoas que estão trabalhando conosco no tema deste ano: imigração. Cada uma delas passou por um processo de imigração e está trazendo sua visão para o processo criativo da exposição. Identificar as histórias de imigração nas coleções do museu, procurar novas maneiras de destacar a história da imigração nas principais galerias do museu e ajudar a selecionar exposições e eventos da comunidade são partes de seu papel.
Conte-nos sobre as coleções que compõem seu acervo?
Nossas coleções incluem faixas, crachás, pôsteres, cartoons e cartazes. Temos a maior coleção de banners sindicais e políticos do mundo, que inclui a bandeira sindical mais antiga de nossa coleção, a bandeira da Sociedade dos Trabalhadores em Placas de Lata, que é de 1821. Além dos tesouros que contam histórias do passado, a coleta de itens contemporâneos também é uma parte central do nosso trabalho. A crise climática, a Marcha das Mulheres de Manchester e o Brexit destacam-se nas nossas aquisições mais recentes.
E mesmo agora, os itens históricos que entram na coleção geralmente vêm diretamente das famílias, que os passaram de geração em geração. Itens que no passado eram escondidos, às vezes, por medo das repercussões. Em 2019, tivemos a maravilhosa doação de uma “bengala de Peterloo”. Este objeto foi usado por um dos 60.000 manifestantes pacíficos do Massacre de Peterloo, em 16 de agosto de 1819, para exigir direitos e representação política. As autoridades alegaram que alguns dos manifestantes estavam portando armas. De fato, vestidos com seus melhores trajes “de domingo”, muitos estavam carregando apenas as bengalas como esta que adquirimos, como era a moda na época. Este foi um dia que começou com pessoas fazendo piqueniques, dançando e cantando e, quando o governo enviou as tropas, terminaria com a morte de 18 pessoas e o cerca de 700 feridas. A bengala de Peterloo foi doada por um descendente do proprietário. Como parte das atividades que marcaram o 200º aniversário de Peterloo e se tornou uma peça icônica do nosso museu.
Um aspecto que chama minha atenção é que o PHM une conhecimento histórico e emoções. Eu acho que isso é muito importante por várias razões, especificamente para lidar com questões delicadas e se comunicar com públicos maiores. Conte-nos um pouco mais sobre essa relação entre emoção e “gatilhos de lembranças” em um museu de história (e vice-versa).
Alguns dos temas que exploramos podem ser desafiadores ou sensíveis, mas nossa abordagem sempre deve ser inclusiva, positiva e aberta. Às vezes, as histórias contadas aqui materializam histórias muito concretas, de muitas pessoas, permitindo ver as lutas, a reação contra o isolamento e todo tipo de dificuldades suportadas para alcançar mudanças e progressos sociais e políticos. É também por isso que é tão importante que não apenas nós contemos essas histórias, mas que o museu convide aquelas pessoas que aparecem nela para ajudar a navegar pelo processo através de suas ideias e suas vozes. Ao fazê-lo, há um senso muito real dos aprendizados que acompanham a evolução do tempo, além de uma apreciação e empatia em relação àqueles em que nos apoiamos.
Ao longo de 2017, nossa programação marcou o 50º aniversário da descriminalização parcial de atos homossexuais na Inglaterra e no País de Gales (Lei de Ofensas Sexuais de 1967). No centro disso estava a exposição Nunca no subterrâneo: A Luta pelos Direitos LGBT+ (“Never Going Underground: The Fight for LGBT+ Rights”), que foi criada com a colaboração de uma equipe de curadores comunitários de comunidades LGBT + em Manchester e arredores. Para tantas pessoas, seja como um dos criadores da exposição ou como visitante, essa foi uma experiência muito emocional, poderosa e reflexiva, estimulada pelas memórias, fotografias e artefatos reunidos para ajudar a contar essa história.
A PHM convida as pessoas a não verem o passado como algo morto e distante, mas a reconhecê-lo como parte da vida de todas e todos, aqui e agora. Como o PHM ajuda a (re)definir as ideias de resistência e cidadania?
Usamos o passado para permitir que as pessoas entendam o mundo como ele é hoje, para que compreendam as contínuas lutas por direitos e representatividade. Em nossas galerias principais, começamos com a história do Massacre de Peterloo (16 de agosto de 1819) e como o que aconteceu aqui se conecta aos eventos que se seguiram e ao mundo de hoje; os cartistas, o crescimento dos sindicatos e os votos para as mulheres. Em 2019, comemoramos 200º aniversário do Massacre de Peterloo, momento decisivo na história da democracia britânica, o que nos proporcionou a oportunidade de empregar esse evento histórico como uma lente através da qual podemos ver a mudança de rosto do protesto: passado, presente e futuro. Todo o nosso tema para o ano foi focado em protestos; que convidamos as pessoas a explorar conosco. Um dos elementos centrais era um laboratório de protesto; uma galeria experimental para indivíduos, comunidades e organizações usarem para compartilhar e desenvolver suas visões e ideias para ação coletiva. O PHM conseguiu coletar e exibir objetos e histórias de protestos recentes e atuais e mostrar o ativismo cotidiano de indivíduos e comunidades. O ano de 2019, em si, foi um ano significativo de protestos, incluindo as greves climáticas promovidas pela juventude, marchas das mulheres e Brexit, que capturamos como parte do ano e por meio da coleção contemporânea que ocorreu.
Como museu, também participamos da greve climática global (Global Climate Strike), realizando um #ArtStrike no qual nossa exposição Arrebentar? (“Disrupt?”) esteve em greve. Ao longo do ano, conectamos a ideia de passado, presente e futuro de protesto; para nossos visitantes mais jovens, isso incluiu a criação de um conjunto de recursos de aprendizado gratuitos para crianças dos ensinos fundamental e médio. Eles foram projetados para ajudar a compreender o valor dos direitos, por que o direito ao voto é tão importante, e incentivá-los a serem cidadãos(ãs) ativos(as) hoje, tendo conhecimento sobre os eventos e a história que se desenrolaram diante deles(as). A exposição Peterloo e Protesto (“Peterloo and Protest”) também ficou paralisada por um dia em apoio às pessoas que exigem ações contra o aquecimento global e as mudanças climáticas.
O que você diria que são os desafios e responsabilidades éticos de um museu como o PHM enfrentam em um mundo que testemunha o rápido aumento da intolerância e fanatismo, notícias falsas e todo tipo de abordagem negacionista e / ou revisionista da história e da identidade como ferramentas para atos políticos nefastos?
Estamos aqui como um espaço seguro para as pessoas compartilharem suas ideias, se reunirem para discutir, debater, ouvir e aprender umas com as outras.
Temos muita consciência de nossas responsabilidades éticas como museu, principalmente ao coletar, documentar e compartilhar exemplos de protestos e campanhas recentes e atuais. Nossa abordagem é sermos abertos, inclusivos e respeitosos com todos os pontos de vista, e coletar material que represente pontos de vista diferentes e, às vezes, opostos sobre um tópico ou questão. É importante que nossa coleção, como museu nacional da democracia, represente a complexidade da vida política contemporânea no Reino Unido, mas isso cria desafios quando as pessoas acham que o ato de coletar artefatos representa a nossa legitimação ou aprovação de uma campanha ou mensagem.
Nossa prática e diretrizes de curadoria das exibições nos ajudam a impedir que mensagens de ódio e conteúdos discriminatórios apareçam nas exposições sem o devido contexto, ou sem que se forneça um ponto de vista alternativo. Isso é algo que o museu continua analisando e considerando continuamente como parte de nossa prática no museu.
Notas
[1] Previamente, o PHM ficava em Londres. Mudou-se para Manchester em fevereiro de 2009.
[2] No momento da entrevista, os planos do PHM para 2020 estavam em andamento, como de costume. Hoje, o Museu de História das Pessoas está fechado devido ao surto de COVID-19.
Como citar esta entrevista
ASHTON, Katy. Um museu para celebrar a história das pessoas. André de Lemos Freixo entrevista Katy Ashton. In: Café História – divulgação científica de história desde 2008. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/entrevista-katy-ashton-museu-de-historia-das-pessoas. Publicado em: 10 ago. 2020. ISSN: 2674-5917.
Não conhecia este Museu. Fiquei muito satisfeita em saber deste trabalho. Obrigada e parabéns
Manchester tem uma coleção de museus inteligentes, dos mais tradicionais aos mais ousados. O People’s História, que pude visitar em 2013, soube transformar a narrativa da “cidade berço da revolução industrial” – que havia sido pensada para esse espaço nos anos 90 – em uma narrativa de sujeitos na e da história. Super legal essa iniciativa do Café História! Que tal uma continuação trazendo o Tenement Museu (NY)?
Super!