Em outubro de 2009, o historiador Luis Edmundo de Souza Moraes, professor do Departamento de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), se tornou o primeiro entrevistado do Café História. Estávamos inaugurando a nossa seção de entrevistas e a escolha não poderia ter sido melhor. A conversa foi e continua sendo uma das páginas mais acessadas do site. Naquela ocasião, falamos bastante sobre o Partido Nazista no Brasil (tema de sua dissertação e tese) e de um fenômeno que então ocupava um lugar marginal na historiografia brasileira: o negacionismo do Holocausto.
Hoje, 12 anos depois, convidamos Moraes para uma nova entrevista. Desta vez, a questão do negacionismo ocupa outro lugar, não só na historiografia, mas no espaço público. O termo tem sido usado à exaustão para se referir a diversos contextos: escravidão, ditaduras militares e imunização. É usado pela imprensa, por intelectuais, políticos e partidos políticos, não raro como sinônimo de atraso, reacionarismo e anticientificismo. Mas o que teria ocasionado essa mudança no uso do termo? O que ela significa? Seus usos no espaço público impactam em seus usos no meio acadêmico? Toda negação do passado pode ser chamada de negacionismo? Eis algumas questões que orientaram essa nossa nova entrevista com Luis Edmundo de Souza Moraes.
Quando fizemos a nossa primeira entrevista, no longínquo ano de 2009, o termo “negacionismo” era associado quase imediatamente aos indivíduos que negavam o Holocausto, quando muito, era usado para se referir aos que negavam o aquecimento climático. Hoje, a coisa mudou. E bastante. “Negacionismo” (e negacionista) se tornou termo corriqueiro do nosso vocabulário político. Tem sido empregado para classificar movimentos antivacina, defensores da terra plana, céticos da escravidão ou grupos de extrema-direita que não reconhecem a existência da ditadura militar. Como você explica essa mudança?
De fato, esse movimento que você aponta é muito curioso. Essa história do termo “negacionismo” compreende dois caminhos que me parecem distintos. Por um lado, o de sua disseminação, chamemos, erudita, como conceito, ou seja, como instrumento de trabalho para algumas áreas de conhecimento, e, por outro, o de sua popularização. Penso que estamos diante de dois movimentos distintos e com consequências distintas.
A palavra nasce como um conceito do campo das ciências sociais. Ela foi inventada para designar, tardiamente, um tipo específico de prática de negação do holocausto. Como você apontou, até há uns anos, o termo “negacionismo” era em grande medida desconhecido do grande público. E, entre os que o conheciam, o termo remetia, quase sempre, à negação do holocausto e, em menor grau, também a negação de outros crimes contra a humanidade.
A emergência do conceito dá a ver um tipo de operação intelectual (que se tornou invisível com o tempo) que é típica do nosso meio: o estabelecimento de um limite lógico ou formal que, simultaneamente, circunscreve e constitui um objeto de investigação.
A palavra foi inventada pelo historiador francês Henry Rousso e foi publicada em seu livro “A Síndrome de Vichy”, de 1987, como uma reação à forma como alguns negadores do holocausto se apresentavam em público e como eles eram designados: “historiadores revisionistas” ou simplesmente “revisionistas”. Para ele, o termo nem era sinônimo de negação (e nem mesmo de negação sistemática) e também não era sinônimo de negação pura e simples das políticas nazistas de extermínio. E por meio desse termo Rousso diferenciou, entre todos aqueles que negavam o holocausto, alguns deles que faziam isso de um modo específico, fraudando o passado e suas credenciais para falar sobre o passado em função de um projeto político. A estes ele chamou de “negacionistas”.
Da necessidade de inventar uma palavra pra falar desse fenômeno também se extrai a percepção de Rousso que a forma como chamamos esses negadores do holocausto não é um mero detalhe. Na medida em que os negacionistas buscam reconhecimento por um ato de nominação, se autointitulado “revisionistas” e “historiadores”, designá-los pelo nome que eles escolheram é, ainda que de uma maneira indireta e não-intencional, abrir espaço para eles, conceder-lhes algum grau de legitimidade. Do mesmo modo, chamá-los de negacionistas é um meio de expor sua falácia e, simultaneamente, retirar deles uma das coisas pelas quais eles mais se empenham: em ter legitimidade pública para dizer que o passado não se passou. Assim, o nascimento da palavra é indissociável de seu caráter pejorativo e de seu uso como conceito.
Depois disso, há duas derivações: uma diz respeito a aplicação do termo para fenômenos de mesma natureza, ainda que em outras áreas do conhecimento: aí temos a palavra sendo aplicada a negadores da relação HIV-AIDS, ou para o chamado “negacionismo climático”, ou da ditadura militar, por exemplo. E a percepção é a de que aquilo que os negacionistas fazem ao negar o holocausto é o mesmo que os negadores do HIV como causa da AIDS, os negadores de que o “regime militar” foi uma ditadura e os negadores do aquecimento global fazem.
Este tipo de ampliação do uso trouxe para esse campo de reflexões sobre o fenômeno do negacionismo estudiosos de áreas de conhecimento e especialidades distintas daqueles que antes estudavam o fenômeno, com um ganho de qualidade enorme para esse campo de reflexões, não somente pela emergência de novas questões, mas também pela possibilidade de, em abordagem comparativa, aprofundar a reflexão sobre a especificidade do fenômeno.
Um exemplo importante disso é o emprego do termo para manifestações que, se não negam eventos específicos, produzem um encadeamento de eventos que é de tal modo falacioso que resulta em um passado falsificado. Eu, há tempos, nutria dúvidas sobre esse uso do conceito. Mas é isso que argumenta de forma consistente Arthur Ávila em um artigo recente na RBH quando discute a forma como o “Brasil Paralelo” trata do passado. Ainda que isso nos proponha pensar sobre o difícil tema sobre a forma como construímos o encadeamento de eventos passados (determinados tipos de encadeamento são “possíveis”, são “obrigatórios” ou “necessários”?), o argumento de Arthur Ávila é muito consistente sobre o fato de que, mesmo quem não nega eventos singulares do passado (como é o caso dos negadores do holocausto que dizem, dentre outras coisas, que não houve câmaras de gás em Auschwitz) pode produzir uma narrativa que resulta na negação do passado de modo tipicamente negacionista.
(…) chamá-los de negacionistas é um meio de expor sua falácia e, simultaneamente, retirar deles uma das coisas pelas quais eles mais se empenham: em ter legitimidade pública para dizer que o passado não se passou.
Luis Edmundo de Souza Moraes
Mas, paralelamente a este tipo de derivação, chamemos, erudita, há também aquela representada pela popularização do termo. Muita gente, passou a chamar de “negacionismo” o ato genérico de negar coisas diversas que são tomadas por inegáveis.
É possível que isto esteja ligado ao fato de que a negação de coisas tomadas como conhecimento estabelecido (seja sobre o passado ou sobre a natureza) ocupou de tal forma o espaço público que pode ter parecido ser natural dar alguma sistematicidade a essas diversas práticas de negação por meio de um “ismo”.
Esse alargamento do uso do termo “negacionismo” tem sido acompanhado por uma percepção tácita de que o que permite classificar uma negação como negacionista é o objeto mesmo da negação. Aquilo que é negado parece ter a propriedade de classificar um ato de negação, pejorativamente, como negacionista.
Assim, quando se nega a gravidade da COVID ou a validade da vacinação ou quando se nega a mudança climática, então se está diante de “negacionismo”, mas, quando se nega que não existe tratamento precoce para a COVID, o uso do termo não parece fazer sentido.
Mas isso acabou por fazer com que fenômenos sociais de natureza diversa fossem reunidos em um mesmo conjunto (designado pelo mesmo termo) só porque tem em comum o ato de negar o que é tido por inegável.
Assim, usa-se a palavra para tratar de negações motivadas por coisas tão distintas quanto pela ignorância, pela teimosia, pela cegueira, por um mecanismo psíquico de defesa ou pela má-fé. Em alguns contextos específicos, o “ismo” adicionado à negação parece remeter a algum traço ou atitude de recusa em aceitar a realidade, de qualidade semelhante a outros “ismos” como “escapismo” ou “pedantismo” ou “dinamismo”. E imagino que, caso alguém resolva investigar os usos sociais da palavra, possa encontrar ainda outros sentidos associados ao termo.
No terreno da política ou em jornais ou nas redes sociais isso funciona bem e não gera problemas porque o propósito de se empregar a palavra é quase exclusivamente o de estigmatizar o negador. Não é de se surpreender que em círculos bolsonaristas quem é chamado de “negacionista” são os que defendem a vacinação e são contra o falacioso “tratamento precoce”. Nesses usos, a palavra aparece exclusivamente como arma de luta e tudo sugere que ela tem funcionado bem pra isso. Mas quando se trata do emprego do termo como um conceito para uma investigação sobre, digamos, a negação da tortura durante a ditadura, isso tende a gerar mais dificuldades do que resolvê-las.
Esse uso “popular” do termo “negacionismo” poderia trazer problemas para o uso “acadêmico” do mesmo?
Penso que o fato de que o uso da palavra “negacionismo” ter se tornado tão amplo quanto o que vemos em seus diversos usos sociais não é um problema em si mesmo. Por um lado, isso é algo com o que nós convivemos e temos que conviver.
Eu imagino que não mais que umas poucas palavras que usamos como ferramenta de trabalho tendem a ter uma circulação mais restrita ou mesmo exclusiva em nosso campo profissional. Mas a maior parte das palavras que acionamos como conceitos são usadas para além do nosso universo profissional e circulam socialmente para além de qualquer relação com o campo das ciências sociais.
Mesmo que os sentidos das palavras não sejam arbitrários e sejam enraizados no tempo e no espaço, os usos sociais das palavras não estão sujeitos a qualquer controle direto por parte das ciências sociais. Não é uma coisa que nos caiba, que deva nos caber e que possamos fazer.
Mas se com sua crescente popularização, o termo “negacionismo” passou a designar de forma genérica o ato de negar alguma coisa que nos parece inegável, isso não significa que, como conceito, ele deva se curvar a essa ampliação de sentidos.
Na medida em que operamos com as palavras como instrumento de trabalho em um contexto específico, é importante ter a noção precisa de que no terreno das ciências sociais fazemos coisas com a palavra que não são, necessariamente, aquelas que outras pessoas fazem quando as empregam.
Assim, quando um bolsonarista chama de “negacionista” alguém que nega a eficácia do tal do “tratamento precoce” e quando uma tese de doutorado em história chama Robert Faurisson de negacionista, eles estão não só dizendo coisas diferentes, mas estão, principalmente, fazendo coisas diferentes, ainda que empreguem uma mesma palavra.
Nesse sentido, é decisivo para nós ter o controle dos sentidos das palavras que são usadas como instrumentos de trabalho em nosso ambiente profissional. O problema é quando isso não se dá. O problema é quando os diversos usos sociais do termo são, de forma irrefletida, transpostos para o nosso campo disciplinar. Aí se produz um curto circuito que gera enormes dificuldades.
Além disso, por maior que sejam as tentativas de controle dos sentidos do termo em nosso campo, é possível que os usos populares se imponham e a palavra deixe, efetivamente, de ser um conceito operativo. Acho que não chegamos a isso, mas caso cheguemos, talvez precisemos, um dia, buscar um outro termo que permita designar uma forma específica de negação que é a negação negacionista.
O uso polivalente do termo é um fenômeno brasileiro ou ele também ocorre em outros países?
Não sei te dizer, mas, de todo modo, há indícios de que o descolamento de sentido do termo daquele imaginado em sua origem não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. Ainda assim, eu não tenho conhecimento de que o termo “negacionismo” tenha se tornado tão popular em outros países a ponto de circular com desenvoltura nas redes sociais, na imprensa e nos diálogos do cotidiano, como acontece entre nós.
Como disse há pouco, como conceito, o termo foi usado em diversas línguas para tratar de fenômenos políticos correlatos ao negacionismo do holocausto.
Penso que o que vemos no Brasil, com ou sem um paralelo em outros países, é mais um aspecto da história de um conceito que nunca foi empregado de modo igual em todas as línguas ou países ou mesmo ao longo do tempo. A começar pelo fato de que o tipo de negação do holocausto que o termo designa nunca foi chamada por todos de “negacionismo”.
Em francês, o termo veio à luz só em 1987. Até então, os negacionistas eram chamados simplesmente de “revisionistas”, às vezes entre aspas e às vezes sem aspas. Alguns escritos importantes sobre o negacionismo não usam o termo, especialmente, o que é óbvio, os que foram publicados antes do termo existir, dos quais o de Pierre Vidal Naquet é de longe o mais conhecido em todo o mundo.
Com o tempo, o termo foi sendo traduzido para outras línguas e seu uso se alastrou entre historiadores, mas, mesmo assim, não em todas as línguas: se em português e espanhol cresceu, em inglês e alemão, o termo até há pouco era quase absolutamente ausente. Nestes dois casos, o que tem sido amplamente empregado é o descritor mais específico “negação (ou negador) do holocausto”: Holocaust Denial (Denier), Holocaust Leugnung (Leugner). Em inglês, só recentemente o conceito de “denialism” passou a circular publicamente de forma mais ampla e com um sentido menos preciso. Mais raro ainda é o uso de “negationism” ainda que ele seja detectado pontualmente na literatura especializada. Por outro lado, em francês, aparece pontualmente o termo Dénialisme, um anglicismo visível, pra falar de negacionismo quando ele não tem como objeto o holocausto. Em alemão, o termo é ainda, quando muito, absolutamente marginal.
Mas se com sua crescente popularização, o termo “negacionismo” passou a designar de forma genérica o ato de negar alguma coisa que nos parece inegável, isso não significa que, como conceito, ele deva se curvar a essa ampliação de sentidos
Luis Edmundo de Souza Moraes
Isso pode sugerir que, nessas tradições, não se compreende que o que Rousso chamou de “negacionismo” era diferente de outros tipos de negação do holocausto (ou mesmo, reconhecendo sua especificidade, não se considerou relevante dar a ela expressão conceitual por meio de um “ismo”). Isso não é só um detalhe linguístico, na medida em que a expressão “negadores do holocausto” (“Denier” ou “Leugner”) pode abarcar um conjunto maior de fenômenos do que aqueles que são considerados negadores “negacionistas” do holocausto.
Um exemplo do impacto dessas diferenças de percepção associadas a tradições nacionais pode-se extrair da tradução francesa da Encyclopedia of Genocide organizada por Israel Charny, psicólogo dedicado ao estudo dos genocídios. Se na versão em inglês se usa indistintamente denial/denier para os diferentes tipos negação, na edição em francês, alguns deles são traduzidos diretamente por “negationnisme” enquanto outros, que não são usualmente classificados assim, são traduzidos seguindo o original: “Négation de…”
Mas, isso acaba por ter consequências também na circunscrição do objeto e mesmo na periodização do fenômeno, na medida em que a negação do holocausto existiu mesmo antes daquilo que Rousso chamou de “negacionismo”.
Alguns indivíduos e grupos que negam o Golpe de 1964 e a ditadura militar não se reconhecem como negacionistas, e sim como revisionistas. Segundo explicam, suas narrativas abordam o que seria “o outro lado da moeda”, ou ainda, “uma outra interpretação da história”. Negar esse direito, eles argumentam, seria limitar a “liberdade de expressão” e produzir uma “história única”. Esse jogo retórico é bem parecido com aquele dos que negam o Holocausto. Em que medida essa semelhança os aproxima e como podemos desmontar a falsidade desta retórica?
Aqui, trata-se de um caso nítido de busca de legitimidade da extrema-direita, por princípio antidemocrática, lançando mão de um valor caro a democratas de diferentes matizes e cores. Isto é típico, como você disse, dos negacionistas do holocausto, que recorrem ao lugar de “vítimas” para deslegitimarem aqueles que os confrontam no espaço público, desde intelectuais até sobreviventes. Frequentemente, quando são acusados de fraude ou quando são interpelados judicialmente por difamarem sobreviventes de campos de concentração e de extermínio (chamando-os de mentirosos que buscavam somente ganhos financeiros com seus testemunhos), os negacionistas tiram essa carta da manga. Isto está longe de ser um valor. E você coloca o problema em seu termo justo: se trata de um argumento vazio, empregado exclusivamente na disputa pública por legitimidade para continuarem a operar com a fraude sem serem importunados.
Há historiadores que dizem ser a “pós-modernidade” (e a sua alegada “relativização da verdade histórica”) a grande culpada pela “onda negacionista”. Essa acusação, por sua vez, desperta a indignação de outros historiadores, que entendem que essa associação é uma leitura rasa e descabida das contribuições dadas por historiadores geralmente associados a pós-modernidade, caso, por exemplo, do historiador norte-americano Hayden White. Como você vê esse debate?
Essa é uma pergunta fundamental pra pensar nas consequências da definição do negacionismo como fraude. Quando me deparo com questões dessa natureza, que acabam por trazer para a disciplina a responsabilidade pelo fato de o negacionismo existir, o resultado é, ainda que por vias tortas e por muitos desvios, a legitimação do próprio negacionismo e, do meu ponto de vista, e a desconsideração daquilo que é, simultaneamente, a razão de ser e o instrumento fundamental do negacionismo como prática: a fraude.
Ao que tudo indica, isso é algo que acontece, nessas dimensões e proporções, somente com historiadores. Até onde consegui observar, negacionistas climáticos ou o negacionismo da relação HIV-AIDS ou o criacionismo nunca foram pensados como derivados de deficiências da prática da pesquisa nas ciências biológicas ou nas ciências naturais.
Mas, entre historiadores esse é um tema recorrente. Em momentos em que eu falei publicamente sobre o negacionismo essa foi uma pergunta recorrente em duas direções: já ouvi diversas vezes a ideia que foi a chamada a virada linguística que está na origem do negacionismo, como você disse. Alguns acusam os pós-modernos de serem responsáveis de criar um vale-tudo relativista que acaba por abrir as portas para o negacionismo. Mas, por outro lado, há também os que acusam o que chamam de “realismo” de estar por trás do padrão a partir do qual a escrita negacionista se estabelece. Afinal, os negacionistas falam o tempo todo em “verdade”, em “prova” etc…
Eu vejo tudo isso e acho curioso porque isso sugere que uma forma de entender a natureza tanto do trabalho do historiador quanto da historiografia está na raiz de uma escrita que nega o passado. Isso deriva de uma percepção sobre o negacionismo que sugere que nossa prática profissional é onde devemos buscar a razão de ser da coisa toda. Esse tipo de “busca por responsabilidades” no interior da disciplina (isto é: fora do campo e da prática do negacionismo) para explicar a emergência mesma do negacionismo, se fundamenta em uma atitude que acaba por ver o negacionismo como resultado de deficiências, de fragilidades ou de uma lógica própria da história-disciplina.
Isso sugere que nossa tarefa, simultaneamente teórica e prática, é a de dar conta do que foi, por assim dizer, feito de errado para que tivéssemos chegado a esse estado de coisas. Mas, observando tanto a emergência do fenômeno quanto a sua prática e sua escrita, é possível dizer que os negacionistas do holocausto, e por extensão, os negacionistas do passado, não se importam com a forma como nós consideramos aquilo que fazemos.
Dito de outra forma, para a existência do negacionismo, não importa o que ou como nós escrevemos a história e, menos ainda, como nós consideramos aquilo que nós fazemos. Os negacionistas do holocausto existiriam sob qualquer regime de produção de conhecimento sobre o passado que se estabelecesse na disciplina ou mesmo que regesse a disciplina. Os negacionistas vieram ao mundo e existem não porque a história acerta ou erra; não porque a história relativiza ou absolutiza ou porque se pensa de uma forma ou de outra. Ainda que não houvesse uma historiografia do holocausto, o negacionismo existiria.
Saindo do caso específico da negação do holocausto, é possível dizer, observando comparativamente outras manifestações de negacionismo, que ele é uma reação a conhecimentos publicamente divulgados. Práticas negacionistas emergem em momentos de divulgação pública de um conhecimento que gera prejuízos seja para projetos políticos (negação do holocausto) ou para o sucesso de empreendimentos econômicos (negacionismo dos males do tabagismo, negacionismo climático etc…), dentre outros.
De uma forma geral, a expectativa é a de produzir descrédito sobre o conhecimento divulgado. Em alguns casos, cientistas estão na origem dessa divulgação (aquecimento Global, HIV-AIDS, os males do tabagismo etc.), em outros casos, não. Em relação ao holocausto, por exemplo, o negacionismo emerge em um contexto em que os responsáveis pela divulgação pública da barbárie nazista foram os relatos de sobreviventes e os julgamentos do pós-guerra (especialmente os julgamentos de Nuremberg, de Jerusalém e de Frankfurt). Sobreviventes, promotores e juízes foram os alvos mais longevos dos negacionistas. Historiadores entram em cena tardiamente e só tardiamente aparecem como foco da escrita negacionista.
Em todos esses casos, não há nada que as disciplinas científicas façam ou deixem de fazer que leve os negacionistas ao silêncio ou que os faça reconhecer a falsidade de suas afirmações ou que possa impedir que o negacionismo exista. Negacionistas não acolhem e jamais poderão acolher argumentos, provas ou refutações de qualquer natureza. A negação existe exclusivamente porque ela é politicamente necessária e, como tal, a fraude é uma condição necessária para o negacionismo.
Sobreviventes, promotores e juízes foram os alvos mais longevos dos negacionistas. Historiadores entram em cena tardiamente e só tardiamente aparecem como foco da escrita negacionista
Luis Edmundo de Souza Moraes
E isso nos coloca diante de um problema de outra natureza para a disciplina. Para existir, os negacionistas não dependem da existência da escrita historiográfica ou dos regimes de produção de conhecimento sobre o passado presentes ou dominantes na disciplina. Mas, para que tenham sucesso, eles dependem da forma como o passado é socialmente operacionalizado.
Nesse sentido, a existência do negacionismo não é todo o problema. E talvez não seja o problema mais grave e delicado com o qual historiadores tem que lidar. O mais grave, penso, é que os negacionistas, por um lado, precisam ser reconhecidos como pessoas habilitadas e autorizadas a falar sobre o que falam e, por outro, eles precisam convencer pessoas de que aquilo que falam faz sentido e é “a verdade”.
Mesmo sabendo que é falso, os negacionistas precisam convencer pessoas que em Auschwitz não existiram câmaras de gás para o assassinato de judeus e que eles são as pessoas habilitadas para falar disso.
E isso faz com que profissionais de diversos campos de conhecimento sejam confrontados com a necessidade de refletir sobre o enfrentamento ao negacionismo e isso se faz olhando pra fora dos campos disciplinares (medicina, biologia, história, física, geografia etc.) e não primordialmente pra dentro deles.
Como citar este artigo
MORAES, Luis Edmundo de Souza. “A negação existe exclusivamente porque ela é politicamente necessária e, como tal, a fraude é uma condição necessária para o negacionismo”. (Entrevista). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/entrevista-com-luis-edmundo-de-souza-moraes-sobre-negacionismo/. Publicado em: 18 out. 2021. ISSN: 2674-5917.