Em entrevista exclusiva ao Café História, a historiadora Cláudia Viscardi apresenta o seu mais novo livro sobre a Primeira República.
Entrevista por Bruno Leal
“Uma alternativa às abordagens esquemáticas que predominam na historiografia sobre a primeira fase da República Brasileira”. Este é o mote de “Unidos Perderemos: a construção do federalismo republicano no Brasil”, novíssimo livro da historiadora Cláudia Viscardi, professora do Departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Publicado pela Editora CRV, o livro de Viscardi trata da montagem do regime republicano no Brasil, desde a atuação do movimento republicano até o fim do governo Campos Sales, em 1904, buscando compreender a lógica de criação e o funcionamento do federalismo nacional. “Unidos perderemos”, fruto de mais de 15 anos de leituras, pesquisas e reflexões, é uma adaptação da tese que a historiadora elaborou para se tornar professora titular da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Cláudia Viscardi é atualmente um dos nomes mais importantes da historiografia sobre o Brasil Republicano, autora de diversos livros e artigos no campo. Sua obra mais famosa – presente hoje em praticamente em todo curso de História do Brasil República – foi lançado em 2001, “O Teatro das Oligarquias: uma revisão da politica do café com leite”. No livro, Viscardi demonstra como havia dissensos e conflitos significativos entre os setores oligárquicos da Primeira República – o que acabou por desmontar uma consagrada perspectiva historiográfica que defendia a existência de um consenso político no Brasil até 1930. Mais recentemente, Viscardi também publicou “A República revisitada: construção e consolidação do projeto republicano brasileiro”, que organizou com J.A. Alencar.
A entrevista que apresentamos a seguir foi realizada na última semana de setembro de 2017 e foca no lançamento de “Unidos perderemos”. Viscardi falou conosco sobre a divisão do livro, as fontes primárias que utilizou, o processo de adaptação de sua tese de professora titular, os esquematismos sobre a Primeira República que sobrevivem, sobretudo no meio escolar, e como o seu livro busca propor uma alternativa a esses esquematismos. Ao fim, perguntamos a Viscardi se ela acha que este seria o momento de maior agonia da centenária República brasileira. Confira, abaixo, esse papo na íntegra!
Bruno Leal: Na introdução de “Unidos Perderemos”, você sublinha que o Período da Primeira República ainda tem sido frequentemente explicado a partir de “esquematismos”. Na sua avaliação, qual seria o “esquematismo” mais persistente hoje em dia?
Cláudia Viscardi: Acho que são vários. A começar pelo nome “República Velha”, ainda largamente usado. Quem define o que é velho ou novo, arcaico ou moderno, é sempre quem vem depois, em geral, com um projeto alternativo e crítico em relação ao passado. Sabemos que o projeto Varguista de poder passava pela fragilização das oligarquias regionais. Desqualificá-las era importante para que seus objetivos fossem atingidos.
O segundo esquematismo é o da aliança “Café com Leite”, que só muito recentemente apareceu no livro didático de forma crítica, mas ainda predomina em muitas análises. Há algumas características que são atribuídas ao regime que são extremamente simplificadoras. A ideia de que as eleições eram todas fraudadas, que o voto não valia nada, que não havia competição política e que a elite política não se renovava são atribuições de valor largamente encontradas em vários livros. Embora parcialmente verdadeiras, simplificam demais a análise. Ora, as fraudes eram comuns em eleições em vários outros países e em outros períodos da História do Brasil. Que tal pensá-las como uma estratégia e menos como uma deturpação? Se o voto nada valia, por que ele serviria de moeda de troca no “pacto coronelista”? Por que os candidatos se esforçavam tanto em levar os eleitores às urnas ou em usar a imprensa para propaganda de seus nomes se os resultados eram “favas contadas”? Pesquisas recentes têm apontado para a existência de expressiva competição política e pela renovação do Parlamento em níveis semelhantes aos atuais. Ademais, penso que se analisarmos o período de forma sincrônica e não só diacrônica, perceberemos que nossos vizinhos e outros países europeus padeciam dos mesmos “males” de nossa “velha república”. Parece um clichê, mas analisar o passado com valores contemporâneos, ou seja, fundamentados em uma democracia de massas, nos levará sempre a desqualificá-lo.
Por fim, a ideia de que após outubro de 1930, a República tenha mudado completamente é outro esquematismo bastante consolidado. Até o Estado Novo, muita coisa mudou, mas muito se manteve. Grande parte das mudanças que ocorreram entre 1932 e 1934, por exemplo, vinham sendo gestadas desde os anos 1920. O próprio processo de centralização com hipertrofia do Executivo foi sendo construído também nos anos 1920. E muitas das propostas implementadas por Vargas e seus tenentes foram arquitetadas por intelectuais autoritários da Primeira República. Então, a ideia de que a revolução foi um divisor de águas entre o rural e o urbano, o agrário e o industrial, o descentralizado e o centralizado, o antigo e o moderno, é outro exemplo de um esquematismo ainda em vigor.
Bruno Leal: O livro propõe uma alternativa à essas abordagens esquemáticas. Em linhas gerais, que alternativa é essa? Qual é a sua principal tese nesse livro?
Cláudia Viscardi: O livro tem cinco capítulos. O primeiro é sobre o movimento republicano, o segundo sobre as constituições federal e estaduais. Nesses dois primeiros trago algumas novidades. O uso da História dos Conceitos e da História Intelectual do Político me permitiu leituras alternativas do movimento republicano. A prosopografia que fiz da Constituinte de 1891 também. Sobre as constituições estaduais, não conheço nenhum trabalho que as tenha analisado, e de forma comparada, uma a uma. Por isso, trata-se de uma contribuição original. Considero o terceiro, quarto e quinto capítulos mais instigantes, pois proponho uma nova leitura acerca dos processos eleitorais e uma interpretação alternativa da “política dos estados” de Campos Sales. Acho que nesses três capítulos procuro romper com parte dos esquematismos que acime me referi. Não creio que tenha uma hipótese geral no livro. Acredito que ofereço ao leitor uma alternativa interpretativa acerca do período de construção do projeto republicano. Em cada capítulo procuro responder à uma questão. E espero que tenha conseguido.
Bruno Leal: Como foi o trabalho com as fontes documentais? Ainda há dificuldades quanto aos arquivos privados, não? Isso quer dizer que, no futuro, esses arquivos, se e quando liberados, poderão propor novas interpretações sobre o período?
Cláudia Viscardi: Eu sempre gostei muito de trabalhar com arquivos privados. Acho que numa sociedade com poucos meios de comunicação, como era a da Primeira República, as correspondências assumiam um protagonismo incontestável. Era por meio delas que a comunicação se processava a distância. Bom, tive dificuldades de acesso ao arquivo privado de Campos Sales, ainda em poder de seus descendentes. Por conta disso, tive que recorrer a fontes indiretas. Trabalhei com anais parlamentares, manifestos, regimentos da câmara, leis eleitorais, discursos políticos, resultados eleitorais, imprensa, textos constitucionais, dicionários de época e os arquivos privados de outros atores políticos importantes.
Bruno Leal: “Unidos perderemos” é resultado da sua tese para ascensão à categoria de Professora Titular na Universidade Federal do Juiz Federal (UFJF). Como foi a transposição para o formato de livro?
Cláudia Viscardi: Recebidas as sugestões da banca, procurei incorporá-las da melhor forma possível. Fiz várias revisões até chegar a esse formato final. Diminuí as notas – como todas as editoras solicitam – e mudei o título, para ficar mais atrativo. Levei mais de um ano nessa adaptação.
Burno Leal: Nos últimos anos, muitos analistas e parte da imprensa sublinham que vivemos a maior crise do modelo republicano no Brasil. Você, que tem dedicado boa parte da produção historiográfica ao estudo do Brasil Republicano, concorda com essa afirmação?
Cláudia Viscardi: Creio que a crise é maior para nós, porque a estamos vivendo. Mas cada geração sente de forma diferente a sua própria “dor”. Já vivemos no passado outras crises institucionais e já tivemos outros golpes de estado. Já vimos o povo na rua tentando depor presidentes democraticamente eleitos. E já vimos a imprensa derrubar importantes lideranças populares. Infelizmente, ainda não vivemos a República, que etimologicamente significa um regime que pertence ao povo, que é de interesse coletivo, comum aos cidadãos. Philippe Petit nos fala que o republicanismo cívico é aquele no qual o bem comum só pode ser atingido coletivamente. E para que isso ocorra é fundamental que os cidadãos incorporem valores associados ao bem-estar coletivo e que também desenvolvam confiança no sistema comunitário. Portanto, falta-nos a virtude cívica, que é a essência das repúblicas. Por essa razão, valores republicanos como o respeito às instituições e à democracia são abandonados ao sabor de interesses cada vez mais individualistas. Talvez não seja esta a pior das repúblicas, mas certamente é a mais angustiante delas, por termos mais instrumentos de compreensão de suas mazelas, ao lado de uma impotência para mudá-la.
Cláudia Maria Ribeiro Viscardi – Possui graduação em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora, mestrado em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais, doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Pós-Doutorado na Manchester Metropolitan University (Manchester- Reino Unido), concluído em 2008 e na Universidade de Lisboa, concluído em 2016. É Professora Titular da Universidade Federal de Juiz de Fora e Professora do Programa de Pós-Graduação em História. É bolsista de produtividade do CNPq e pesquisadora da Fapemig. Tem experiência nas áreas de História Política e Social, com ênfase na Primeira República. Foi Pró-Reitora de Pesquisa da UFJF (2002-2006). Foi pesquisadora visitante na Manchester Metropolitan University (2007-2008), na Fundação Casa de Rui Barbosa (2011-2013) e na Universidade de Lisboa (2015). Foi presidente da Seção Regional Minas Gerais da Associação Nacional de História (ANPUH-MG), gestão 2012-2014. Foi coordenadora do Grupo de Trabalho em História Política da ANPUH (2015-2017) e da Rede Internacional de Pesquisadores “Conexões Lusófonas: ditadura e democracia em português”. Atualmente é coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História da UFJF (2016-2018) e membro da Diretoria Nacional da Associação Nacional de História – ANPUH.
Bruno Leal Pastor de Carvalho – é Professor Substituto de Teoria da História no Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), além de bolsista do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD), vinculado ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É doutor em História Social pela UFRJ (2015), mestre em Memória Social pela UNIRIO (2009), pós-graduado em História Contemporânea pela PUCRS (2010), graduado em História pela UFRJ (2006) e em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo pela UFRJ (2006). É fundador e editor do portal Café História, além de cocoordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos e Árabes da UFRJ (NIEJ). É membro da Rede Brasileira de História Pública e da Associação das Humanidades Digitais. Seu campo de interesses inclui: estudos do holocausto, crimes de guerra, história pública digital e divulgação de história.
Como citar essa entrevista
VISCARDI, Cláudia. Unidos perderemos: o federalismo na Primeira República (Entrevista). Entrevista concedida a Bruno Leal Pastor de Carvalho. In: Café História – história feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/entrevista-com-claudia-viscardi/. Publicado em: 2 Out 2017. Acesso: [informar data].