Todo final de ano eu faço uma limpeza no meu arquivo profissional. Esse ano não foi diferente. Escalei montanhas de pastas, provas antigas, trabalhos de estudantes, livros empoeirados e um monte de coisa que eu fiz ou colecionei ao longo da vida. No meio de tudo isso, encontrei uma preciosidade: algumas edições de um jornal de curta duração que eu e mais alguns amigos e amigas de graduação editamos no longíquo ano de 2004. O nome desse jornal era “O Espinha” e ele circulava na Escola de Comunicação da UFRJ. Estávamos, então, no quarto período do curso de comunicação, o primeiro semestre da habilitação jornalismo. Uma dessas edições de “O Espinha”, a de outubro de 2004, trazia uma entrevista muito legal com o professor Carlos Nélson Coutinho.
Decidi que aquela entrevista, lida por tão pouca gente, dada a natureza local do nosso pequeno jornal universitário, merecia ser republicada. Por isso, trago ela hoje para o Café História, 16 anos depois. Ela continua atual. Coutinho fala sobre editoras universitárias (ele estava no comando da Editora da UFRJ), marxismo, a relação entre política e intelectualidade e, claro, Gramsci, a sua grande especialidade.
Eu e Fábio Silveira, que já publicou textos incríveis no Café História, como este aqui, entrevistamos Coutinho em setembro 2004. Ele nos recebeu em sua sala, na sede da Editora da UFRJ, no campus da Praia Vermelha, onde estudávamos. Lembro que dias antes, quando entramos em contato para fazer o convite da entrevista, ele logo encontrou um horário em sua concorrida agenda. Carlos Nélson Coutinho era atencioso, simpático, muito erudito e falava de forma tranquila. Guardo as melhores lembranças.
Coutinho foi professor emérito da Escola de Serviço Social da UFRJ, editor da Editora da UFRJ e um dos maiores conhecedores da obra e da trajetória de Antonio Gramsci, sendo o editor do filósofo italiano no Brasil durante vários anos. Um de seus artigos “Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político”, publicado em 1989, já foi citado por 1369 outros artigos acadêmicos, segundo dados do Google Acadêmico. Coutinho foi ainda um grande intelectual e ativista politico. Atuou por 20 anos no PCB (que deixou e 1982) e outros tantos no PT. Apoiou o Movimento dos Sem Terra (MST) e escreveu com regularidade em jornais e revistas de grande circulação. Marxista, gramsiciano, foi muito respeitado na esquerda e na direita. Faleceu aos 69 anos, em 2012, após uma árdua luta contra o câncer. Espero que o leitor possa matar um pouco da saudade de Coutinho.
Agradeço a antiga equipe de “O Espinha” por autorizar a republicação desta entrevista: Fábio Silveira, Bárbara Skaba e Thiago Silva. Agradeço também ao fotógrafo Eneraldo Carneiro, que gentilmente autorizou a utilização da foto que ilustra esta entrevista.
Fale um pouco sobre a sua trajetória política.
Ano passado fui à Bahia e remexendo uns documentos, encontrei uma peça de acusação contra mim num inquérito policial militar que respondi em 1964. Eu era membro do Partido Comunista e tinha 20, 21 anos de idade. No final, o coronel concluía a peça de acusação afirmando o seguinte: “É um marxista convicto e confesso”. Hoje, penso: 40 anos depois, esse título continua me servindo muito bem. É claro que, durante esses anos, eu mudei, novos temas se agregaram aos meus interesses, fiz correções em como entendo o marxismo. Mas me parece interessante a forma pela qual tenho persistido na convicção de que o marxismo é o pensamento social que melhor compreende as contradições do mundo contemporâneo e do capitalismo, além de ser o mais eficaz instrumento de pesquisa na área social. Politicamente, como marxista, sempre aliei meu interesse teórico à prática política. Eu fui membro do PCB durante 20 anos (entrei em 1960, com 17 anos de idade) e sai por volta de 1982. A partir de 1989, me aliei ao PT e ainda sou membro deste partido (com ênfase no “ainda”). Eu entendo que é muito difícil fazer política sem estar ligado a um partido político, o que, contudo, não significa que se deva submeter a reflexão intelectual às diretrizes do partido. Mas acho fundamental essa articulação entre o mundo intelectual e o mundo da política; os partidos permanecem os meios mais adequados para operar essa ligação.
Como surgiu a sua inclinação para o marxismo e para as idéias de Gramsci?
Por casualidade. Eu me lembro que meu pai era um poeta e deputado estadual da UDN, apesar de ser uma pessoa progressista. Ele tinha uma boa biblioteca. Nela, tinha uma edição do “Manifesto Comunista”. Eu, com 14 anos, era muito curioso e resolvi pegar o livro para ler. Obviamente, me fascinei. Quem lê o Manifesto Comunista com 14 anos e não é fortemente impressionado por ele, certamente fica devendo algo. Então, comecei a me interessar muito pelo marxismo. Gramsci, que foi um autor muito importante, me foi recomendado por um professor de história marxista que tive no Segundo Grau, o senhor Paulo Farias, hoje um dos maiores especialistas mundiais em muçulmanos negros.
Na época, ele me chamou a atenção a Gramsci e comecei a lê-lo por volta dos 20 anos. Foi um autor que marcou fortemente a minha formação teórica e a marca até hoje. Não só tenho trabalhos sobre Gramsci, mas também fui editor no Brasil desde os anos 60, publico edições de Gramsci e, recentemente, organizei com editores amigos uma edição crítica dos “Cadernos do Cárcere”. Estamos preparando, no momento, edições críticas dos escritos pré-carcerários e também das “Cartas do Cárcere”. É realmente um autor pelo qual tenho uma profunda simpatia.
Hoje, muitos estudiosos criticam uma análise marxista da realidade e acabam por menosprezar estudos do gênero. Este tipo de análise ainda é possível?
Acho o Marxismo extremamente atual, mais atual do que quando Marx escreveu o “Manifesto Comunista” (1848). Ele escreveu o livro defendendo a tese de que o capitalismo é um fenômeno internacional, de que a Globalização faz parte da essência do que é o capitalismo. E, naquela época, esse fenômeno não estava tão desenvolvido. O capitalismo ainda não tinha penetrado em vastas partes do mundo, não tinha se expandido para todos os setores, como o de serviços. Cada vez mais, se confirma essa idéia de Marx de que o capitalismo é globalizado.
O que você entende por editora universitária e qual é o papel dela quando comparada a uma editora convencional?
Não é função das editoras universitárias substituir as editoras convencionais; a editora de uma universidade, ao contrário de editoras comerciais, não visa o lucro. Seria uma ilusão imaginar que uma editora universitária compete com uma editora comercial. Ainda assim, ela deve procurar o máximo de retorno possível, uma vez que isso, inclusive, facilita a publicação de mais livros. A principal função de uma editora universitária é fornecer a um público exigente, em sua maioria ligado ao mundo académico, algumas obras que não interessam a editoras comerciais e que têm um papel fundamental no desenvolvimento da cultura, do saber e do pensamento. Toda editora desse tipo, por exemplo, deve ter uma linha de clássicos do pensamento, seja esta brasileira ou universal.
Por outro lado, deve-se dar importância a livros que contribuam com o ensino universitário (conjunto de livros didáticos). O nosso best-seller, por exemplo, é um livro de cálculo diferencial que já se encontra na 5ª edição. Manter publicações desse tipo é extremamente importante, justamente por fornecer a universidades um material didático de boa qualidade. Deve-se publicar, também, outros tipos de livros, como os de autores contemporâneos que nos pareçam importantes.
Qual o critério da Editora da UFRJ para a escolha de livros a serem publicados e qual é o compromisso dela com os alunos, levando em consideração o acervo?
O compromisso com os alunos, como anteriormente afirmado, é a publicação de livros com interesses culturais, científicos e artísticos específicos que nem sempre interessam uma editora estritamente comercial. Infelizmente, o preço de alguns livros os tornam pouco acessíveis a um estudante médio. Uma das coisas que pretendo fazer é, sem a perda da qualidade gráfica e do conteúdo dos livros, oferecê-los ao preço mais barato possível. Uma editora como a da UFRJ é subsidiada pela reitoria, o que é indispensável ao bom funcionamento dela. A cada nova direção que assume a editora, o conselho editorial é reformulado. Esse conselho, juntamente com o diretor, está sempre preocupado em atender aos anseios dos alunos. Mas uma coisa que tem acontecido é o privilégio do diretor e do conselho por uma área específica do pensamento. Houve um momento, por exemplo, em que a editora era antropóloga e contratou diversos livros de antropologia, muitos dos quais ainda devem ser publicados. Eu, por outro lado, buscarei o máximo de equilíbrio possível entre as diversas áreas do saber; trabalho, normalmente, com teoria política, mas não pretendo que a editora fique voltada unicamente a essa área. Analisando as publicações da editora, por exemplo, cheguei à conclusão de que o marxismo se encontra sub-representado. Na medida em que o marxismo, ao meu ver, tem um peso importante no pensamento social contemporâneo, é justo que haja um número maior de livros dessa corrente filosófica no catálogo da editora.
Como uma possível transformação da Editora em Fundação poderia ajudar na captação de recursos?
Há um projeto meu e do reitor Aloísio Teixeira de transformar a Editora em Fundação. Atualmente, ela é um órgão do Fórum de Ciência e Cultura. Dessa forma, nós não temos autonomia financeira alguma; dependemos sempre de verbas de órgãos como a FUSP e a PR3. Se conseguirmos transformar a editora em fundação, poderemos ter essa maior autonomia financeira, tornando possível, inclusive, o gerenciamento interno de recursos.
Na sua opinião, qual é a importância de um jornal universitário feito por alunos?
Eu acho extremamente significativo. Primeiro, porque é um campo de prática para vocês. Segundo, porque é um meio de difundir e discutir idéias. Antigamente, na faculdade, os alunos faziam questão de ter um jornal. Parabéns!
Como citar essa entrevista
COUTINHO, Carlos Nélson. “Acho fundamental essa articulação entre o mundo intelectual e o mundo da política”. Entrevistadores: Bruno Leal Pastor de Carvalho e Fábio Silveira (Originalmente publicada em 2004). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com/entrevista-com-carlos-nelson-coutinho/. Publicado em: 14 dez. 2020. ISSN: 2674-5917.