Eram quatro da manhã. Com o pai apreensivo e a mãe aos prantos, ela aguardava na porta de casa, no Rio de Janeiro, o jipe que a levaria para o front na Europa. Virgínia Maria de Niemeyer Portocarrero (1917-) tinha 27 anos e havia se voluntariado para compor o contingente de 67 jovens enfermeiras que ingressaram na Força Expedicionária Brasileira (FEB), na Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Filha e sobrinha de generais, Virgínia cresceu em ambiente militar, entre familiares que participaram da Guerra do Paraguai. Sua trajetória como integrante do Exército na FEB é parte de um processo de mobilização política do Estado Novo de Getúlio Vargas. Esse processo pensava a enfermagem brasileira como ação de saúde pública impulsionada pelo Estado e tinha como modelo os padrões praticados na Inglaterra e Estados Unidos.
A enfermagem era uma profissão “plausível” para as mulheres daquela geração, assim como o magistério no ensino primário. O voluntariado, para as jovens, era uma oportunidade única de servir ao país em momento de apelo patriótico, após o torpedeamento dos navios mercantes brasileiros por submarinos alemães, em 1942, causando a morte de centenas de pessoas. O ato bélico de Hitler havia inflamado a população, que exigia uma dura resposta do Brasil à agressão nazista. O chamamento para a FEB representava também a oportunidade de ocupar outro lugar simbólico em uma sociedade ainda extremamente machista.
“Em 1943 foi criada a 1ª Divisão de Infantaria Expedicionária, parte do corpo da Força Expedicionária Brasileira, composta por unidades de artilharia, engenharia e saúde. Além dessa organização militar, houve também as iniciativas de mobilização civil para a guerra, entre as quais estava a convocação para o serviço de enfermagem voluntária. Essas iniciativas foram embasadas por um apelo patriótico utilizado por Getúlio Vargas”, explica Larissa Velasquez de Souza em artigo sobre a inserção de Virgínia na carreira militar.
Enfermeiras brasileiras na guerra
As enfermeiras (67 jovens) que se juntaram às tropas brasileiras da FEB e à Força Aérea Brasileira (seis do Grupo de Caça Aéreo da FAB) rumo à Itália serviram em quatro diferentes hospitais de campanha do exército norte-americano montados em Nápoles, Valdibura, Pisa, Pistoia e Livorno. Somavam 73 jovens, formadas nas escolas de enfermagem do Rio (Anna Nery, Alfredo Pinto (UniRio), Cruz Vermelha Brasileira) e de São Paulo (Escola de Enfermagem da USP). Tornaram-se as primeiras mulheres a ingressar no serviço ativo na história das Forças Armadas no país.
Os requisitos não eram simples. Para inscrever-se, a jovem devia ser brasileira nata, solteira ou viúva, sem filhos, e ter entre 20 e 40 anos. Era preciso apresentar diploma de enfermeira ou certificado de curso de samaritana, voluntária socorrista ou declaração de um estabelecimento de saúde atestando o exercício da função de enfermeira.
“Algum tempo depois passaram a ser aceitas mulheres desquitadas, solteiras e viúvas. As casadas só eram admitidas se tivessem permissão do marido”, explica o historiador Roney Cytrynowicz no artigo “A serviço da pátria: a mobilização das enfermeiras no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial”.
Jovem ‘febiana’
Virgínia Portocarrero, uma dessas 67 enfermeiras da FEB, nasceu em 23 de outubro de 1917, no Rio. Formada em ciências e letras no Colégio Pedro II, cursou Aperfeiçoamento e Arte Decorativa na Escola Politécnica Nacional de Engenharia. Com pai militar e em constante mudança, iniciou o Curso de Enfermagem Samaritana na Cruz Vermelha de Belém do Pará, concluindo-o depois no Rio.
Em depoimento concedido às pesquisadoras da Casa de Oswaldo Cruz Anna Beatriz Almeida, Laurinda Maciel e Margarida Bernardes, em 2008, Virgínia conta que se voluntariou a partir de uma notícia publicada no jornal O Globo, em junho de 1943. Sem avisar aos pais, viu que preenchia os requisitos exigidos e fez a inscrição.
“Sonhava em ser militar. Pois é. Eu queria ser militar, eu queria ser homem, ser militar, porque o fulano disse que era homem militar, os meninos, e não havia Colégio Militar para menina. O Colégio Militar era só para homem, então eu fui para o Pedro II, não é? Mas a minha vontade era ser homem e militar…”.
Selecionada, acabou recebendo o consentimento dos pais e se matriculou no Curso de Emergência de Enfermeiras da Reserva do Exército (CEERE). Em junho de 1944, concluído o curso, ficou à disposição do Primeiro Escalão da FEB. No mês seguinte seguiu para Nápoles, Itália, como integrante do 2º Grupo, subordinado ao coronel Emmanuel Marques Porto, médico e diretor do Serviço Médico de Saúde da FEB.
“Quando chegou no dia às 4 horas estávamos lá, eu, papai, mamãe, na porta do edifício. Fui para o quartel general e fiquei lá até três horas da tarde. Aí eu voltei, mamãe ficou alegre, eu fiquei alegre. Mamãe disse: “Vocês não vão mais, não vão mais”! Passados dois dias, a mesma coisa. Beijinho, beijinho, até mais tarde. E não voltei mais, dessa vez foi verdade. Embarquei para a Base Aérea de Parnamirim, em Natal, sem saber para onde iria depois”.
Após quase um ano de trabalho voluntário na guerra, Virgínia regressou ao Brasil em 7 de julho de 1945, retornando ao cargo de desenhista no Instituto Nacional do Mate, ligado ao então Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Em seguida, trabalhou como laboratorista e escriturária no Departamento de Saúde Escolar do Distrito Federal.
Em 1957, as enfermeiras “febianas” foram incorporadas ao Exército Brasileiro. Virgínia então voltou ao serviço ativo como 2º tenente e passou a atuar como enfermeira na Policlínica Central do Exército. Passou para a reserva em 25 de setembro de 1962 como 1º tenente e foi promovida a capitão em 1963.
A experiência de Virgínia Portocarrero na Segunda Guerra Mundial foi registrada por ela mesma em seu diário de guerra – relatos escritos à mão em folhas de papel que enviava ao pai, o general Tito Portocarrero, por intermédio de soldados da FEB que retornavam ao Brasil. O arquivo ainda reúne cartas, centenas de fotografias, recortes de jornal, entre outros materiais. Tais documentos, como também a extensa entrevista que concedeu a pesquisadoras da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) em 2008, foram doados por ela ao Departamento de Arquivo e Documentação da COC. Consultas aos documentos do arquivo histórico podem ser solicitadas em https://www.gov.br/pt-br/servicos/consultar-arquivos-historicos-da-fiocruz
Referências
BERNARDES, Margarida Maria Rocha; LOPES, Gertrudes Teixeira. As enfermeiras da força expedicionária brasileira no front italiano. Rev. esc. enferm. USP, São Paulo, v. 41, n. 3, p. 447-453, Sept. 2007 .
CYTRYNOWICZ, Roney. A serviço da pátria: a mobilização das enfermeiras no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial. Hist. cienc. saude-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 73-91, June 2000 .
PORTOCARRERO, Virgínia Maria Niemeyer. FIOCRUZ. Rio de Janeiro. 14 de maio. 2008. Entrevista concedia à Anna Beatriz de Sá Almeida, Laurinda Rosa Maciel e Margarida Maria Rocha Bernardes. Acervo da Casa de Oswaldo Cruz. Fundo: Virginia Portocarrero.
Como citar este artigo
D’AVILA, Cristiane. Força feminina contra o nazismo: a enfermeira brasileira Virgínia Portocarrero na Segunda Guerra Mundial (Artigo). In: Café História. Publicado em 1 mar de 2021. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/enfermeiras-na-segunda-guerra-virginia-portocarrero/. ISSN: 2674-59.